Série de Steve McQueen revela ginga e lutas dos afro-caribenho-britânicos

Por Maria do Rosário Caetano

O britânico Steve McQueen, primeiro cineasta negro a ter um filme – o drama “12 Anos de Escravidão” – laureado na principal categoria do Oscar, chega ao público brasileiro, via streaming, em dose quíntupla.

A série “Small Axe” teve suas duas primeiras partes lançadas pela Globoplay. As outras três serão disponibilizadas nas próximas sextas-feiras desse mês de março (dias 12, 19 e 26). McQueen realizou cinco longas-metragens, que totalizam 414 minutos integralmente dedicados à vida dos afro-caribenhos radicados (ou nascidos) na Grã-Bretanha.

O cineasta centrou seu foco nas memórias familiares daqueles que deixaram as “Índias Ocidentais” (denominação dada pelo Império colonizador), para tentar a sorte na Londres do final dos anos 1960, passando pelos 70 e chegando aos 80. Os personagens têm nas Grandes Antilhas (Jamaica, Barbados, Tobago, Granada, Barbudas e outras pequenas ilhas) o território de origem de seus ascendentes.

Foi, pois, em Londres, no seio de uma família caribenha, que nasceu, 51 anos atrás, Steven Rodney McQueen. Hoje, ao lado de Spike Lee, Ava DuVernay, Jordan Peele, Barry Jenkins e Ladj Ly, ele integra o time de ponta do cinema black realizado fora do continente africano.

No último filme da série (“Educação”), McQueen rememora sua traumática experiência numa escola técnica, daquelas que atendiam a meninos pobres (e negros) para, em tese, prepará-los para o mercado de trabalho (o de baixa remuneração). Se o menino tinha vocação para as artes (caso de McQueen), o sistema educacional não queria saber.

Com o Oscar, o Globo de Ouro, o Bafta (todos por “12 Anos de Escravidão) no currículo, o diretor trocou a violência brutal dos tempos de escravidão pelas lutas travadas por afro-britânicos contra o racismo. E, também, pelo registro da revolução sonora que artistas oriundos das Antilhas (a geração Bob Marley) promoveram em bairros pobres de Londres.

Quem não balançou ao ritmo do reggae, ska e rocksteady vindos das ilhas centro-americanas?

No Brasil, em especial no Maranhão, além de febre musical, o reggae e o movimento rastafari (com sua defesa aberta do uso da maconha) encontraram terreno fértil. Inclusive, com a poderosa contribuição de Gilberto Gil, que ajudou a amplificar a onda reggae ao gravar bela e personalíssima versão de “No Woman no Cry” (“Não Chore Mais”), de Bob Marley.

No primeiro filme da série “Small Axe” – “Os Nove do Mangrove” (2h07′) – vemos, no emblemático ano de 1968, um grupo de ativistas negros em animadas conversas. Em pequenos grupos, nas mesas do Restaurante Mangrove, mantido pelo descolado e politizado Frank Crishlow (Shaun Parkes), jovens de cabelos volumosos discutem o racismo, as ideias de Frantz Fanon e outros importantes intelectuais. Altheia (Letitia Wright), militante da extensão britânica do Partido dos Panteras Negras, é uma das mais atuantes. Ela e Darcus (Malachi Kirby) botam pra ferver.

Frank Crishlow espera que o Mangrove se firme como espaço de degustação da apimentada comida caribenha e uma espécie de clube de debates artísticos e políticos de sua comunidade. Já teve outro restaurante, que fechou por uma série de problemas. Mas a Polícia (branca) londrina não dá descanso. Invade a nova casa, por qualquer motivo. Até que um dia, os afro-britânicos perdem a paciência e organizam manifestação de protesto. A força policial chega e desce o sarrafo. Os negros revidam e, processados, vão acabar no tribunal. Na segunda parte do filme, vemos o teatro do julgamento, cujo veredito será dado por júri formado com uns oito brancos e apenas dois negros.

O segundo filme de “Small Axe” disponibilizado pela Globoplay – “Lovers Rock” – é bem diferente do primeiro. Sintético (apenas 61 minutos), sensorial, dançante e musical, a trama nasceu de memórias evocadas por uma tia de McQueen.

Jovens saem de suas casas para dançar, paquerar, beber, exibir seus cabelões e roupas coloridas. O fazem num casarão, com amplo quintal. Tudo se passa nos anos 1980, quando o reggae já entrara na corrente sanguínea do planeta, graças à herança deixada por Bob Marley (1945-1981, morto por um câncer, aos 36 anos) e Peter Tosh (1944-1987) e pela militância musical de Jimmy Cliff (hoje com 72 anos).

A trilha sonora que embala “Lovers Rock” resulta em pura malemolência e sedução. Corpos que dançam (colados e erotizados, ou separados e cheios de malabarismos) nos envolvem em atmosfera inebriante. O barulho das sirenes das viaturas policiais está lá fora. O perigo (a sedução forçada de uma jovem ingênua ou as ameaças de um desordeiro) não têm maiores consequências na trama. Todos que ali estão só querem uma noite de prazeres sensoriais.

E que se faça, aqui, um registro. Em recente entrevista, Steve McQueen se aborreceu com pergunta que abordava a coincidência de seu nome com o do ator norte-americano (Terrence) Steve McQueen (1930-1980), de “Fugindo Inferno”, “Papillon” e “Crown, o Magnífico”. Que aliás, morreu quando o londrino contava apenas 13 meses.

Teria a mãe do futuro cineasta inglês se inspirado no astro louro de Hollywood ao escolher o nome civil do filho? O diretor de “Small Axe” jura que não. Que Steve é um nome comum e que McQueen é o sobrenome de (sua) família. Tudo leva a crer que a Senhora McQueen desejou, sim, prestar tributo ao astro que vivia, vítima de câncer, seu últimos meses no estado de Chihuahua, no México.

O filho, por ironia (e amor à arte), até ajudou. Afinal, tirou de seu prenome civil um “n”, cortou o Rodney e, como homônimo do astro, dirigiu 13 curtas e nove longas-metragens. A sorte é que, como o ator nascido no estado de Indiana, ele também encontrou formidável sucesso. Seja no Oscar, no Globo de Ouro, no Bafta, em Veneza ou Cannes.

Pelo terceiro filme de “Small Axe” – “Red, White and Blue” –, o jovem ator John Boyega acaba de ganhar um Globo de Ouro. O astro dos dois primeiros filmes de McQueen – “Hungry” e “Shame” –, o germano-irlandês Michael Fassbender deve ao britânico muito de sua fama planetária.

 

Small Axe

. “Os Nove do Mongrove” (127 minutos)
. “Lovers Rock” (61 minutos)
. “Red, White and Blue” (80 minutos)
. “Alex Wheatle” (66 minutos)
. “Education” (80 minutos)

 

FILMOGRAFIA
Steve McQueen (Steven Rodney McQueen)
Londres – 9 de outubro de 1969

. 2008 – “Hunger” (Fome)
. 2011 – “Shame” (Vergonha)
. 2013 – “12 Anos de Escravidão”
. 2018 – “Viúvas” (Widows)
. 2020 – “Small Axe” (série de 5 filmes)

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