A arte do sentido

Cao Guimarães é hoje o nosso cineasta que mais trafega no mundo das artes, do cinema experimental que tem a liberdade de não se ater a um tema, um tamanho (curta ou longa) ou se é ficção ou documentário. Uma das marcas do cinema desse cineasta mineiro que tem influenciado gerações e tornado Minas Gerais um reduto de cineastas experimentais, é a liberdade de criação, onde um filme pode nascer de um roteiro, de um livro ou de uma ideia, ou seja, pouco importa como ele nasce, mas como ele termina. “Roteiro de filme, para mim, é a montagem. Ali realmente escrevo o filme, imprimo-lhe ritmo e frequência, dou ordem ao caos”, afirma o cineasta nesta entrevista exclusiva à Revista de CINEMA.

Prestes a lançar seu sexto longa-metragem nos cinemas, “Ex Isto”, a partir de agosto, e já com previsão de rodar mais um, “O Homem das Multidões”, no primeiro semestre de 2012, Cao Guimarães conversou com a Revista de CINEMA, contando um pouco sobre sua trajetória, sobre seus novos filmes, seus parceiros, suas influências e sobre sua maneira de pensar a arte cinematográfica. Nascido em 1965, em Belo Horizonte, onde vive até hoje, Cao, além de cineasta, é artista plástico e fotógrafo, manifestações que lhe garantiram exibições ao redor do mundo, desde os anos 1980, em museus e galerias como o Tate Modern, o Guggenheim Museum, o MoMA, entre muitos outros.

Cao começou a filmar em 1998, com o curta “Otto, eu sou um outro” e desde então realizou cerca de 20 curtas. Já em 2001, estreia nos longas-metragens, com “O Fim do sem Fim”, codirigido com Beto Magalhães e Lucas Bambozzi. Depois vieram os longas “Rua de Mão Dupla” (2002), “A Alma do Osso” (2004), “Acidente” (2005), codirigido por Pablo Lobato – do coletivo mineiro Teia –, “Andarilho” (2007) e “Ex Isto” (2010), além de curtas como “Sopro” (2000), “Concerto para Clorofila” (2004), “Da Janela do meu Quarto” (2004) e “Memória” (2008).

“O Homem das Multidões”, baseado na obra de Edgar Allan Poe, será seu sétimo longa, em pouco mais de dez anos de carreira, fechando a Trilogia da Solidão – composta ainda por “A Alma do Osso” e “Andarilho”.

Revista de CINEMASeu próximo filme será “O Homem das Multidões”, contemplado no último ano com o programa Petrobrás Cultural. Em que medida o fato de ser um projeto muito maior (em termos de aporte financeiro e equipe, principalmente) influenciará no seu modo de realização?

Cao Guimarães– Certamente será uma experiência nova para mim. E isso é fundamental no meu processo de trabalho, que nunca é estanque, hermético, sempre aberto a novidades e novas formas do fazer. Imagino que aprenderei muito, pois os desafios são válvulas potencializadoras do conhecimento. É preciso desaprender para aprender de novo, não como se fosse uma escola, mas uma experiência. Adoro começar um filme como se fosse o meu primeiro, a energia sempre é revitalizada nessas situações de se sentir um pouco perdido e tentar encontrar o filme no meio desse caminho entre o imaginário e o devir, entre o que se fantasiou e o que está diante de seus olhos.

Revista de CINEMA – Como surgiu a parceira com o Marcelo Gomes? E o que se pretende alcançar com ela?

A parceria surgiu da amizade e da identidade. O desejo de compartilhar o delírio e a embriaguez pela paixão cinematográfica. A facilidade da troca de impressões e pensamento sobre o cinema e a vida de uma forma geral. A parceria também surgiu da diferença, da vontade de ser revolucionado pelo outro. Um encontro de pororocas para ver o que vai dar. Temos experiências distintas no fazer cinematográfico, mas respeito e admiração pela forma do fazer do outro. Acho que tanto em mim quanto no Marcelo existe o desejo de expandir o contato com o cinema, e, existindo respeito e admiração um pelo outro, a possibilidade de uma complementaridade é real. Mas para além de nós dois existe a entidade-filme que quer nascer, fruto desse embate e dessa celebração do amor pelo cinema. Um parto a quatro mãos e quatro olhos, gravidez prolongada, com mais amor do que ciência, entre a realidade e a ficção, do jeito que a vida deve ser vivida.

Revista de CINEMA – “O Homem das Multidões”, parece, será seu primeiro longa em que o gênero ficcional é mais do que dominante. Isso parte de um interesse seu em cruzar a fronteira entre ficção e documentário que permeia seus trabalhos, especialmente o “Ex Isto”? (Digo isso pensando no documentário como a representação do cotidiano e a ficção como a representação a partir de uma série de interferências, como a criação de situações ficcionais)

Esse papo de ficção e documentário está restringindo muito as reais discussões sobre cinema. Em todos os filmes que realizei existiram situações reais e situações criadas. Mesmo assim, quando se imagina uma situação ‘criada’ ela se torna real diante da câmera, então podemos deduzir disso que o cinema é a arte do real, por mais que se utilize de atores, roteiros, cenários e ‘criações’ anteriores ao fato cinematográfico. A realidade está permeada de ficções. Eu ando hoje nas ruas das cidades e quase não acredito no que vejo. Eu entro numa sala de cinema para ver uma ficção-científica-pós-moderna-em-3D e acho mais real do que atravessar uma avenida na hora do rush. Onde, então, está a ficção e onde está a realidade? O que é mais real, um grão de areia ou a última das galáxias? O que é o advento da visão relacionado à realidade? Precisamos, hoje, ver para crer? Um filme é feito para e principalmente com o espectador. E quem é hoje o espectador? E quem é o futuro espectador? Alguém que experimenta mais a realidade em 3D do que simplesmente andar pelas ruas e comprar uma banana na esquina? “O Homem das Multidões” será um filme sobre isso. Sobre essa mistura entre o real e o virtual, sobre a solidão e o desespero que nascem disso.

Revista de CINEMA – “O Homem das Multidões” é a terceira parte da Trilogia da Solidão, formada também por “A Alma do Osso” e “Andarilho”. De que maneira ele se aproximará dos dois filmes e por que esse interesse em tratar da solidão?

A solidão é um dos grandes temas da humanidade, comum a todo e qualquer ser humano. Tanto em “Andarilho” quanto em “A alma do Osso” busquei personagens que experimentavam uma forma de vida diferente da comum, seres à deriva da sociedade, um pouco por curiosidade por essas formas diferentes do estar no mundo, um pouco para tentar desestigmatizar o que se pensa dessas pessoas. Em “O Homem das Multidões”, o personagem principal não consegue nunca estar só, seguindo aglomerados de pessoas nas ruas de uma cidade grande. E não conseguir estar sozinho me parece das maiores solidões possíveis. A única diferença é que neste filme um ator desempenhará o papel do personagem e não personagens reais como foi o caso dos dois primeiros filmes. E o filme partirá de um roteiro pré-construído, o que não significa renunciar a uma interação radical com a realidade.

Revista de CINEMA – O “Ex Isto” é, também, de certo modo, um filme de um personagem, um solitário. Porém, pela primeira vez, feito por um ator profissional interpretando um papel. Quão diferente foi isso? E por que tal escolha?

O porquê da escolha foi óbvio: seria impossível encontrar o verdadeiro René Descartes para interpretar a si mesmo. Durante a fase preparativa, me isolei com o ator João Miguel por alguns dias para lermos o “Catatau” (e outros livros de Paulo Leminski e de Descartes, ver alguns filmes, etc.) juntos, anotando algumas ideias, grifando algumas passagens e conversando bastante sobre tudo que girava em torno desse universo. Convidei o João justamente porque sabia de sua vontade de participar de uma proposta diferente de fazer cinema, de sua capacidade de impregnação e imersão nas coisas que faz e no seu talento construtivo e criador de um personagem. Óbvio que estávamos os dois diante de uma proposta inteiramente nova para cada um de nós (o que é muito saudável), e as conversas sobre o “Catatau” chegavam a ser hilárias, pois é um livro muito aberto a diferentes interpretações. Depois de muito blá blá blá interessante sintetizamos uma conclusão nos seguintes termos: “João, você é René Descartes, o pai da filosofia moderna. E o que faz um filósofo? Pensa! Então pense, que eu vou filmar o seu pensamento!” E, por incrível que pareça, às vezes, no filme, posso sentir o que ele está pensando através de seu olhar (a construção narrativa do olhar do personagem durante todo o filme é das coisas mais lindas que o João Miguel já fez). Fragmentos grifados do livro foram, ao final da viagem (dentro de um quarto do Hotel Nacional em Brasília), gravados numa locução em off do ator ainda completamente impregnado do personagem (depois tentamos gravar outras coisas em estúdio, mas não conseguimos mais aquele tom, aquela força mágica da voz em pleno processo catártico entre ator/personagem). Esses fragmentos gravados serviram à escritura do filme feita na montagem. Roteiro de filme, para mim, é a montagem. Ali realmente escrevo o filme, imprimo-lhe ritmo e frequência, dou ordem ao caos.

Revista de CINEMA – O fato de vermos João Miguel fazendo René Descartes e interagindo com a natureza e com as pessoas causa um choque muito maior no espectador. Era essa a intenção? Por que fazê-lo interagir com a população local urbana?

Seria impossível para mim, enquanto diretor, fazer uma adaptação ao pé da letra de uma obra literária, acho que não conseguiria, não combina com o tipo de cinema que faço. Então o que fiz foi uma obra bastante livremente inspirada no “Catatau”, e me pareceu interessante do ponto de vista narrativo me permitir esses saltos cenográficos e cronológicos. O filme parece começar como um filme de época (século XVII), e de repente você está na Recife do século XXI.

Revista de CINEMA – O filme é livremente adaptado do “Catatau” do Paulo Leminski, uma obra, teoricamente, inadaptável. Como foi o processo para encontrar o que seria o filme? O longa é também um projeto de encomenda do Itaú Cultural, parte da série Iconoclássicos, que busca biografar personagens da cultura brasileira que tiveram exposições na série Ocupação. Por que aceitou esse trabalho, mesmo sendo, em teoria, tão diferente do que você faz? Ou já era sabido que não precisaria fazer uma biografia?

Quando o Itaú Cultural me convidou para fazer o filme, disse que topava fazer se eles me dessem liberdade total, ou seja, não precisaria (e nem conseguiria) fazer uma biografia clássica sobre o poeta. Ao reler a obra do poeta foi o “Catatau” que mais me instigou. Basicamente três sensações que o livro me trouxe ao lê-lo me seduziram na direção de uma aventura cinematográfica: a sensação da riqueza de seu argumento ou potência de sua proposição inicial (a suposição de uma possível vinda do filósofo René Descartes aos trópicos brasileiros com Mauricio de Nassau); a fluidez de suas palavras lidas em viva-voz; e, finalmente, uma deliciosa sensação de estar em um lugar anterior aos sentidos das palavras, um lugar parecido com o dos bebês quando ainda estão aprendendo a falar, onde os sentidos das palavras estão como que pairando em um certo horizonte que se aproxima e nunca chega. Óbvio que entendo este filme não como uma adaptação cinematográfica de uma obra literária, mas uma transcrição muito pessoal do livro em filme. É uma leitura muito subjetiva, procurei muito mais seguir a característica transgressora, inovadora e aberta da obra do poeta do que fazer um espelhamento narrativo da obra. Acho que o filme não se parece com o livro, mas seu cerne e sua ideia central estão ali. Procurei fazer com imagens e sons o que Leminski fez com as palavras, do meu jeito mas com o mesmo sentido libertário.

Revista de CINEMA – Por que “Ex isto”, com essa grafia específica?

É um jogo de palavra com o “Cogito ergo sum” do filósofo. “Penso logo existo”, “penso logo ex isto”. Indica, sobretudo, a mudança pela qual o filósofo passa no decorrer do filme ao entrar em contato com os trópicos. Indica uma transformação, um outro isto, uma nova visão das coisas.

Revista de CINEMA – Você fez Filosofia e Jornalismo. Isso influenciou de alguma forma seus trabalhos artísticos?

Não sou formado em nada. Apenas cursei alguns anos de faculdade, não sou um bicho acadêmico. Mas sempre fui um leitor compulsivo e adoro filosofia, então a influência é óbvia, não exatamente da universidade, mas dos filósofos que li.

Revista de CINEMA – Depois você se especializou na fotografia, e ganhou o mundo como artista plástico. Qual a relação de seus filmes – arte em que se embrenhou posteriormente – e sua concepção de artista plástico e fotógrafo? O que você acha da pecha de videoarte?

Sou um ser da imagem, sempre me fascinei pelo advento da imagem desde a primeira vez que entrei em uma câmera escura. E sempre fui fascinado pelo cinema, um frequentador assíduo de cineclubes. Então era natural a continuidade da fotografia no cinema e no vídeo (que considero mais ou menos a mesma coisa). Tudo depende do assunto que escolho e, a partir daí, tomo a decisão em resolver a obra em alguma dessas formas artísticas. O termo videoarte, para mim, não existe. Existe, sim, obras audiovisuais resolvidas em vídeo ou película, mostradas em salas de cinemas ou museus e galerias de arte.

Revista de CINEMA – E o que o levou das artes plásticas para o cinema?

Não fui de uma coisa para outra, ainda transito nas duas áreas. Meu interesse pelo cinema ainda é anterior ao interesse pelas artes plásticas. Assisti milhares de filmes na juventude, e o espectador também é um cineasta, então posso dizer que fui antes cineasta que artista plástico.

Revista de CINEMA – Se hoje, com o reconhecimento que você atingiu enquanto cineasta no mundo inteiro, já é difícil conseguir financiamento para filmar, como você fazia antes de ter alcançado tal status, nos primeiros curtas e longas?

Amor pelo cinema e vontade de fazer. Encontrar cúmplices e parceiros com uma sensibilidade artística parecida, que topem a empreitada com você. Uma ideia, uma câmera, um equipamento de som e um carro (quando necessário).

Revista de CINEMA – Como funciona seu processo de criação de um filme? Você trabalha com roteiro, argumento?

Geralmente não elaboro um roteiro antes de filmar. Prefiro o que chamo de filme-processo. Como sempre trabalho na interseção entre o real e o ficcional, prefiro dispensar um roteiro tradicional de cinema, pois imagino que ele me prenderia a certos caminhos pré-determinados. Prefiro pensar o filme como uma entidade ainda desconhecida esperando seu cavalo de santo (a equipe do filme) para baixar. E para isso é preciso principalmente respeito à entidade, uma percepção aguda para sentir sua presença e uma capacidade de adequação à forma na qual ela quer existir. Essa relação é uma relação de troca que me remete muito a frase do filosofo Merleau-Ponty: “Não é o escultor quem esculpe a escultura, mas a escultura quem esculpe o escultor.” Acompanho os personagens até o momento em que sinto que o filme já está “na lata” (como se dizia antigamente).

Revista de CINEMA – Como é feita a escolha de um personagem e de um local, no caso dos documentários?

Uma coisa geralmente está relacionada a outra, mas pode também não estar. Normalmente, os cenários dos meus filmes são os cenários onde os personagens transitam, mas posso também gerar estranhamentos sugerindo locações diferentes do universo do personagem (o que é mais raro). Elejo os personagens de meus filmes pela força expressiva que demonstram e por sua capacidade de interpretar a si mesmo ou a um personagem qualquer que tenha relação com sua pessoa (no caso de atores). As locações são também elementos fundamentais de construção narrativa em meus filmes, pois de suas linhas e características formais nasce muito da força compositiva de um quadro cinematográfico.

Revista de CINEMA – Quais, você diria, são suas principais influências na sua atividade cinematográfica?

Varia muito de acordo com a época em que estou vivendo. Mas posso dizer que cineastas (e também artistas, escritores, filósofos, etc.) mais iconoclastas como [Andrei] Tarkovsky, [Alexander] Sokurov, [Michelangelo] Antonioni possuem uma influência mais permanente. Sempre volto aos seus filmes nas tardes vazias de um domingo.

Revista de CINEMA – E quem você considera influenciado pelo seu trabalho?

Não saberia dizer. Desde uma velhinha que após um filme meu veio me dizer que o filme mudou a vida dela (o que por si só já justificaria anos de trabalho cinematográfico a que me dediquei) até jovens pesquisadores, realizadores, artistas de lugares e culturas diferentes que sempre se dizem tocados pelo trabalho. Fui influenciado por muita gente e acho as influências saudáveis em determinados momentos da vida de uma pessoa. Da mesma forma que posso influenciar, sou influenciado pelo público de meus filmes, que são comigo coautores da obra. Muitas vezes percebo que os filmes que fiz são outros filmes nos olhos do outro, e isso é justamente a maior riqueza do trabalho artístico – essa indefinição, essa incerteza, essa coisa camaleônica e mutante que se transmuta e se multiplica em cada ser.

Revista de CINEMA – Como se dá sua relação com a Teia? E com O Grivo?

Com a Teia, somos amigos, vivemos na mesma cidade e, naturalmente, trocamos algumas figurinhas. Admiro o trabalho de cooperação que eles têm entre eles e outros grupos de realizadores pelo Brasil e uma atitude de autonomia e renovação na forma de fazer cinema. Já realizei até uma parceria com o Pablo Lobato (um dos integrantes da Teia), dirigindo juntos o longa-metragem “Acidente”. Já o Nelsinho e o Canário, do O Grivo, são minha cara-metade. Os caras me ensinaram a escutar (o que não é pouco!)

Revista de CINEMA – Você costuma comparar a realidade (e, de certo meio, a forma de seu cinema) com um lago. Como sair da contemplação e chegar à imersão?

A realidade é uma coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelho sem fundo de um homem, uma cultura, um país. Se a pensarmos como essa lâmina reflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de um lago, podemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras:

Podemos ficar sentados no barranco contemplando sua superfície (e acho que a pele das coisas é um universo imenso que revela muito do que no fundo se esconde). Existe aí a possibilidade de um distanciamento, uma relação filtrada por um olhar distante, um olhar passante, algo que incide e elege, no momento mesmo do encontro da imagem que é dada e os olhos que a percebem.

Podemos, ainda sentados no barranco ou em pé na margem do lago, lançar uma pedra na água para vê-la reverberar, gerar um movimento tectônico em sua superfície, embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organizado. Essa pedra funciona como um conceito, um dispositivo, uma proposição. Os trabalhos oriundos deste método são fundamentados no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona um movimento que produz uma reação. São trabalhos que jogam com a noção do esvaziamento da autoria, ou pelo menos, nutrem o desejo do compartilhamento desta. Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamentados em uma ação que espera uma reação.

E, finalmente, podemos lançarmos a nós mesmos nesse lago. Afundarmos inteiros nessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Esta atitude imersiva reflete um desejo de entrega e investigação, uma propensão ao embate, à mescla, a vivenciar um pouco mais de perto o que se esconde dentro do espelho, no fundo das águas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com a calmaria do lago.
Obviamente, essas três formas de posicionamento diante da realidade não são estanques e se embaralham umas nas outras. Não perco minha faculdade contemplativa, nem propositiva, quando me lanço imersivamente nas águas do lago.

Revista de CINEMA – Nos seus filmes, o som é tão forte quanto a imagem, especialmente naqueles em que predomina o silêncio. Como se dá a construção dessa atmosfera?

Essa atmosfera é construída junto com o Grivo, que participa de todo o processo de feitura dos filmes e já conhece profundamente as coisas de que gosto (e até das que achava um pouco estranhas e aprendi a gostar). O papel deles nos filmes é tão importante quanto o meu. São diretamente responsáveis pela outra camada narrativa, da mesma importância da imagem em um trabalho audiovisual: o som.

Revista de CINEMA – Infelizmente, devido ao nosso mercado exibidor, que prioriza apenas os filmes que podem dar um ótimo lucro, seus filmes, que são mais herméticos, têm dificuldade de encontrar um espaço, sendo vistos mais pelo público de festivais. Mas isso tem mudado um pouco: “Andarilho” e “Rua de Mão Dupla” foram lançados em DVD, e “A Alma do Osso” chegou às salas comerciais, assim como deve ocorrer em 2011 com “Ex Isto”. Como você vê essa mudança?

Como qualquer artista, faço obras para serem vistas. Mas não me preocupo muito (nem saberia fazê-lo) com o árduo processo de distribuição dessas obras. Acredito na força dos filmes e acho que, como crianças que botamos no mundo, eles mesmos encontrarão seu espaço. Não tenho pressa, prefiro ocupar meu tempo em realizar outras obras do que ficar discutindo valores estéticos e cinematográficos de uma obra com exibidores e distribuidores de cinema.

Revista de CINEMA – Você pensa na internet como meio de alcançar mais espectadores?

Não penso nisso, mas acredito, sim, na força da internet com relação a isso. Aí está o futuro (e por que não dizer, já o presente).

Revista de CINEMA – Você tem outros projetos fílmicos pela frente? Quais?

Tenho muitos projetos, alguns que ainda nem sei quais são. No meu caso, muitas vezes os filmes simplesmente acontecem. Nunca parei de fazer curtas, pois nunca parei de fazer cinema. Vou parar de fazer curtas quando parar de fazer cinema, pois um filme nunca diz antes o tamanho que ele quer ter. Tamanho não é documento!

Por Gabriel Carneiro

One thought on “A arte do sentido

  • 2 de outubro de 2011 em 16:12
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    Gênio, Gênio, Gênio………..!!!!!!!!!

    Viva o cinema brasileiro!

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