Desejo e poder em “Crazy Horse”, de Frederick Wiseman
Frederick Wiseman estreou no cinema com “Titicut Follies” (1967), sobre o dia a dia do manicômio judiciário de Bridgewater, em Massachusetts, afirmando uma postura ainda mais radical dentro do cinema americano, buscando diminuir ao máximo a interferência da equipe e da câmera sobre o meio documentado e mantendo um forte controle narrativo através da montagem. De lá para cá, já são mais de 30 documentários nos quais Wiseman registra as relações entre o espaço, o tempo, os corpos, as leis e os poderes institucionais: da prisão à escola, da polícia ao laboratório científico, do zoológico à moda. Um projeto ambicioso, perseverante e paciente de cartografia das instituições americanas. Um projeto no qual Wiseman investe toda uma vida. Após filmar o balé de Paris (“La Danse”, 2009) e uma academia de boxe nos Estados Unidos (“Boxing Gym”, 2010), o documentarista americano se volta para o cabaré mais famoso do mundo em “Crazy Horse”, seu 39° filme.
Em Paris, Le Crazy Horse é quase tão emblemático quanto a Torre Eiffel ou o Louvre. A casa se orgulhava de ser “o melhor show de dança nu no mundo” desde 1951. Le Crazy Horse distingue-se dos clubes de striptease ao incorporar os padrões exigentes das coreografias de balé. Filmado ao longo de dez semanas, o documentário de Wiseman nos leva pela mão ao perfeccionismo, à exigência e à elegância, que se escondem por detrás da inexpugnável imagem da lendária casa parisiense. Aos poucos, depois de longas sequências de dança, filmadas em sua maior parte em closes, “Crazy Horse” se concentra no desenvolvimento de um novo espetáculo coreografado e dirigido por Philippe Decouflé, intitulado “Desejos”.
Como em “La Danse”, este novo documentário se divide, de um lado, nos movimentos burocráticos e questões administrativo-financeiras da casa e do novo espetáculo, e do outro, no trabalho das dançarinas, com ênfase nos ensaios. O foco de Wiseman está na verdade justamente em uma noção de processo. Assistimos a reuniões, momentos de introspecção e reflexão, entrevistas (aproveitando a presença de equipes de televisão que passam pela casa), e, sobretudo, os ensaios. Wiseman registra o trabalho das dançarinas em takes longos e faz escolhas cuidadosas de encenação para potencializar a ação e o erotismo de alguns movimentos. É curioso: as imagens dos ensaios não nos chegam carregadas de algum peso simbólico ou de uma missão discursiva; elas valem por si mesmas.
O Le Crazy Horse, como é de costume no cinema de Wiseman, é visto como uma espécie de instituição, especialmente, no que diz respeito às diversas disputas de poder que a compõe. Contudo, talvez o grande tema deste documentário seja o desejo. A projeção do desejo sempre esteve em jogo no cinema. Wiseman ilustra o conceito e seu funcionamento. Aposta também em uma longa desconstrução, com mais de duas horas de ensaios técnicos dos números criados por Decouflé. Este, aliás, aparece a todo mundo discutindo o termo desejo. Wiseman não individualiza as dançarinas, quase sempre fragmentadas em bundas, pernas, seios, braços… As apresentações de dança nos convencem certamente de que este é um cabaré diferente. Wiseman e seu operador de câmera ajudam bastante, usando uma grande variedade de géis e filtros, e aproveitando a iluminação do próprio espetáculo. Por vezes, a impressão é a de estarmos vendo uma espécie de caleidoscópio para maiores. É como se os corpos das bailarinas fossem elementos cinematográficos.
Crazy Horse (EUA/FRA, 134 min., 2011)
Direção: Frederick Wiseman
Distribuição: Petrini Filmes
Estreia: 25 de janeiro
Por Julio Bezerra