Hiroshima meu Amor

Os 15 minutos iniciais de “Hiroshima, meu Amor” (1959), do francês Alain Resnais, estão entre os momentos supremos da sétima arte. À imagem de um casal na cama, numa cena de amor, alternam-se as de documentos sobre os horrores da bomba atômica sobre Hiroshima: corpos espalhados a esmo numa enfermaria, closes em deformações como consequência da radiação, exposição de fotos da hecatombe, o museu que guarda o passado. Enquanto as imagens se alternam, duas vozes em off, uma de mulher e outra de homem. Ela lembra os horrores, acentua a cada frase que viu tudo e não pode esquecer o que viu; ele, em contraponto, diz que ela não viu nada.

Essas imagens, como se verá na sequência, são um exercício de metalinguagem: um filme dentro de outro filme, do qual ela é atriz, que traz uma mensagem de paz; um libelo, pois, contra a guerra. Passados os 15 minutos de abertura, o foco se volta para o casal. Ela, uma francesa que foi à Hiroshima para fazer o filme; ele, um arquiteto que à época da bomba estava na guerra, no Pacífico. Aquele é o primeiro encontro deles, e ela tem viagem marcada de volta à França no dia seguinte. Esse encontro fortuito entre amantes, no entanto, é marcado por forte envolvimento emocional.

O enlace amoroso a faz recordar de uma paixão adolescente na França, à época da ocupação, por um militar alemão. Esse militar morre alvejado um dia antes de sua cidade natal, Nevers, ser libertada. Ela, que entregara sua virgindade ao inimigo, é humilhada publicamente pela desonra e expulsa da cidade. Resnais explora, de modo radical, os recursos de flashbacks, elipses e alusões, o que faz de “Hiroshima, meu Amor”, uma das experiências de estilo mais refinadas da história do cinema; com esse filme se estabeleceu um parâmetro estético que exerceu poderosa influência em cineastas tão diferentes quanto os recentes Wong Kar-Way, em “Amor à Flor da Pele” (2000), ou Nuri Bilge Ceylan, em “Climas” (2006).

Mas “Hiroshima, meu Amor” não é apenas um belo exercício de estilo. Por meio das narrativas paralelas de amor impossível, na guerra ou na paz, uma profunda inflexão sobre o tempo e a memória. A pretensão é a de reter em imagens o que fizeram Henry Bérgson na filosofia e Marcel Proust na literatura. A memória é inseparável do sentimento de tempo, ou da percepção do tempo como algo que flui ou passa. Ou seja, pelas mãos do artista, a memória, ou “fluxo de duração”, confere eternidade ao fugaz: a presença do passado, que permanece como lembrança. De modo que lembrar é trazer à consciência o que não é presente, mas sem a qual este carece de sentido, pois do passado restam sinais, marcas, cujos significados condensam a experiência vivida.

Assim sendo, no nível simbólico, Hiroshima está em Nevers, na perda do amor adolescente em consequência da guerra; e, da mesma forma, Nevers está em Hiroshima, onde a perda é presentificada em outra situação amorosa. Por isso, na cena final, ela diz que ele é Hiroshima e ela é Nevers. Ver e rever “Hiroshima, meu Amor” é uma experiência na qual se evocam as marcas deixadas no passado; na qual se evocam episódios vividos e retidos pela lembrança. Em nova versão pela Versátil, para quem viu a fita no início dos 60, não deixa de ser um nostálgico exercício lembrar como “Hiroshima, meu Amor” foi recebido, como experiência cinematográfica; para quem não viu, perceber como o vivido se universaliza por meio da arte.

 

Por Humberto Pereira da Silva

 

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