Filme família

Há uma sensação de desconcerto com o mundo em “Era Uma Vez em Nova York” (2013), quinto longa do diretor norte-americano James Gray. O filme, que estreou na mostra oficial de Cannes do ano passado, acompanha Ewa Cybulska (Marion Cotillard), uma jovem polonesa que vai aos EUA, em 1921, ao lado de sua irmã, Magda, fugindo da revolução socialista e em busca do sonho americano. A história de Ewa é a mesma de tantas: persegue um sonho que é apenas esperança, chegando a um lugar nada acolhedor, preconceituoso e opressor. Em Ellis Island, aonde aporta, sua irmã é internada, vítima de tuberculose, e Ewa é acusada de ser uma mulher de moral duvidosa. O destino de Ewa e Magda parece ser a deportação. É quando, desesperada, Ewa se depara com Bruno (Joaquin Phoenix), um cafetão responsável por gerenciar as apresentações femininas de um cabaret.

Ewa segue Bruno ao bairro judaico de Nova York, ainda dominado por cortiços e imigrantes – num cenário muito próximo ao visto em “Era Uma Vez na América” (1984), de Sergio Leone. Aliciada por Bruno, eventualmente, a jovem se entrega aos shows e à prostituição, como única alternativa para conseguir dinheiro e soltar sua irmã.

Gray ainda mostra que seu assunto principal é o submundo, aonde as pessoas só podem depender delas mesmas para sobreviver. Parece interessar a Gray como as pessoas se comportam frente às adversidades e com tão poucas alternativas na vida. Para Ewa, depois de ser falsamente enganada e enxotada da casa do tio, só lhe resta a irmã, seu único elo com uma possível felicidade. Tudo o que ela faz é pensando nisso, por mais que passe a se odiar e a odiar os outros.

Afinal de contas, Gray parece ser, acima de tudo, um cineasta de famílias. Descendente de russos judeus, James Gray sempre coloca estas raízes em suas histórias. Está sempre lá a comunidade de imigrantes eslavos, em geral russos – em “Era Uma Vez em Nova York”, poloneses –, em que a relação familiar é forte, ainda que desgastada. Algo como o sangue acima de tudo. Desde seu primeiro longa, “Fuga para Odessa” (1994), Gray se debruça sobre as comunidades de imigrantes nos EUA; o desgaste familiar já estava também em seu curta, “Cowboys and Angels” (1991).

Não é de se espantar, portanto, um filme como “Era Uma Vez em Nova York”, que parece tão diferente dos filmes anteriores de Gray – o visual sóbrio e emocional, o gosto em expor a direção de arte de época, o submundo não calcado em drogas, álcool ou tramas policiais etc. “Era Uma Vez em Nova York” é, essencialmente, uma busca do cineasta pela gênese de suas histórias, quase tentando entender como tudo começou, o que fizeram seus demais personagens serem o que são em seus outros filmes. Gray investiga o momento inaugural, a desilusão logo durante a chegada à terra dos sonhos e o submundo – os pequenos delitos, as vulgaridades tidas como amorais, a lógica do aproveitador – como melhor alternativa. E, talvez, o que melhor represente isso é a transmutação do maior ícone do sonho americano, a Estátua da Liberdade. Se no primeiro plano ela aponta para um futuro esperançoso; ela só passará a existir em Ewa, que, no cabaret, passa a encarnar a Lady Liberty, trajando a fantasia da estátua – só Ewa pode ser o cerne do vindouro.

Ewa é uma mulher que passa o filme inteiro sofrendo. Mesmo que pareça ingênua, a princípio, sabe muito bem ser dona de si, a ponto de, deliberadamente, se vender por um objetivo certeiro e usando de sua influência sobre Bruno quando precisa. É uma mulher consciente do que faz: se ela se odeia e odeia a Bruno por se sentir como lixo, é porque vislumbra um futuro em que isso será superado, basta suportar um pouco mais.

O sangue que salva Ewa. O apego em salvar a irmã é o que a faz superar todas suas eventuais adversidades – filmadas, vale ressaltar, de maneira bastante sóbria, sem tom edificante algum. O trajeto é o mesmo percorrido em filmes como “Caminho sem Volta” (2000) e sua obra-prima até o momento “Os Donos da Noite” (2007), em que as eventuais discordâncias e atritos são colocados de lado por um bem maior, o da família. Não à toa, esses filmes que versam sobre a família falem tanto da máfia, instituição que tem a família em mais alta conta.

A colaboração com o roteirista Ric Menello em “Amantes” (2008) e agora em “Era Uma Vez em Nova York”, porém, tem dado aos filmes um caráter mais afetuoso e romântico, ainda que mantenham a crueza dos trabalhos anteriores. Gray é um cineasta sem frescuras, que soube depurar seu trabalho estético para o mínimo necessário. Os desvios amorosos de seus dois filmes mais recentes fizeram, infelizmente, com que perdessem um pouco de sua força, alongando-os para além do necessário, muitas vezes. Claro, não deixam de serem filmes potentes, em especial esse “Era Uma Vez em Nova York”, talvez sua história mais triste – e com final mais feliz.

 

Era Uma Vez em Nova York
The Immigrant, 90 min., EUA, 2013
Direção: James Gray
Distribuição: Europa Filmes
Em cartaz

 

Por Gabriel Carneiro

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