Elipses em “Acima das Nuvens”

O francês Olivier Assayas pode não sempre acertar em cheio, mas parece ser um dos cineastas atuais mais ligados ao que está acontecendo no mundo. Seus filmes, em maior ou menor grau, tendem a refletir anseios próprios à nossa contemporaneidade. “Depois de Maio” (2012) buscava, na ressaca de maio de 68, mapear as tensões sócio-políticas entre interesses diversos; “Horas de Verão” (2008) apontava para o conflito geracional e para o desinteresse generalizado no passado; “Clean” (2004) se debruçava sobre o mundo das drogas para mostrar o esvaziamento da vida hipermidiática. “Acima das Nuvens”, por sua vez, fala sobre o tempo. Seja sobre o frenesi das informações e o caráter desproporcional que elas podem atingir (para logo em seguida serem esquecidas), seja sobre o efeito da vivência nos indivíduos.

Maria Enders (Juliette Binoche) é uma renomada atriz, que estourou ao interpretar Sigrid no filme e na peça “Maloja Snake”, de Wilhelm Melchior. Com a morte do diretor e dramaturgo, Maria acaba aceitando fazer a peça novamente, a ser dirigida por Klaus Diesterweg (Lars Eidinger), porém no papel de Helena. Em “Maloja Snake”, Sigrid, uma jovem de vinte anos seduz sua chefe, Helena, uma mulher madura, que se deixa levar pelo relacionamento turbulento com a garota que pouco parece se importar com a amante.

“Acima das Nuvens” acompanha, assim, Maria Enders, entre descobrir sobre a morte de seu mentor, Melchior, e mais detidamente no processo de estudo da personagem, ao lado da assistente Valentine (Kristen Stewart), na casa de campo de Melchior em Sils Maria.

Para o seu antigo papel, Sigrid, Klaus escalou Jo-Ann Ellis (Chloë Grace Moretz), uma estrela hollywoodiana de blockbusters que preenche as páginas dos tabloides com sua vida pouco regrada.

Há, muito fortemente no filme, a questão do papel da mídia na arte, ou como a invasão de privacidade de artistas, bem como a boataria em torno de seus nomes, pode ser prejudicial à arte em si. A partir do momento que Jo-Ann entra em cena, o teatro, as artes dramáticas e cênicas são pouco discutidas ou questionadas. O foco daquela realidade passa a ser o dos escândalos potenciais da jovem atriz. A própria Maria sofre com essa indústria paralela, a ponto de ela ter deixado de acompanhá-la e, portanto, não estar mais inteirada no que acontece com as celebridades. Assayas aponta justamente para o frenesi em torno das informações, superficiais e descartáveis, mas com um peso social muito maior que qualquer outra coisa, capaz de afundar ou popularizar o mundo das artes.

Parece mais forte ainda o trabalho de Assayas sobre a influência do passar do tempo sobre as personagens. No processo de estudo da personagem de Helena, Maria enfrenta seus maiores demônios, confrontando-se com seu passado, sua memória afetiva do processo anterior, sua velhice porvir e sua própria interpretação do texto. Para ela, parece ser inconcebível, em vinte anos, ter se transformado em seu oposto. A personagem de Valentine existe para instigá-la e provocá-la quanto à forma como encara o texto de Melchior. Para apontar que a perspectiva muda dependendo de onde se está – ou seja, tudo pode estar sempre em constante mudança –, Assayas explora o intertexto e a metalinguagem em, no mínimo, três camadas. O estudo da peça de “Maloja Snake” sendo a mais superficial; o jogo encenado entre Maria e Valentine, que, em sua relação pessoal, reverberam a teatralidade de Sigrid e Helena; e a própria noção de que as atrizes em questão, Juliette Binoche e Kristen Stewart (e também Chloë Moretz) encarnam, de certa forma, seus personagens, Maria e Valentine (e Jo-Ann), como se o papel as refletisse em como o mundo as vê.

O tempo também é característica marcante de um recurso muito utilizado por Assayas no filme para construir sua atmosfera, as elipses. Os saltos temporais, em “Acima das Nuvens”, em vários momentos, são pontuados por fusões e fades, que parecem abruptos, mas são suavizados pela fusão. Quase como se Assayas filmasse a derrocada do instante. No momento em que aquilo para de fazer sentido à narrativa ou não acrescenta mais nada, o andamento é interrompido e o restante de uma história porvir some, sem rastros ou explicações. É também a perspectiva do tempo que, mesmo implacável, não retém tudo.

Tais elipses se coadunam com as nuvens que dão título aos filmes – “Clouds of Sils Maria” e “Maloja Snake”. Em Sils Maria, há um fenômeno, em que as nuvens de Sils Maria, comunidade do distrito de Maloja, na Suíça, serpenteiam pelo vale, possibilitando quem está nas montanhas vislumbrar, por cima, o mar de nuvens tomarem o local. O fenômeno foi documentado em 1924 por Arnold Fanck, no curta “Das Wolkenphaenomen von Maloja”, filme que fascina os personagens e o próprio diretor, que emula planos idênticos ao registrar o acontecimento. O fenômeno funciona assim como lugar seguro, como algo eterno, mas completamente dependente do tempo (porque precisa-se olhar para o passado para perceber). Certas coisas nunca mudam.

Acima das Nuvens | Clouds of Sils Maria
França, Suíça, Alemanha, 2014
Direção: Olivier Assayas
Distribuição: Califórnia Filmes
Estreia: 8 de janeiro

 

Por Gabriel Carneiro

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