“Ausência”, de Chico Teixeira, sagra-se o grande vencedor de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

 

Discursos políticos em defesa da normalidade democrática, proferidos pelos produtores Luiz Carlos Barreto, Nilson Rodrigues e Luiz Fernando Emediato, marcaram a noite de entrega dos troféus Kikito aos melhores da quadragésima-terceira edição do Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino. Os curta-metragistas aplaudiram (houve vaias tímidas) a defesa da legalidade constitucional e cobraram “políticas cinematográficas” do Governo do Rio Grande do Sul.

Os principais vencedores de Gramado, este ano, foram “Ausência”, de Chico Teixeira (melhor longa brasileiro), o argentino “La Salada” (melhor longa latino) e o gaúcho “O Corpo”, melhor curta-metragem brasileiro. A escolha do filme de Teixeira foi justíssima, pois trata-se realmente do melhor filme do festival. Igual ou melhor que ele, só “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, selecionado, mas excluído na undécima hora, por “transgressão ao regulamento”.

A festa de entrega dos Kikitos seria inesquecível, se os agradecimentos dos premiados não fossem tão longos, banais e monótonos. E se os entregadores dos troféus não fossem, muitas vezes, apagados representantes de patrocinadores do festival.

O show montado para a TV (Canal Brasil e TV COM dedicaram mais de três horas à cobertura ao vivo do tapete vermelho e da entrega dos Kikitos) buscou parte de sua inspiração na cerimônia do Oscar hollywoodiano. Um telão anunciava os nomes dos profissionais que disputavam o troféu. Diretores, atores e técnicos eram evocados pelos filmes das diversas competições gramadianas. A festa, encerrada na madrugada deste domingo (16 de agosto) contou com música empolgante da banda Rock de Galpão, que homenageou Teixeirinha (Victor Mateus Teixeira – 1927-1985) com o hit “Coração de Luto” (em deliciosa e satírica levada roqueiro-nativista). Homenageou, também, os profissionais hispano-americanos presentes em Gramado (colombianos, uruguaios, argentinos, cubanos, costa-riquenhos, mexicanos e equatorianos). Para estes, a música escolhida foi o hino libertário “Los Hermanos”, de Ataualpa Yupanki, consagrado nas vozes de Mercedes Sosa e Elis Regina. A trupe Rock de Galpão deu ao clássico latino a mesma levada roqueiro-nativista.

Agradecimentos medíocres

Houve atraso de 50 minutos para que a cerimônia dos Kikitos tivesse início. Tudo porque o telão, fundamental na “narrativa” da festa, apresentara defeito. Solucionado o problema, a premiação começou a ser distribuída.

A festança televisiva poderia ter durado enxutos 90 minutos, se houvesse – como faz a Academia de Cinema de Hollywood – forma de deter a retórica vazia dos premiados. Cada troféu anunciado levava ao palco duas, três ou mais pessoas. E todos queriam agradecer a pais, amigos e – o que deve ter nocauteado boa parte da audiência que sintonizou o Canal Brasil e a TV COM – citar os colegas que figuram em intermináveis fichas técnicas dos filmes. Foi uma noite do “quero agradecer ao fulano, sicrano, beltrano, ao meu primo, pai e mãe, avó”, etc, etc. Uma falta total de simancol, pois quem estava na plateia do Palácio dos Festivais e, principalmente, em casa assistindo à transmissão, não sabe quem é fulano (citado só pelo primeiro nome), sicrano, nem beltrano.

Sugiro aos brasileiros – conto nos dedos, em mais de quatro décadas de cobertura de festivais, as ocasiões em que ouvi agradecimentos notáveis como os de Paulo José e/ou Antonio Banderas. O protagonista de “O Padre e a Moça” é um dos raros “agradecedores”, que nos encantam, pois tem poder de síntese e sabe o que dizer. Volto a insistir junto aos meus conterrâneos que leiam o discurso de Antonio Banderas, proferido na noite de entrega dos Prêmios Platino (mês passado, em Marbella, na Espanha) para que tenham a clara noção do que é ter – e saber – o que dizer (há versão em português no Almanakito e no site da Egeda-FIPCA-Prêmio Platino. E no site do próprio Banderas).

SEM DISTRIBUTIVISMO

Os três júris de Gramado foram rigorosos e não-distributivistas. O que é ótimo. Um (só) pecado grave foi cometido pelo júri latino. Como é que dois filmes – um mexicano e um cubano – ganham os principais prêmios artísticos e técnicos e o vencedor não é nenhum deles?? Tudo indica que não houve como decidir por “En la Estancia” ou “Venecia”. O jeito foi arrumar um tertius, até então ignorado (o argentino “La Salada”).

Alguns pecadilhos foram cometidos. A turma do curta ignorou “Dá Licença de Contar” (o escolhido da Crítica e do Canal Brasil). E premiou o exibicionista “Virgindade”. Mas acertou em cheio ao investir em três dos melhores momentos da competição (“O Corpo”, “O Teto sobre Nós” e “Quando Parei de me Preocupar com Canalhas”).

No campo dos atores, as escolhas foram boas. Mariana Ximenes foi eleita melhor atriz, por sua Josie em “Um Homem Só”. Se o troféu tivesse ficado com Gilda Nomacce, de “Ausência”, também estaria em ótimas mãos. O melhor coadjuvante foi o “feio, gordo, esdrúxulo e na maioria das vezes coadjuvante” (palavras dele no debate de “Um Homem Só”) Otávio Muller. Perfeito. O Kikito ficaria bem, também, nas mãos de Eucir Ramos (“Ponto Zero”). Tudo indica, porém, que a atrevida (e corajosa) estreia de Zé Pedro Goulart (parceiro de Jorge Furtado no magistral “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”) no longa-metragem não agradou ao júri formado com o crítico Zé Geraldo Couto, o maestro Jacques Morelembaum, a atriz Rita Carelli, a técnica de som Maria Muricy e a mexicana Ana Zamboni (do Festival de Guadalajara).

A Crítica Cinematográfica (o júri foi organizado pela ACCIRS – Associação dos Críticos Cinematográficos do Rio Grande do Sul) caminhou, acomodada, pela zona de conforto e negou-se a apostar em propostas mais arriscadas. Uma pena.

O ANO LATINO

A quadragésima-terceira edição de Gramado ficará na história como “o ano da consolidação” da Mostra Latina. Sete títulos foram selecionados. Do México à Terra do Fogo. A América do Sul marcou presença com Equador, Colômbia, Uruguai e Argentina. A América Central, com Cuba e Costa Rica. E a América do Norte com o México. Todos os filmes mandaram nomes de peso de suas equipes artísticas para representá-los. Nas mesas de debates, sentaram-se diretores, atores e técnicos dispostos a dialogar com a imprensa e o público brasileiros. E alguns nomes estelares de nossa América Latina distribuíram simpatia e ganharam aplausos do público. O mais amado foi o veterano Humberto Arango, colombiano de 75 anos, que entrou na sala de debates, ao lado da atriz Reina Sánchez, sob aplausos espontâneos e calorosos. Também encantaram o público o talentosíssimo Cesar “Banheiro do Papa” Troncoso (que ano que vem veremos na cinebiografia de ELIS), o guapo Michel Noher (filho de Jean-Pierre Noher), o discreto uruguaio Abel Tripaldi, o exuberante, belo e mestiço costa-riquenho Leinart Gómez (ele deve atuar na segunda fase de NARCOS, de José Padilha), e o fascinante Gilberto Barraza (que retirou suas próteses dentárias para interpretar um campesino mexicano no doc-fic “En la Estancia”). Se o Kikito de melhor ator latino fosse para qualquer um deles (Barraza foi o eleito), estaria em boas mãos. E de quebra, pudemos conhecer em Gramado 2015, ao vivo e a cores, o sino-argentino Ignacio Huang, aquele chinezinho que nos encantara (ao lado de Ricardo Darín) em “Un Cuento Chino”. Junto com o boliviano Limbert Ticona, ele fez Gramado sorrir. Ambos falam pelos cotovelos e sorriem sem parar.

SPOLIDORO E O GAUCHÃO

O Gaúchão (mostra competitiva de curtas gaúchos) ocupa espaço nobre no Palácio dos Festivais e entrega seus prêmios na terceira noite do evento gaúcho, que agora dura nove dias. O clima de alegria e participação é total.

O cinema riograndense ocupa o Palácio dos Festivais também com mostra informativa de longas-metragens. Este ano, o melhor momento desta secção festivaleira coube ao novo filme de Gustavo Spolidoro (“Errante – Um Filme de Encontros”). Quando Gustavo lançou seu primeiro longa, o ficcional “Ainda Orangotangos”, o crítico Zé Geraldo Couto fez comentário certeiro: “este filme nos faz pensar em quão bons serão os novos longas de Spolidoro quando ele tiver o que dizer” (cito de cabeça). Afinal, “Orangotangos” era um exercício de virtuosismo técnico, mas que (esta é minha opinião) girava em falso. Terminávamos de ver o plano-sequência spolidoriano e nos perguntávamos: para que tanto malabarismo?

Pois agora Spolidoro tem o que dizer (foi assim também em “Morro do Céu”) e fez um ensaio documental que exala prazer, amor por seus personagens, liberdade narrativa e devoção a mestres como Agnes Varda e Jean-Claude Bernadet.

FESTIVAL DOS FESTIVAIS

A maratona gramadiana foi poderosa. Quatro horas diárias de debates de curtas e longas (estes brasileiros e latinos), maratonas vespertinas de filmes gaúchos e ibero-americanos. E maratonas noturnas, que começavam às 19h00 e nunca terminavam antes da meia-noite. Mais homenagens a Marília Pera, Daniel Filho, Zelito Viana e Fernando Solanas, cineasta e senador da República argentina.

Foi nesta exaustiva faina diária que alguns encontraram tempo para ver os quatro integrantes da mostra “Festival dos Festivais”, que reuniu o excelente “Uma Escola de Havana” (Conducta), que a Esfera Filmes lançará em breve em nossas telas (vencedor do Fest Havana), “El Perro Molina”, vencedor do Fest Mar del Plata, “Con el Alma en una Pieza – La Leyenda de El Personal”, documentário sobre banda roqueira mexicana, que perdeu dois vocalistas para a epidemia da Aids (vencedor em Guadalajara), e o português “Os Gatos Não Têm Vertigem”. Esta produção lusitana é um exemplar de como o cinema comercial pode ser cativante e inteligente, dialogar com a plateia, sem tratá-la como um amontoado de gente burra e afeita a grosserias escatológicas. Um filme que merece ser comprado como o foi o imperdível e comovente “Uma Escola de Havana” (finalista do prêmio Platino 2015).

OS VENCEDORES

Longas-metragens brasileiros

AUSÊNCIA (SP) – melhor filme, melhor diretor (Chico Teixeira), melhor roteiro (Chico Teixeira, César Turim, Sabina Azuantegui)

O ÚLTIMO CINE DRIVE-IN (DF) – melhor ator (o maranhense Bruno Nina), atriz coadjuvante (Fernanda Rocha), direção de arte (Maíra Carvalho). Prêmio da Crítica (há que se registrar que “Ausência” não disputou este prêmio, uma vez que o conquistara no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa)

UM HOMEM SÓ (RJ, de Cláudia Jouvin) – melhor atriz (Mariana Ximenez), fotografia (Adrian Teijido), melhor ator coadjuvante (Otávio Muller)

PONTO ZERO (RS, de José Pedro Goulart) – melhor montagem (Frederico Brioni), desenho de som (Kikio Ferraz e Christian Vaz)

*** O júri oficial não atribuiu nenhum prêmio a três dos outros concorrentes: “O Outro Lado Paraíso”, de André Ristum, “O Fim e os Meios”, de Murilo Salles, e “Introdução à Música da Luz”, de Luiz Carlos Lacerda (o oitavo título, o franco-favorito “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, foi desclassificado por contrariar o regulamento do festival, quando decidiu promover pré-estreia em SP). “O Outro Lado do Paraíso” ganhou o troféu Cidade de Gramado por ter sido o eleito pelo Júri Popular.

Longas-metragens latinos

LA SALADA (Argentina, de Juan Martín Hsu) – melhor filme (juri oficial). Prêmio da Crítica

VENECIA (Cuba) – melhor diretor (Kiki Alvarez), atriz (a trinca Claudia Muñiz, Mariangela Pupo, Maribel García Garzón), fotografia (para o colombiano Nicolás Ordoñez)

EN LA ESTANCIA (México, de Carlos Armella) – melhor ator (Gilberto Barraza), roteiro (Carlos Armella). Prêmio Dom Quixote, atribuído pela Federação Internacional de Cineclubes (o diploma traz, como símbolo, uma paloma desenhada por Pablo Picasso e presenteada aos cineclubistas que, há mais de 60 anos, criaram este prêmio)

*** LOS OLVIDADOS – O júri oficial não atribuiu nenhum prêmio aos bons representantes do Equador (o drama memorialista “Ochentaisiete”), do Uruguai (o thriller político “Operación Zanahoria”), da Costa Rica (o drama criminal “Presos”) e da Colômbia (o drama social “Ella”). Este filme, vencedor do Troféu Cidade de Gramado atribuído pelo Júri Popular, foi acusado de formalista (sua fotografia estetizaria a violência registrada no bairro de Ciudad Bolivar, em Bogotá), brutalista e cultor do miserabilismo. O longa da colombiana Líbia Gómes Díaz começa, mesmo, pelo miserabilismo e traz altas doses de brutalismo. Não há como negar que sua sofisticada fotografia em preto-e-branco (salpicada à moda de “O Selvagem da Motocicleta”, de Coppola, com raros elementos em cor) incomoda a muitos. Mas – e isto só não vê quem não quer – o filme conta com uma trinca de atores (os veteranos Humberto Arango e Reina Sánchez e a pre-adolescente Deisy Marulanda) em desempenhos arrebatadores. E mais, humaniza os moradores da mega-favela de Bogotá. Entre eles há muitos assassinos e traficantes, mas há também gente solidária, que se ajuda em busca de soluções de sobrevivência em área que registra índices intoleráveis de violência.

Curtas-metragens brasileiros

O CORPO (RS, de Lucas Cassales) – melhor filme, fotografia (Arno Schuh)

O TETO SOBRE NÓS (RS) – melhor direção (Bruno Carboni), desenho de som (Tiago Bello)

QUANDO PAREI DE ME PREOCUPAR COM CANALHAS (SP)– melhor ator (Matheus Nachtergaele), roteiro (do diretor Tiago Vieira e de Fabrício Ide, a partir de quadrinho de Caco Galhardo, publicado na Revista Piauí, em 2008)

MISS & GRUBS (SP, de Camila Kamimura e Jonas Brandão) – melhor trilha musical (Felipe Junqueira e Samuel Ferrari), direção de arte (Welton Santos)

HARAM (BA, de Max Gaggino) – Prêmio Especial do Júri

HEROI (SP) – melhor atriz (Giuliana Maria)

VIRGINDADE (PE) – melhor montagem (Chico Lacerda)

BÁ (SP, de Leandro Tadashi) – Prêmio do Júri Popular

PRÊMIO AQUISIÇÃO CANAL BRASIL

O curta paulistano “Dá Licença de Contar”, de Pedro Severo, conquistou o Prêmio Aquisição Canal Brasil, no valor de R$ 15 mil.

O filme, que será exibido no Canal 150 da NET, concorrerá, no final do ano, ao Prêmio “O Melhor dos Melhores”, promovido pelo próprio Canal Brasil. Mais de dez filmes laureados com o Prêmio Aquisição passam, então, pelo crivo dos apresentadores do Canal que se orgulha de ser “a casa do cinema brasileiro”. O melhor fará jus a prêmio de R$ 50 mil.

“Dá Licença de Contar” recria, ficcionalmente, o universo temático das canções de Adoniran Barbosa (1910-1982) e é protagonizado por Paulo Miklos (que brilhou também em “Quando Parei de me Preocupar com Canalhas”), Gero Camilo e Gustavo Machado. Miklos interpreta o próprio Adoniran, de bigodinho fino e semelhança surpreendente. Gero dá vida ao “despejado” Mato Grosso (apaixonado por Iracema/Aisha Jambo) e Gustavo Machado faz o sedutor Joca (aquele que não pode perder o trem das onze, pois sua mãe não dorme enquanto ele não chegar).

O júri, que escolheu o filme de Pedro Severo, reuniu os críticos e jornalistas Mônica Kanitz (jornal Metro RS), Mariana Zendron (Portal Uol), Roger Lerina (Zero Hora), Luiz Fernando Zanin Oricchio (Estadão), Robledo Milani (site Papo de Cinema-RS), Lucas Salgado (site Adoro Cinema-RJ ) e Maria do Rosário Caetano (Revista de CINEMA).

O Canal Brasil manteve, na tela do Palácio dos Festivais, anúncio que traz o desenho (animado) de um lobo, vestido à moda do “pirata do Caribe” de Johnny Depp. O exuberante animal tenta derrubar uma casinha, a “casa do cinema brasileiro”. Só que ele (utopicamente, claro!, pois o cinema hollywoodiano continua dando de goleada em todo cinema planetário, e brasileiro, claro!) não consegue.

O canal a cabo, que dedica a íntegra de sua programação ao cinema brasileiro (com uma fresta para o cinema latino-americano, no programa Cone Sul, apresentado pelo franco-argentino Jean-Pierre Noher), depois de ter transmitido a íntegra da entrega dos Kikitos de Gramado, vai apresentar, no próximo dia primeiro de setembro, uma terça-feira, a cerimônia de entrega do Troféu Grande Grande (Grande Prêmio do Cinema Brasileiro), que acontecerá no Cine Odeon – Centro Cultural Severiano Ribeiro, no centro do Rio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.