O Brasil pelos olhos das crianças de Sandra Kogut

O Brasil inteiro cabe em “Campo Grande” (2015), terceiro longa-metragem da carioca Sandra Kogut; as contradições sociais – a relação patrão-empregada; a dificuldade de integração e aceitação de diferentes classes sociais; a ascensão social de classes menos favorecidas; a especulação imobiliária e as constantes intervenções urbanísticas; o confronto de gerações; a rebeldia e o afeto das crianças etc. Em “Campo Grande”, Kogut avança o olhar da criança para o mundo, dessa vez urbano, em relação ao premiado “Mutum” (2007), longa que a revelou para o mundo, exibido em Cannes e Berlim, entre outros – “Campo Grande” também tem feito boa carreira nos festivais: lançado em Toronto, premiado em Havana como melhor direção, exibido em Roma, Mar del Plata e no Rio.

Seu novo filme surgiu de “Mutum”, de uma cena em que a mãe dava o filho que amava a um desconhecido, na esperança de estar dando a ele a chance de uma vida melhor. “Achava que conhecia esse tipo de história – que a gente ouve volta e meia no interior do Brasil –, mas ali percebi como era complexo entender essa situação por dentro, se colocar na pele de cada um dos personagens”, conta. Dali em diante, Kogut ficou obcecada com o assunto. Começou uma pesquisa em abrigos, colhendo histórias com crianças e assistentes sociais. Pensava: “E depois, o que acontece com essas crianças? E com as mães? Das muitas histórias que ouvi, misturadas às minhas lembranças da infância, de um Rio de Janeiro afetivo, foi surgindo o filme. Paralelamente a isso, o Brasil passava por transformações profundas, sociais, urbanas, econômicas. O Rio estava virando um grande canteiro de obras, onde pipocavam construções de todo o tipo, às vezes bem desordenadas. As relações sociais estavam mudando a maneira das pessoas circularem na cidade, suas próprias identidades. O filme se construiu a partir de tudo isso. É um retrato de um instante no país e na vida das pessoas. É um filme que fala de mudanças, daquele momento onde a gente não é mais o que era, mas ainda não virou o que vai ser. Um momento de transição, com todas as incertezas e mistérios que ele contém”, aponta a cineasta, que coescreveu o roteiro com Felipe Sholl.

Sandra Kogut, construindo uma filmografia em que revela os desajustes do mundo, através do olhar inocente da infância. © Mario Miranda Filho

No enredo de “Campo Grande”, as crianças Ygor (Ygor Manuel) e Rayane (Rayane do Amaral) são deixadas na portaria do prédio de Regina (Carla Ribas), endereçadas a ela. Eles não se conhecem e Regina não sabe o que fazer. Ela não quer confusão ou problema, não quer chamar um assistente social de imediato. A mãe disse aos garotos apenas que voltaria. Regina mora em Ipanema, Ygor e Rayane no periférico Campo Grande. Juntos, tentam encontrar a mãe e uma solução.

Trabalhar com o olhar da criança permitiu a Kogut desenhar um painel do Brasil e do Rio de Janeiro com mais delicadeza, apostando na inocência e no desconhecimento para retratar um mundo que oprime e se modifica a cada instante. “A criança é emoção em estado bruto, ainda não está inserida claramente em nada. A infância é um momento onde a gente luta para entender a diferença entre o certo e o errado, as regras do mundo, com muita intensidade. Tudo é absoluto, extremo, inteiro. E também sempre me sinto mais atraída pelas bordas, pelas margens, por aqueles que não estão no primeiro plano, no centro da imagem”, explica a cineasta, que estreou no longa-metragem com o documentário “Um Passaporte Húngaro” (2001).

O que interessa a Kogut, porém, é aproximar os personagens e seus olhares. Se, no começo, o filme é mediado por Ygor e Rayane, aos poucos, vamos conhecendo Regina e sua filha Lila (Julia Bernat), que está saindo de casa para ir morar com o pai, após a separação do casal, além da relação da patroa com a doméstica (Mary Sheila). “Era importante para mim contar essa história sob múltiplos pontos de vista. Porque existe sempre o perigo de uma história sobre um tema como esses virar dogmática ou maniqueísta. O fascinante nesse tipo de situação é justamente tentar entender o lado de cada um. Acho importante não julgar, não dividir entre bons e maus. O Brasil é um país tão complexo, não podemos abrir mão dessa complexidade. No início do filme, tudo separa Ygor, de 8 anos, de Regina, 50. Ele é uma criança, ela uma mulher mais velha; ele vem de um bairro mais modesto, ela mora na parte burguesa da cidade; eles são diferentes em tudo. Nós (e eles) só vemos o que os separa. Mas aos poucos – quase sem a gente perceber quando exatamente – eles vão entendendo (e nós com eles) que na vida estão iguais naquele momento. Se encontram como iguais. Existencialmente, estão no mesmo lugar”, comenta. “O filme atravessa diferentes classes sociais, não fica só num grupo social. Os mais ricos também sofrem com a vida desestruturada, por exemplo. Fica mais difícil caricaturar, colocar etiquetas de quem é bom ou mau. Todos são bons e maus, todos são humanos”, complementa.

Registrando a transformação urbana

Sandra Kogut filmou “Campo Grande” no meio da bagunça da Copa do Mundo de futebol, ao longo de 12 semanas, entre maio e julho de 2014, no Rio de Janeiro. Com isso, é possível ver uma cidade sendo modificada, com espaços e prédios sendo construídos e reformados. Caótica e barulhenta, repleta de pessoas e carros nas ruas. Interessava à diretora utilizar essa paisagem real e concreta e por isso filmou sem fechar nenhuma rua, sem intervir diretamente na cena e deixando os atores livres. “A gente se misturou com a cidade tal qual ela estava e inseriu nela a nossa ficção. Colocamos um ponto de ônibus cenográfico e em cinco minutos os ônibus da cidade começaram a parar no nosso ponto, pessoas desciam, outras chamavam ônibus. Trabalhamos o tempo todo nessa fronteira”, discorre.

O interesse documental de Kogut molda sua estética. Ela prefere filmar à distância, através de frestas, com obstáculos. “Gosto quando a câmera está dentro dos lugares e não quando ela é descritiva. Quero sentir que estou ali dentro, vivendo uma experiência. Dentro da cena, com os personagens”, afirma.

Inserir-se na cena permite a Sandra Kogut buscar os silêncios, os gestos, as reações, como se a câmera de Ivo Lopes somente observasse, e assim alcançar cenas fortes, baseadas num sólido trabalho do ator. “Quando trabalho com os atores, gosto muito de falar para eles o subtexto. Existe muitas vezes uma distância entre o que falamos e pensamos. Gosto de estar na tensão entre essas duas camadas. Acho que a riqueza humana está ali, no espaço entre esses dois discursos, a fala silenciosa e a fala com palavras, muito mais no que nos diálogos simplesmente”, explica. Para atingir esse resultado, o elenco passou por um longo processo de preparação antes da filmagem, contando com Fátima Toledo. Foram feitos laboratórios, em que a família morou junta no apartamento e as crianças só foram lá já nas filmagens. “Gosto de preservar as relações entre os personagens ao longo do processo do filme, como um mundo que vai se descortinando e se construindo constantemente”, aponta.

A cineasta também aposta numa montagem calcada em elipses e interrupções, sem um encadeamento de causa e consequência fechado. “Me interessa um cinema mais próximo da vida, e na vida nem sempre as coisas acontecem assim, articuladas e encadeadas. Acho isso mais emocionante, mais verdadeiro”, pontua.

Atualmente, Sandra Kogut, enquanto aguarda o lançamento comercial de “Campo Grande” pela Imovision, previsto para 2 de junho, trabalha, com Pedro Freire, no roteiro do novo longa, “Edgar e Marta”, premiado no edital de Baixo Orçamento do MinC. O filme, produzido pela República Pureza, é uma história de amor na terceira idade, que se passa no Rio de Janeiro.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

Por Gabriel Carneiro

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