O divã de Flaubert
Em uma de suas muitas cartas desesperadas, Flaubert conta: “Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando, depois de ter rabiscado longas páginas, descubro que não fiz nenhuma frase, caio no meu divã e fico ali paralisado num pântano interior de tédio”.
As lamentações eram expressas no melhor estilo flaubertiano. Com frequência, o escritor se convencia de que não nasceu para a coisa, o que por si só daria uma boa conversa: o que é nascer para a escrita?
Mas este assunto fica para outra ocasião. Da lamúria de Flaubert, um termo chamou a atenção do teórico Roland Barthes. O divã, para ele, é o símbolo principal de um tipo de atividade de escrita. Na mesa de trabalho, Flaubert rabisca, rasura, amassa, apaga, desiste e tenta de novo. Até se dar por vencido e se jogar no divã. Porém, observa Barthes, “o signo do fracasso é também o lugar da fantasia”. O divã de Flaubert acomoda uma análise da criação: com os olhos no teto, o escritor elabora as razões pelas quais uma personagem, uma cena, uma frase não esteja funcionando. Com novas percepções, ele salta de novo para seus rabiscos, rasuras, frases que tentam ganhar vida. E assim recomeça o trabalho de Sísifo em que, no lugar da pedra, está a obsessão pelo estilo.
As idas e vindas de Flaubert – do papel para o divã, do divã para o papel – ilustram o processo criativo de escrita, inclusive de roteiros. Talvez seja uma reivindicação utópica exigir que as produtoras instalem divãs na sala dos roteiristas. De qualquer forma, o silêncio, o fracasso, o não fazer nada são parte do show. A sensibilidade da mulher do escritor Paul Auster ajuda na hora de criar. Certa manhã, ela encontrou Auster prostrado na cozinha, olhando para a parede, uma xícara de café largada na mão, e comentou: “Trabalhando, né?”
Mas além de uma justificativa elegante para o ócio, o movimento flaubertiano expressa o vínculo íntimo entre criação e reflexão, entre pensamento e intuição, entre teoria e prática. Na mesa de trabalho, Flaubert cria. No divã, elabora uma poética. Junto com sua obra, o escritor cria, de modo explícito ou não, uma poética particular. Autores como Cortázar, Tchekhov, Piglia e Henry James escreveram ficção e considerações sobre como escrever ficção.
A criação desvinculada da reflexão, em que a razão é um intruso indesejável, faz parte da mitologia romântica e tem raízes antigas. “Canta-me, ó Deusa, a ira funesta de Aquiles Pelida” é o início da Ilíada, a mais antiga obra literária do Ocidente que chegou até nós. A autoria não fazia sentido. O poeta era apenas o veículo de uma sabedoria ancestral e divina. Orfeu recebeu sua harpa das mãos de Apolo e o dom do canto da própria Musa.
Séculos mais tarde, o Werther de Goethe se frustra: “Pudesse tu exalar o sentimento e fixar no papel aquilo que vive em ti com tanta abundância e tanto calor, de maneira que o mesmo papel pudesse se fazer o espelho de tua alma, como tua alma é o espelho do Deus infinito!” O gênio romântico é arrebatado e exclamativo, um coração que aspira liberdade, para quem a inspiração não pode ser amordaçada pelo pensamento.
Do lado completamente oposto, um autor como Edgar Allan Poe garante que seu célebre poema O Corvo foi construído com “a precisão e a sequência rígida de um problema matemático”. Poe desconfia dos artistas que dizem compor em uma espécie de frenesi e apregoa que originalidade nada tem a ver com impulso ou intuição.
Na mesma linha – criar é pensar – se encontram declarações de escritores diversos como Thomas Mann, Vargas Llosa e Ford Madox Ford. São artistas menos românticos e mais reflexivos, que acreditam em um artesanato cuidadoso. Como Flaubert diz em outra carta: “suspeitemos dessa espécie de ardor a que chamamos de inspiração”.
Tais escritores não estão pecando pelo exagero: não se deve deduzir das suas palavras que eles pretendem suprimir a espontaneidade e o inexplicável no ato da criação. Eles argumentam pela ponderação. Como sintetiza o crítico Luigi Pareyson, na arte a inspiração nunca é tão determinante que reduza a atividade do artista a mera obediência, assim como o trabalho nunca é tão meticuloso que exclua o acaso, o imprevisível e o impensável. Criar é um jogo entre espera e descoberta, entre procura e surpresa, entre destrancar portas e descobrir portas insuspeitas.
Por Ricardo Tiezzi, escritor e professor