Questão social e didatismo
O filme brasileiro que, simultaneamente, mais chamou a atenção de público e crítica no ano passado foi Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Laureado pela maioria da crítica, com boa receptividade de público para os propósitos de um filme autoral, inegável também que instigou comentários negativos pontuais. Passado o calor da hora, o tempo é o melhor guia para se avaliar com calma uma obra fílmica. Uma ocasião apropriada para se reavaliar o valor de Que Horas Ela Volta? é revê-lo em DVD.
Que Horas Ela Volta?, apenas para retomar o mote que pavimentou debates quando de seu lançamento no circuito, desperta atenção, atiça discussões, porque tem como foco nossa realidade social: a permanência de uma mentalidade que lida de modo atabalhoado com movimentos subterrâneos que põem em xeque o convívio entre classes. Apaziguadas pela atávica cordialidade de que nos falava Sergio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, hoje vivemos um momento de mobilidade e aproximação tensa entre classes.
O que para mim o filme de Muylaert traz de efetivamente positivo é que com ele se joga luz para determinados hábitos, práticas arraigadas ao longo do tempo, que são confrontadas com uma nova realidade social. Ao exibir um momento de mobilidade e aproximação tensa entre classes, e tomar como foco narrativo novas formas de convívio social em uma sociedade em mutação, Que Horas Ela Volta? aborda de forma corajosa e ambiciosa um mundo no qual as aparências geram sinais distintos dos de outrora. Num mundo de selfies, de redes sociais, de comunicação em tempo real, valores e práticas arcaicas são confrontadas. Em decorrência, se revelam como distorções, permanências tensas, desconfortáveis, sujeitas a fraturas.
Mas justamente na ambição encontram-se pontos frágeis em Que Horas Ela Volta? e que merecem ser realçados. Um primeiro ponto refere-se ao jogo com o mercado; em consequência, o sucesso de público: para tanto, Anna Muylaert concebeu Que Horas Ela Volta? como narrativa cômica. Com isso, ela procura estabelecer certa cumplicidade com o público; e assim faz concessão à agradabilidade por meio de chistes, de esquetes para imprimir traços de comportamento, de caráter dos personagens. De sorte que a trama pendula do drama para a comédia de costumes, mas sem a mordacidade e sarcasmo exigidos neste gênero. Ao optar pelo tom cômico para chegar mais facilmente ao público, bem-sucedido na intenção, o filme edulcora o tom satírico e assume indisfarçável ar de comédia global.
Outro ponto que entendo fragilizar Que Horas Ela Volta? diz respeito à caracterização psicológica dos personagens. Todos se movem como tábua rasa, como papel em branco que é preenchido ad hoc, conforme a ocasião. A empregada doméstica, a patroa, o patrão, o filho deles criado pela empregada, a filha da empregada que veio do nordeste a São Paulo para prestar vestibular estão envoltos em relações vagas, imprecisas.
Ora, a imprecisão e o acento caricatural nas situações vividas (os dois adolescentes de níveis sociais distintos, filho da patroa e da empregada, que mal trocaram palavras, fumam baseado com naturalidade à beira da piscina) escamoteia a complexidade das relações sociais sugeridas. Anna Muylaert não propõe uma alegoria, uma parábola, e sim uma obra didática: nas suas palavras, para ser entendida pelas empregadas domésticas. Ou seja, Que Horas Ela Volta? não é um filme alusivo, de elipses; então, por que a filha da empregada quer ler e retira da biblioteca do patrão da mãe, sem antes nem depois, Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro?
Essas fragilidades são aqui apontadas com o intuito de realçar que Anna Muylaert teve nas mãos um material apropriado para realizar um filme mais adensado, mais provocante, tendo em vista o tema e as questões que decidiu tratar; mas ela ajustou suas ambições a conveniências. Talvez intimidada pela pressão de fazer bilheteria com um público que vê o cinema brasileiro de soslaio, ela cedeu à tentação de “facilitar”.
No contexto de nossa filmografia atual, Que Horas Ela Volta? é um filme importante, que estimula debates, abre espaços para novas experiências sobre nossas contradições sociais. Mas também é um filme com fragilidades que, desconsideradas, conduzem à aceitação passiva, apaixonada. Com isso, fomentar a impressão artificial de obra prima acima das paixões de momento.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)