Em busca de um cinema popular
Finalmente, o Festival de Cinema de Gramado atribuiu ao octogenário cineasta Domingos Oliveira, diretor que esteve em meia dúzia de disputas pelo Kikito, o troféu de melhor filme para “Barata Ribeiro, 716”, deliciosa e memorialística comédia etílico-musical, ambientada numa febril Copacabana, às vésperas do Golpe Militar de 1964.
O filme, em preto e branco, completa trilogia iniciada em 1966, com “Todas as Mulheres do Mundo” e sequenciada com “Edu, Coração de Ouro” (1967). E mostra o dramaturgo e futuro cineasta em sua juventude etílica, antes de tornar-se o criador de “Todas as Mulheres do Mundo” e dezenas de longas-metragens e peças teatrais. Antes, portanto, de tornar-se o marido (e propagador da beleza luminosa) de Leila Diniz. Domingos, que há exatos 50 anos venceu o Festival de Brasília com a insuperável comédia “Todas as Mulheres do Mundo”, estava tão feliz com o finalmente conquistado Kikito de melhor filme, que deixou de lado os tremores do mal de Parkinson, que o incomodam há 14 anos, e até tirou sarro do maior erro técnico do júri: a entrega do Kikito de melhor trilha sonora a ele próprio, Domingos. “Me deram um Kikito de melhor disc-jóquei!”, divertiu-se. Sim, suas imagens são cobertas com hits tipo “Cuando Calienta el Sol” e hinos socialistas como “Bandera Rossa” e “A Internacional”. O filme também rendeu o Kikito de melhor diretor a Domingos e o de melhor atriz coadjuvante a Glauce Guima.
Comédias disputam prêmios
Dos seis concorrentes brasileiros, só um não ganhou nenhum Kikito, a comédia “Tamo Junto”, de Matheus Souza, ator no filme de Domingos Oliveira. Duas outras comédias, já que a curadoria este ano privilegiou intencionalmente este gênero, foram premiadas: “O Roubo da Taça” e “El Mate”. “O Roubo da Taça” ganhou mais prêmios que merecia; melhor ator para o histriônico Paulo Tiefenthaler, ex-comandante do programa “Larica Total”, melhor roteiro para Lusa Silvestre e Caíto Ortiz, melhor fotografia para Ralph Strelow e direção de arte para Fábio Goldfarb. “El Mate”, comédia de erros paulistana falada em espanhol e português, viu seu diretor e coprotagonista Bruno Kott reconhecido como melhor ator coadjuvante.
“Elis”, que depois de sua exibição na primeira noite do festival, despontou como franco favorito, trombou com dois fortes concorrentes: a contagiante comédia de Domingos Oliveira e o drama psicológico com pitadas de suspense, “O Silêncio do Céu”, de Marco Dutra. Este filme, falado em espanhol e português, com atores famosos como Leo Sbaraglia, Carolina Dieckman e Chino Darín, ganhou Prêmio Especial do Júri e desenho de som para Daniel Turini e Fernando Henna. E, também, o Prêmio da Crítica. À “Elis”, sobraram o prêmio de melhor atriz, para o magnífico desempenho de Andrea Horta, e melhor montagem para Tiago Feliciano. E a consagração do Júri Popular, que reconheceu a recriação de parte da trajetória da mudança de Porto Alegre para o Rio, em 1964, até sua morte, por overdose de cocaína em 1982, da conterrânea Elis Regina.
Curtas e hispânicos
O grande vencedor na competição de curta-metragem foi o brasiliense “Rosinha”, carimbado como o “Jules et Jim da terceira idade”. Afinal, o curta registra, com sutileza e ousadia, triângulo amoroso entre uma mulher septuagenária, a incrível Maria Alice Vergueiro, de “Tapa na Pantera”, e dois velhos amigos. O roteiro do filme também foi premiado. E coube a ele o Prêmio Aquisição Canal Brasil. A crítica preferiu “Lúcida”, um trágico drama black, de construção lacunar e urgente, dirigido por dois moradores da periferia paulistana, Fábio Rodrigo e Carolina Neves. Dois outros filmes se destacaram: “Aqueles Quinze Segundos”, de Juiz de Fora (MG), premiado com a melhor direção para Felipe Saleme e, por unanimidade, pela melhor atriz Luciana Paes.
O júri latino concentrou seus prêmios em apenas dois dos sete concorrentes: “Guaraní”, produção paraguaio-argentina, e “Sin Norte”, road-movie existencial chileno. “Guaraní” ganhou os prêmios de melhor filme e ator para Emilio Barreto. No palco, ele embrulhou parte de seu Kikito na bandeira paraguaia e lembrou suas origens guarani e brasileira. O filme, falado majoritariamente em guarani, ganhou também o Kikito de roteiro para Luiz Zorraquín e Simón Franco. O belo filme chileno “Sin Norte” rendeu troféus a seu diretor, Fernando Lavanderos, e ao fotógrafo Andrés Garcez. Recebeu, também, o Prêmio da Crítica. Gramado prepara-se, agora, para sua edição 45. O presidente da Gramadotur, João Pedro Till, e seu braço direito Enzo Arns prometeram um festival “ainda mais internacional” e com filmes “populares e de qualidade”, pois nosso festival existe para “somar cinema, turismo e diálogo com o público”. O que indica que a hegemonia da “comédia inteligente” veio para ficar.
Por Maria do Rosário Caetano