Nonsense no semiárido nordestino
Nos anos recentes, a cinematografia pernambucana tem se revelado a mais profícua e geradora de debates em nossa filmografia. Presença frequente em festivais nacionais e internacionais, os filmes do ciclo pernambucano dos últimos anos angariam prêmios tanto quanto instigam discussões que envolvem ousadias nas escolhas temáticas e arroubos no tratamento de questões polêmicas. Esse é o caso de “Boi Neon” (2015), de Gabriel Mascaro, cuja estreia se deu na 72ª edição do Festival de Veneza, de onde saiu com o prêmio especial da mostra Horizontes.
Lançado em DVD pela Imovision, “Boi Neon” realiza um descolamento do foco urbano – grande parte da produção fílmica pernambucana atual é centrada na cena social e cultural de Recife – para o semiárido nordestino: nele, um grupo de vaqueiros prepara os bois para soltá-los na arena durante as vaquejadas. O grupo vive num caminhão que trasposta os bois e serve de casa improvisada. O caminhão é dirigido pela única mulher do grupo. Nessa inversão de papéis, um primeiro dado desconcertante do filme; o outro, que modula a narrativa, é que um dos vaqueiros tem desejo de confeccionar roupas femininas. A inversão de papéis sexuais no semiárido, no entanto, é ilusória: ela é feminina e ele viril.
“Boi Neon” é um filme sem uma ação dramática, sem conflitos explícitos que conduzam a narrativa (tendo a literatura por referência, se insere na vertente que Mário de Andrade chamou de “romances de desistência”, pois marcados pela recusa da ação e pela distância crítica nos bastidores das situações). Assim como, tampouco, se trata de um filme cujas imagens se oferecem à contemplação. Numa caracterização esquemática, “Boi Neon” guarda, simultaneamente, uma dimensão documental, com acento no cotidiano, no dia a dia sem preocupação com momentos de ruptura, e uma dimensão que flerta com o absurdo, com o nonsense.
No plano documental, “Boi Neon” é repleto de cenas nas quais se vê a preparação das vaquejadas praticamente em tempo real. De sorte que o espectador pode acompanhar desde os ritos de preparação dos animais até o desfecho, quando a vaca, puxada pela cauda por um dos competidores em cavalgada, é derrubada. Para o espectador desse recorte da realidade do interior do Brasil, o filme de Mascaro se esmera ao jogar luz a um evento pautado por um cerimonial estranho ao meio urbano. Sob esse aspecto, Mascaro é sensível a uma preocupação cara ao Cinema Novo: desvendar um universo social e cultural do interior do país, invariavelmente, ignorado nos grandes centros urbanos.
Mas “Boi Neon” não se restringe ao acento no recorte de uma dada realidade social e cultural no interior do país, pois é um filme que se constitui igualmente de situações que caminham para o absurdo, o nonsense. E aqui um necessário esclarecimento: o nonsense em “Boi Neon” está menos na inversão de papéis sexuais do que na maneira elíptica com que Mascaro expõe situações e conduz a narrativa. Com efeito, se é certo que a ambiguidade de papéis sexuais gera estranheza, é certo também que Mascaro concebeu seu filme a partir de recursos de elipse que tornam as situações vividas pelos personagens desarticuladas de sentido.
Ora, “Boi Neon” simplesmente exibe situações. Nelas, os personagens centrais, e os que circulam em torno deles, veem o que se passa com serena naturalidade. A naturalidade das situações vividas, assim entendo, é o que faz dessa experiência fílmica de Mascaro um mergulho no nonsense: não há pilhérias, motejos ou tensões num mundo em que a reação a ambiguidades sexuais não seria a de serena naturalidade.
Uma resposta possível às intenções de Mascaro é que ele quis descontruir o imaginário acerca da rigidez de papéis sexuais no semiárido nordestino. Sendo assim, seu filme de fato intriga e perturba. A forma elíptica com que exibe as situações vividas coloca ao espectador a exigência de pensar e refletir sobre um universo social e cultural que lhe seja desconhecido. Para lembrar Caetano Veloso, “Boi Neon” pode ser visto sob o epíteto: “de perto, ninguém é normal”.
Não se pode negar a “Boi Neon” arroubo na escolha e na forma de tratamento do tema: a desconstrução da rigidez de comportamentos sexuais no semiárido nordestino. Esse predicativo torna o filme de Mascaro mais uma experiência arejada no ciclo atual de filmes pernambucanos. Deve-se considerar, de qualquer forma, que esse filme deixa no ar uma incômoda impressão: para quem desconhece a realidade das vaquejadas no interior de Pernambuco, não há o “outro” para o qual a inversão de papéis sexuais seria uma afronta.
Obnubilado pelas elipses, na ausência do “outro”, o risco de distorção na mensagem subliminar sugerida pelo filme. A desconstrução de um imaginário pela ausência de conflitos não implica que estes efetivamente não existam. Na ausência de conflitos, paradoxalmente, a força do filme e o risco de má compreensão.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)