Festival de Brasília – Noite de abertura

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O grito de “Fora Temer” não ecoou só no Rock in Rio. Na noite inaugural do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que comemora sua quinquagésima edição, o ator Matheus Nachtergaele encerrou arrepiante performance cênica com o brado que se repete, Brasil a fora, há quase dois anos, em eventos culturais. A plateia, que lotou o Cine Brasília, na noite de sexta-feira, 15 de setembro, o aplaudiu de pé e repetindo o manta “fora Temer, fora Temer”.

Vestido como um candango (nome do troféu do festival, uma homenagem aos migrantes que construíram e povoaram Brasília), Nachtergale interpretou texto de grande qualidade literária e informativa. Dos bolsos, retirou – e espargiu – porções da terra vermelha do cerrado, para simbolizar o cenário onde Paulo Emilio Salles Gomes e equipe criaram o mais antigo festival do país.

Parte da plateia do festival candango, o mais politizado do país, protestou até contra o logotipo da Globo Filmes, quando ele brilhou na imensa tela do Cine Brasília. Isto aconteceu na hora dos créditos do filme “Não Devore meu Coração”, de Felipe Bragança, em sua pré-estreia nacional (antes, o filme foi exibido no Sundance, nos EUA, e na Berlinale, na Alemanha).

Depois da homenagem aos candangos e ao festival, que realizou 50 edições em 53 anos de história, os apresentadores Dira Paes e Giuliano Cazarré chamaram ao palco o secretário de Cultura e presidente do festival, o ator Guilherme Reis. Ele anunciou a transferência do Polo de Cinema e Vídeo Grande Otelo de sua (abandonada) sede na cidade-satélite de Sobradinho, para o Plano Piloto, o coração de Brasília. No amplo espaço (destinado, 27 anos atrás, auge da crise cultural provocada pelas ações do Governo Collor, ao audiovisual brasiliense) –, prometeu o secretário – “serão construídas casas populares”. E “a nova sede será erguida próximo ao Lago Paranoá, ao lado da sede do CCBB-DF (Centro Cultural Banco do Brasil)”. No novo espaço, serão instalados produtoras, pequenos estúdios, núcleo de produção de cinema de animação, de finalização etc.

O longevo Festival de Brasília homenageou, então, e em caráter póstumo, três cineastas mortos nos últimos meses: Geraldo Moraes, diretor de “A Difícil Viagem”, Manfredo Caldas, de “Romance do Vaqueiro Voador”, e Márcio Curi, de “A Última Estação”. Cada um foi lembrado com um pequeno documentário rememorando suas trajetórias dedicadas ao cinema brasiliense (e brasileiro). Os “três candangos adotivos” – comentou o produtor João Procópio – “se foram num curto espaço de tempo e farão muita falta, pois eram ativos em vários ofícios”. Além de diretores, foram produtores (caso de Curi), montadores (caso de Manfredo) e professores (caso de Moraes, dos quadros da UnB-Universidade de Brasília).

Os afinadíssimos Dira Paes e Giuliano Cazarré, atores com história profundamente vinculada à memória do Festival de Brasília, convocaram ao palco o grande homenageado da noite, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, que fará 90 anos em 2018. Ele não pode comparecer, mas foi representado pela neta Mila Chaseliov, filha dos atores Ney Sant’Anna e Ada Chaseliov, e pelo filho Diogo Dahl Pereira dos Santos. A neta, que leu breve e tocante carta do avô ao festival, e o filho Diogo, produtor do documentário “Cinema Novo”, levarão para Nelson a Medalha Paulo Emilio Salles Gomes, entregue por Jean-Claude Bernardet e Vladimir Carvalho. Para lembrar a importância do diretor de “Vidas Secas” para o cinema brasileiro, foi exibido o documentário “Nélson Filma”, de Luiz Carlos Lacerda.

Como a medalha entregue a Nélson tem Paulo Emilio como patrono, o festival candango convocou ao palco o cineasta e professor da USP, Carlos Augusto Calil. Coube a ele, na condição de produtor delegado, apresentar o curta-metragem “Festejo Muito Pessoal”, dirigido por Carlos Adriano, selecionado para diversos festivais e premiado recentemente com a láurea máxima no Cine Ceará.

Calil lembrou que o curta foi realizado como uma das atividades comemorativas do centenário de Paulo Emilio, ocorridas no ano passado. E que nascera do último texto escrito pelo pesquisador, semanas antes de sua morte, em 1977. No texto, que dá nome ao filme, Emilio evoca uma série de longas brasileiros (como “Limite” e “Aitaré da Praia”). A eles, Carlos Adriano somou três filmes do francês Jean Vigo (cuja primeira biografia foi escrita por Paulo Emilio) e imagens documentais de visita de Giuseppe Ungaretti ao Brasil (durante a qual o italiano conviveu com o brasileiro). E, à banda sonora, foram agregadas composições populares recolhidas por Mário de Andrade, em missão cultural realizada em 1937.

A noite encerrou-se com sessão hors concours de “Não Devore meu Coração”, terceiro longa-metragem de Felipe Bragança, ambientado na fronteira entre Brasil e Paraguai, e protagonizado pelo ator Cauã Reymond, que subiu ao palco com a equipe do filme.

O primeiro longa solo de Bragança (os dois primeiros, “A Fuga da Mulher Gorila” e “A Alegria”, foram codirigidos por Marina Meliande) inspira-se em contos do ficcionista mato-grossense Joca Reiners Terron e soma elenco brasileiro (além de Cauã, estão no filme Claudia Assunção, Ney Matogrosso, Leopoldo Pacheco, Marcos Lóry e o adolescente Eduardo Macedo), duas jovens de origem indígena (as belas Adeli Benitez e Zahy Guajajara) e atores paraguaios (como Márcio Verón, que a equipe do filme encontrou trabalhando num posto de gasolina). O filme é falado em português, espanhol e guarani e tem coprodução que soma Brasil (incluindo a Globo Filmes e o Canal Brasil), França e Holanda.

“Não Devore meu Coração” teve recepção morna do público que lotava o Cine Brasília. O que não perturbou Felipe Bragança e sua equipe. Afinal, trata-se de obra complexa, que aposta mais no sensorial que no narrativo. Quem entusiasmou-se com o poderoso e sintético letreiro que contextualiza o filme em região de fronteira, marcada pela memória da Guerra do Paraguai, perdeu logo o prumo. Isto porque Bragança arremessa, intencionalmente, o público em fluxo de narrativas fragmentadas e pouco explicadas (se nos aferrarmos à lógica da causa-efeito). O diretor deixou claro que a ele interessam “o sonho, o embate de fabulações”.

Ao longo de 108 minutos, nos deparamos com a fábula de um amor adolescente que une o mato-grossense Joca/Eduardo Macedo à arredia paraguaia Basano la Tatuada (a ótima Adeli Benitz). E, também, com o violento mundo de gangues de motoqueiros no qual está inserido Fernando (Cauã Reymond), o irmão mais velho de Joca. E há a casa (e os sofrimentos) de Joana (Cláudia Assunção), mãe do garoto e do motoqueiro, que os cria sem a presença do pai autoritário (interpretado por Leopoldo Pacheco). O lançamento do filme está agendado para o próximo dia 19 de outubro.

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