O Brasil rumo ao Oscar 2019

Acaba de chegar às telas brasileiras, depois de fazer a “tríplice coroa” em Gramado (melhor filme pelo júri oficial, crítica e público), o filme paraguaio “As Herdeiras”, de Marcelo Martinessi. Com 27 prêmios conquistados em diversos festivais (três deles na poderosa Berlinale), o filme pode repetir, em fevereiro de 2019, junto à Academia de Cinema de Hollywood, trajetória semelhante à do longa chileno “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lélio, o vencedor deste ano.

Antes de buscar as razões que podem levar “As Herdeiras” a disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro, algo inédito na história paraguaia, lembremos que, em breve (dia 11 de setembro), júri formado com os produtores Lucy Barreto e Flávio Tambellini, a atriz Bárbara Paz e os cineastas Jeferson De, João Jardim e Hsu Chien, vai escolher, entre 22 candidatos, a produção que, em nome do Brasil, reivindicará vaga entre os cinco finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Desde 2003, quando “Cidade de Deus” disputou quatro estatuetas, a Academia não mostra grande interesse por nossos filmes.

Vejamos quais são nossos candidatos a candidato ao Oscar, estatueta que dois países sul-americanos (a Argentina, por duas vezes, e o Chile, uma) já conquistaram. E conjecturemos sobre suas chances.

Entre os 22 inscritos (nove deles dirigidos por mulheres), três parecem ter mais chances: “Benzinho”, de Gustavo Pizzi, “Ferrugem”, de Aly Curitiba – ambos estrearam no Sundance Festival e ganharam alguns dos mais importantes prêmios do Festival de Gramado – e “O Grande Circo Místico”, de Cacá Diegues.

Registre-se que Jorge Peregrino, presidente da Academia Brasileira de Cinema, organismo responsável pela indicação de nosso concorrente, declarou ao Boletim Filme B, que apenas presidirá, sem votar, a comissão. Tanto que outra integrante da instituição (Lucy Barreto) o substituiu no colegiado. Isto porque Peregrino tem relações com o filme “O Grande Circo Místico”, coprodução entre Brasil, França e Portugal.

Fora estes três filmes, há um segundo grupo do qual pode emergir (com menos chances) o candidato brasileiro: “Unicórnio”, de Eduardo Nunes, “O Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, “Aos teus Olhos”, de Carolina Jabor, “Paraíso Perdido”, de Monique Gardenberg, “Alguma Coisa Assim”, de Esmir Filho e Mariana Bastos, “Não Devore meu Coração”, de Felipe Bragança, e “Como É Cruel Viver Assim”, de Júlia Rezende. Estes filmes passaram por importantes festivais internacionais ou brasileiros de primeira linha (Festival do Rio, Gramado e Brasília, em especial).

Há um bloco de candidatos formado com documentários, categoria que não costuma figurar entre os cinco finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Embora a indicação seja aceita pela Academia de Hollywood, parece que seus colegiados votantes acreditam que o melhor lugar para tais filmes seja a internacionalizada (embora hegemonizada pelos anglo-saxões) categoria “melhor longa documental”.

Os documentários brasileiros inscritos são “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi, “O Desmonte do Monte”, de Sinai Sganzerla, “O Caso do Homem Errado”, de Camila de Moraes (único dos 22 filmes inscritos dirigido por uma cineasta negra), “Dedo na Ferida”, de Sílvio Tendler, e “Yonlu”, de Hique Montanari. Colocar “Yonlu” na categoria documental parece uma heresia. Afinal, o filme é um híbrido ensaístico-performático, com ator (Thalles Cabral) representando personagem real (um jovem suicida que deixou versos e criações plásticas na internet ou em seu quarto). Mas este intrigante longa gaúcho mantém orgânico diálogo com o cinema documental.

Um registro: o documentário que mais ingressos vendeu (quase 70 mil) e mais polêmica causou, este ano, no Brasil – “O Processo”, de Maria Augusta Ramos – não quis concorrer. Outro filme polêmico, o ficcional “Vazante”, de Daniela Thomas, também ignorou a disputa. Como estes dois filmes, mais de cem outros passaram ao largo da corrida rumo ao Oscar (o país lança, anualmente, perto de 150 longas-metragens, mas só um sexto deles registrou inscrição).

A lista completa-se com “Antes que Eu me Esqueça”, de Thiago Arakilian, “Talvez uma História de Amor”, de Rodrigo Bernardo, “Canastra Suja”, de Caio Soh, “Entre Irmãs”, de Breno Silveira, “Encantados”, de Tizuka Yamasaki, e “Além do Homem”, de Willy Biondani.

Não se discute aqui as qualidades dos filmes. Mas, sejamos realistas, a Academia de Hollywood, por mais que esteja se democratizando (com a convocação de associados negros, mulheres, asiáticos, latino-americanos, africanos) continua defendendo e selecionando filmes humanistas e comprometidos com grandes causas e, mais recentemente, com políticas identitárias. E, claro, com narrativas mais clássicas, embora temperadas com algumas doses de invenção/inovação. Assim sendo, parecem reduzidas as chances de filmes como “O Animal Cordial”, com seu banho de sangue em ambiente culinário. Caso semelhante ao de “As Boas Maneiras”.

E aí chegamos a filmes como o paraguaio “As Herdeiras” (possível candidato), o chileno “Uma Mulher Fantástica” (o último vencedor) e os argentinos “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, e “O Segredo dos seus Olhos”, de Juan José Campanella (também laureados com o Oscar).

Detalhe importante: se “As Herdeiras” for escolhido, o Brasil estará praticamente fora da competição. Dificilmente, a América Latina terá duas vagas na disputa. Este privilégio é exclusivo da Europa e suas poderosas cinematografias (que costumam emplacar dois ou três candidatos), restando uma vaga para a Ásia, Oriente Médio (ou, milagrosamente, para a África).

O que têm “As Herdeiras” e os três filmes latino-americanos, já oscarizados, em comum? Primeiro, o universalismo. Suas histórias são compreendidas em qualquer lugar. Podem ser vistos por jovens e adultos. Não são transgressores a ponto de desconsertar “almas sensíveis”.

Vivemos o momento da aceitação dos amores homoafetivos. Isto fez de “Uma Mulher Fantástica” um êxito mundial. Sua narrativa elegante e acessível, seu formidável elenco (incluindo a transexual e cantora lírica, Daniela Vega) e suas qualidades técnicas o levaram ao triunfo. E Berlim foi sua plataforma de lançamento.

O que é “ As Herdeiras”, senão uma versão super-feminina (e ainda mais delicada) do amor homoafetivo? O filme é protagonizado por quatro mulheres, três idosas (Ana Brum, a Chela, Margarita Irún, a Chiquita, e a fofoqueira Pituca) e uma quarentona (Ana Ivanova). Na trama, os homens aparecem, literalmente, para carregar um piano.

As duas protagonistas, Chela e Chiquita, vivem juntas – e falidas –, numa mansão outrora aristocrática. Endividadas, são obrigadas a vender prataria, móveis, cristais, joias e, até, um velho Mercedes. Elas formam um par homoafetivo. Mas Chiquita vai parar na prisão, acusada de sonegação fiscal. Sozinha, Chela tem que sobreviver. Descobrirá no automóvel Mercedes, posto à venda, um instrumento de sua redenção existencial. Nele, transportará amigas ricas, incluindo a nonagenária Pituca, fofoqueira contumaz, mas muito generosa. E verá seus desejos revitalizados pela perturbadora presença da atrevida e libidinosa Andy (Ana Ivanova), outra de suas passageiras.

A maioria dos mais de seis mil associados da Academia de Hollywood é composta de atrizes e atores, que amam ver seus colegas em grandes desempenhos dramáticos. E detestam filmes de efeitos especiais e super-heróis com a cueca para fora da calça. Em “As Herdeiras”, o solo das quatro paraguaias será um bálsamo para os olhos e a alma das associadas da Academia.

Ana Brum, com raras atuações no teatro e no cinema (na vida civil, ela é advogada e defensora de Direitos Autorais) ganhou o Urso de Prata em Berlim. Repetiu a dose, junto com as colegas Margarita Irún e Ana Ivanova, em Gramado. Além da tríplice coroa e da trinca de atrizes, o filme conquistou mais dois Kikitos (melhor diretor e melhor roteiro, ambos para Marcelo Martinessi).

O Brasil ocupa espaço afetivo na vida de Ana Brum e de Margarita Irún. Brum, fez sua primeira – e modesta – participação num longa-metragem, graças ao catarinense Sylvio Back. Ele a convocou para dizer frases, sob efeito de luzes (claro-escuro bem contrastado), da peça “Elisa”, de Alcebíades González Delvalle, no filme “A Guerra do Brasil” (1987).

“Me coube”, lembrou a atriz em Gramado, “uma participação muito pequena: dizer frases atribuídas a Madame Lynch (a irlandesa Elisa Alícia Lynch), companheira de Solano López, o marechal e presidente do Paraguai, comandante da guerra contra a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai). Nem vi o filme, pois o VHS que Sylvio Back me mandou não era compatível com nosso sistema no Paraguai”. Agora que está famosa, com um Urso de Prata na bagagem (e com o desenvolvimento de novos suportes digitais), Back se empenhou, novamente, para que ela visse sua participação em “A Guerra do Brasil”, filmado 31 anos atrás.

Margarita Irún, que é atriz profissional e mantém uma Escola de Teatro, em Assunção, passa férias no Brasil há muitas décadas. “Meu marido” – lembrou – “ama as praias brasileiras. Ama tanto, que comprou um casa de veraneio em Torres, no Rio Grande do Sul”. Depois da temporada em Gramado, ela promete estreitar ainda mais as relações com o Brasil. Quem quer fazer o mesmo é Ana Ivanova, que ganhou dos pais nome de evocação russa, embora seja 100% paraguaia. Ela fez tantos amigos em Gramado, que pretende voltar, de preferência atuando em coproduções do Brasil com países hispano-americanos.

No debate de “As Herdeiras”, Ivanova contou que “Marcelo Martinessi queria uma atriz de 53 anos para interpretar Andy” e, na ocasião dos testes, “eu só tinha 42”. Mesmo assim, ela não arredou pé. Soube que a palavra final seria dada por Ana Brum, a protagonista.

Ivanova achou melhor que Ana Maria Patrícia Brum (na vida civil, conhecida como a doutora Patrícia Brum) contasse ao público de Gramado o que acontecera na fase de seleção de elenco.

Brum, arrancando gargalhadas do público, confessou: “eu percebi que ela era a intérprete ideal, pois sabia que a personagem teria que seduzir Chela, tirá-la do prumo, suspender seu fôlego. Sabem o que ela fez no teste? Partiu para cima de mim, sedutora, avassaladora, e enfiou a língua na minha orelha. Era ela, só podia ser ela”.

Esta história de amor entre mulheres, razão de ser de “As Herdeiras”, se desenvolve num pano de fundo político-social delicadamente desenhado. As aristocratas estão falidas, mas continuam preservando hábitos senhoriais, tocando sineta para chamar a única criada (de origem indígena) e escondendo seus infortúnios (Chiquita se vira no cárcere, com as chefonas da tranca, mas deseja que as amigas ricas não saibam que ela está enjaulada). O filme foi realizado num cárcere real, com detentas como figurantes. “Ficamos amigas”, contou Margarita, que ofereceu bolsa de estudo em sua Escola de Teatro para filhas de duas ex-detentas.

Senadoras e senadores conservadores detestaram o longa de Martinessi. Mesmo sem vê-lo, retiraram-se do Parlamento, quando “Las Herederas” recebeu homenagem por seus triunfos em Berlim. Acusaram o filme de fazer “apologia da homossexualidade”. Mas foram incapazes de impedir a aprovação da primeira Lei de Fomento ao Cinema Paraguaio, aprovada depois de dez anos de debates, em julho último. Os “ursos” de Berlim foram conquistados em fevereiro. Portanto, apenas quatro meses antes.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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