Santiago, Itália

Por Maria do Rosário Caetano

O décimo-quarto longa-metragem de Nanni Moretti, o documentário “Santiago, Itália”, será tema de debate na noite desta terça-feira, 18 de junho, no Cine Petra Belas Artes, em São Paulo. Na quinta-feira, feriado de Corpus Christi, terá sua estreia no circuito comercial.

O filme relembra a queda do Governo Allende e sua Unidade Popular, em setembro de 1973, para refletir sobre os destinos da Itália contemporânea. Para debatê-lo, o cineasta e ex-secretário municipal de Cultura, André Sturm, convocou o advogado José Carlos Dias, o ex-prefeito Fernando Haddad e o jornalista Daigo Oliva, que substitui Clóvis Rossi, morto dias atrás.

Os três debatedores terão farto material para reflexões sobre o passado e o presente. Afinal, Moretti, um dos autores mais premiados do cinema italiano – Especial do Júri, em Veneza, com “Sogni d’Oro”, Urso de Prata em Berlim, por “A Missa Acabou”, direção em Cannes, com “Caro Diário”, e Palma de Ouro e David di Donatello, o Oscar italiano, com “O Quarto do Filho” – realizou “Santiago, Itália” de olho nos conturbados dias vividos por seu país.

A intenção evidente do italiano, de 65 anos, é mostrar que a Itália, que recebeu com imensa generosidade os exilados chilenos (quando do triunfo do golpe militar liderado por Pinochet), hoje, dirigida por coalização de direita e de extrema direita, refuga ostensivamente novos imigrantes. O filme integrou a seleção oficial do Festival de Berlim, em fevereiro último, e foi premiado com o Donatello de melhor documentário.

A primeira imagem de “Santiago, Itália” mostra o próprio Moretti, também ator em filmes seus e alheios (incluindo “Pai Patrão”, dos Taviani, e “La Seconda Volta”, de Calopresti), de costas, olhando uma cidade ao longe. Não sabemos bem que cidade é. Mas veremos, pela cordilheira gelada aos fundos, tratar-se de uma grande metrópole hispano-americana. Pode ser a capital chilena, palco da queda e morte de Salvador Allende, ou uma metrópole europeia com imensos edifícios brancos.

Depois, Moretti somará uma série de depoimentos e imagens de arquivo (algumas, muito conhecidas, como o La Moneda em chamas, outras, pouco vistas) para que possamos relembrar o 11 de setembro de 1973. O cineasta Patrício Guzmán, da trilogia “Nostalgia da Luz”, “Botão de Pérola” e “A Cordilheira”, evocará a queda de Allende no momento em que filmava o documentário “O Primeiro Ano”. Seus colegas, também cineastas, Miguel Littín (“El Chacal de Nahueltoro”) e Carmen Castillo (“La Flaca Alejandra”) relembram, também, o desmonte do governo da Unidade Popular. A eles, somam-se, em momentos diversos, testemunhos de professores (Leonardo Barceló), advogados (Carmen Hertz), operários (David Muñoz), médicos (Maria Luz García), diplomatas (Piero de Masi), músicos (Jorge Coulon, Horacio Duran), artesãos (Arturo Acosta), jornalistas (Alejandro Matus, Paolo Hutter) e empresários (Ivan Callado e Erik Merino).

Moretti dará voz e imagem a dois personagens-chave no grupo triunfante: um torturador e um oficial de alta patente. Os dois utilizam argumentos repisados historicamente pelos pinochetistas: “Allende fora eleito com apenas 36% dos votos” (embora esta fosse a regra, pois não havia segundo turno), “estava destruindo o país, que eles, os militares, reconstruiriam” e “não viram, ou praticaram, tortura”.

Eduardo Iturriaga, preso há dez anos por prática de tortura, enfrenta Moretti: “você não é juiz, nem padre, não pode me julgar”. E arrepende-se: “aceitei lhe dar esta entrevista, porque o Sr. Nuñez me garantiu que o senhor seria imparcial”.

Patrício Guzmán conta a Moretti que, ao ouvir boatos do golpe de estado, convocou o cinegrafista Jorge Muller a irem, juntos, ao La Moneda, palácio governamental, ver o que se passava. E o que viram, 45 anos atrás?

“O La Moneda sendo bombardeado e as pessoas aplaudindo cada tiro como se fosse um gol”, rememora o diretor de “A Batalha do Chile”. Seguem-se imagens do Estádio Nacional, prisão improvisada de milhares de partidários do governo deposto. Muitos irão para campos de prisioneiros e se tornarão desparecidos políticos. Alguns conseguirão sair dali. Entre eles, Guzmán, que relata algo inusitado: chegaram à rua santiaguenha como párias, “não tínhamos dinheiro para pagar o ônibus, todos sabiam quem éramos”.

Em determinado momento da narrativa moretianna, alguém lembra que não houve Guerra Civil no Chile, pois “o lado derrotado não tinha armas”. O que houve, em realidade, foi a disposição dos “vencedores de exterminar a todos os colaboradores de Allende”.

O espectador já tem o golpe e sua contextualização apresentados, com raro poder de síntese, por Moretti. Ele parte, então, para a segunda parte do filme: a acolhida que a Embaixada da Itália deu a centenas de apoiadores de Allende. O pintor muralista Eduardo Carrasco lembra que italianos e suecos foram os mais generosos na acolhida aos chilenos. Alguém rememora história espantosa: Lumi, uma militante, fora assassinada e seu corpo jogado nos imensos jardins da Embaixada Italiana. Os golpistas triunfantes forneceram inusitada explicação para o que acontecera: “a moça teria morrido em orgia sexual dentro da própria representação diplomática italiana”.

Por fim, “Santiago, Itália” chega à pátria de Moretti. A Itália contemporânea é vista como o país que trocou o pensamento da “transformação coletiva” pelo “individualismo e consumismo desenfreado”. E que rejeita imigrantes. Já grisalhos, os chilenos que seguiram vivendo na Península acolhedora relembram a generosidade que a todos cercou. O ator Gian Maria Volonté (1933-1994) aparece num ato público em protesto contra a ditadura chilena.

Um dos asilados evoca a região da Emilia-Romagna, conhecida como a “Italia Rossa” (vermelha). Destaca cidadezinha de 10 mil habitantes, onde 70% de sua população adulta era filiada ao PCI (Partido Comunista Italiano). A recepção fora igualmente calorosa por parte de sindicatos, paróquias católicas e associações civis.

Nanni Moretti, que além de diretor e ator, é produtor (de 27 filmes), distribuidor (Tanden) e exibidor (no charmoso Cine Nuovo Sacher, no Trastevere romano), nunca escondeu sua condição de militante histórico (e crítico) da esquerda italiana. Em seu ofício, ele pratica, com igual paixão, a linguagem ficcional e a documental. Somou as duas em alguns de seus filmes mais famosos (e engraçados), “Caro Diário” e “Abril”. Realizou curtas, médias e longas documentais. O mais conhecido deles é “La Cosa”, de 1990, no qual ele registra debates e brigas ardentes entre militantes do PCI, no momento de “refundação” daquele que fora o maior partido comunista da Europa Ocidental. Realizou, também, documentários como “Il Giorno della Prima de Close-Up”, sobre “eventual fracasso” de “Close Up”, de Abbas Kiarostami, lançado por ele, e “Il Grido d’Angoscia dell’ Ucello Predatore”, com trechos do longa “Abril”.

Para termos mais uma demonstração da filiação artístico-espiritual de Moretti, vale destacar diretor (e filme) escolhido por ele para a noite inaugural, em 1991, de seu belo e bucólico cinema e café: o britânico Ken Loach (e seu filme “Riff Raff”). Os dois realizadores, o de “Terra e Liberdade” e o de “Caro Diário”, são praticantes de cinema que tem o realismo crítico e o diálogo com o documentário como bases estruturais.

Santiago, Itália
ITA, FRA, 80 minutos, 2019
Direção:
Nanni Moretti
Sessão especial: 18/06, terça-feira, às 20h, seguida de debate, no Cine Petra Belas Artes, em São Paulo
Estreia: 20 de junho, em diversos cinemas e cidades brasileiras

 

FILMOGRAFIA
Nanni Moretti, Brunico, Itália, 1953

1977 – “Io Sono un Autarchio” (S-8 ampliado em 16 mm)
1978 – “Ecce Bombo” (primeiro longa profissional)
1981 – “Sogni D’Oro” (Prêmio em Veneza)
1984 – “Bianca”
1985 – “A Missa Acabou (Prêmio em Berlim)
1989 – “Palombella Rossa”
1990 – “La Cosa” (longa documental)
1994– “Caro Diário” (1º filme lançado comercialmente no Brasil)
1998 – “Abril” (sequencia carreira de Moretti no circuito brasileiro)
2001 – “O Quarto do Filho” (Palma de Ouro + Donatello)
2006 – “Crocodilo” (sátira a Silvio Berlusconi)
2011 – “Habemus Papam”
2015– “Minha Mãe”
2019 – “Santiago, Itália” (documentário)
2020 – “Três Pianos” (em finalização)

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