Era Uma Vez em… Hollywood
Por Maria do Rosário Caetano
“Era Uma Vez em… Hollywood”, o nono longa-metragem de Quentin Tarantino – estreia nacional nesta quinta-feira, 15 de agosto – passou pelo Festival de Cannes, em maio último, e causou furor. Na noite de premiação, não triunfou como “Pulp Fiction”, detentor da Palma de Ouro de 1995, mas mostrou que seu diretor e protagonistas, Leonardo Di Caprio e Brad Pitt, são mesmo astros planetários.
Fotógrafos, jornalistas e fãs cercaram e festejaram o badaladíssimo trio. E uma dúvida ganhou corpo na mídia: Tarantino teria pedido licença a Roman Polanski, cineasta franco-polonês, de 85 anos, para remexer em um dos momentos mais trágicos de sua história: a morte de sua mulher, a atriz Sharon Tate, então no frescor de seus 26 anos, despontando para o estrelato e, o mais apavorante, grávida de oito meses e meio?
O diretor de “Cães de Aluguel” confirmou que não pedira autorização ao diretor de “Repulsa do Sexo”. Depois de assistirmos a “Era Uma Vez em… Hollywood”, metalinguístico até no título (homenagem explícita a Sergio Leoni e seus “Era Uma Vez no Oeste” e “Era uma Vez na América”), entendemos porque Tarantino e seus produtores não se preocuparam em, eticamente, dar satisfação a Polanski.
A razão é cristalina. O cineasta e Sharon Tate são tratados com imenso amor e respeito nesta nova ode de Tarantino ao cinema. O polonês aparece como um dândi conquistador, incensado pelo imenso sucesso de “A Dança dos Vampiros” e “O Bebê de Rosemary”, produções norte-americanas que sequenciaram sua revelação na Polônia e França, com “A Faca na Água”, “Repulsa ao Sexo” e “Armadilha do Destino”.
Em “Era Uma Vez em… Hollywood”, o já quase sexagenário Tarantino conta duas histórias. Com mais espaço, a principal: a imensa amizade entre um ator de western em fase crepuscular (Leonardo DiCaprio) e seu dublê e motorista faz-tudo (Brad Pitt). A outra, com protagonista sem igual relevo, evoca o trágico assassinato de Sharon Tate por seguidores de seita comandada pelo guru Charles Manson. A estes dois poderosos fios narrativos, somam-se subtramas, todas envolventes (tanto que os 165 minutos de filme voam céleres).
Perde tempo quem acha tênue a ligação do ator decadente, obrigado a atuar em western-spaghetti filmados na Espanha, com a trágica história do Casal Polanski-Tate. Também não adianta apelar a argumento arquitetônico: as imensas mansões de Beverly Hills ficam muito distantes uma das outras (o que facilitou o massacre dos seguidores de Chgarles Manson). O cinema de Tarantino não quer saber da realidade física, geográfica ou social. Nos filmes dele, Hitler morre dentro do cinema e um dublê de meia idade resiste à sedutora e aliciante cantada de uma minfeta. Daí que, neste “Era Uma Vez”, a mansão do personagem de DiCaprio fica colada à mansão do casal Polanski-Tate (o polonês estava em Londres quando a esposa grávida foi vítima de 17 facadas).
Tarantino, nascido no Tenessee, segue louco por cinema, mas parece mais calmo, mais denso, embora o entretenimento de alta qualidade seja, ainda, sua mola propulsora. Não fosse a sequência de massacre, que espelha metaforicamente, com muito sangue e doideira (ou tarantinices), o que seria a trágica morte de Sharon Tate e seus amigos (o roteirista Voytek Frykowski, a socialite Abigail Folger, o cabeleireiro Jay Sebring e um zelador), os fãs empedernidos do cinema metalinguístico-cínico-malucão do realizador ficariam frustrados.
Se o cineasta monta um grand guignol para a sequência do massacre metafórico, com direito a lança-chamas e todos os exageros do mundo, no restante do filme, ele se mostra muito amoroso, delicado até.
Quem há de resistir à sequência que une Truddy, uma menininha-prodígio (Julia Butters) ao cowboy beberrão (Leonardo DiCaprio)? Os dois vão atuar, juntos, em filme de segunda linha. Ele aguarda sua hora lendo revistinha fuleira. Ela, um livro de qualidade e, ainda por cima, é capaz de mandar ver com surpreendente e inacreditável papo-cabeça.
Quem há de resistir, também, à sequência em que Sharon Tate (Margot Robbie) vai ao cinema para se ver na tela, como atriz coadjuvante de Dean Martin, em “Arma Secreta Contra Matt Helmann”, e desfrutar da vibração do público?
Há, ainda, outra sequência de antologia: depois de resistir à cantada de uma hippie adolescente (Margaret Qualley), o dublê Cliff Booth (Brad Pitt) enfrenta seguidores da seita de Charles Manson até chegar ao escondido quarto onde vive o senhorio. Ciff quer, porque quer, reencontrar o velho produtor de westerns, já meio senil (Bruce Dern, notável), que aluga seu imenso e devastado terreno, outrora estúdio dos mais produtivos, para aquela fauna esquisita. O encontro de Bruce Dern e Brad Pitt é inesquecível.
Para fazer graça e valorizar seu dublê-ainda-galã e anglo-saxão, Tarantino, em uma de suas infindáveis brincadeiras metalinguísticas, cospe num dos pratos em que comeu. Apaixonado pelo cinema de lutas marciais, em especial o de Hong Kong, desta vez, o realizador não dá colher de chá aos orientais. O rei do kung-fu Bruce Lee (Mike Moh) leva sempre a pior.
Acusado de misógino – levantamento de feministas norte-americanas mostra que apenas 27% dos diálogos tarantinescos são proferidos por suas atrizes – o cineasta construiu sequência, na qual Cliff Booth tenta convencer Randy (Kurt Russel), responsável pela escalação de dublês, a colocá-lo no filme. Randy diz que a fama dele (do dublê) é muito ruim e que sua mulher, também profissional de cinema, não o quer no set (afinal, sabe-se, ele matou a esposa). A companheira de Randy entra em cena, durona, e com voz ativa dá um chega pra lá em Cliff Booth. Mas tudo termina bem, pois Tarantino ama seus dois protagonistas acima de tudo. E faz de Sharon Tate uma deusa de celuloide, que desfila pela tela, como um símbolo de beleza e pureza.
O endeusamento de Sharon, uma perfeita Vênus, ganha materialização em sequência rápida, mas simbólica. Polanski desfila com sua linda mulher em festa badaladíssima. Steve McQueen (Damian Lewis) conversa com um amigo e ironiza: o baixinho polonês é um conquistar irresistível e, por isto, se faz acompanhar das garotas mais belas do pedaço.
Ao final do filme, os protagonistas terminarão bem. E vivos. Tarantino quis assim. Ele ama tanto o cinema, que amenizou o crepúsculo de seus deuses de celuloide. Em 1969 (Sharon Tate foi assassinada em 9 de agosto, há exatos 50 anos), os filmes eram impressos em celuloide. Fossem superproduções ou filmes de categoria B.
Aqueles que vão ao cinema apenas para divertir-se e decifrar centenas de citações metalinguísticas, encontrarão neste “Era Uma Vez em… Hollywood” banquete pantagruélico. E trilha envolvente, que vai de Simon e Garfunkel (“Mrs Robinson”, do delicioso “A Primeira Noite de um Homem”) a José Feliciano (“California Dreamin’”, hino hippie). Tudo leva a crer que este será o maior sucesso comercial de Quentin Tarantino no Brasil. Se não superar, deve, pelo menos, igualar-se aos êxitos de “Bastardos Inglórios”, “Django Livre” e “Os Oito Odiados”.
Era Uma Vez em … Hollywood
EUA, 2h45, 2019
Direção: Quentin Tarantino
Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Al Pacino, Bruce Dern, Margaret Qualley, Ken Russel, Rafal Zawierucha e Damon Harrinan
FILMOGRAFIA
1992 – Cães de Aluguel
1995 – Pulp Fiction (Palma de Ouro em Cannes)
1997 – Jackie Brown
2003 – Kill Bill – Volume 1
2004 – Kill Bill – Volume 2
2017 – À Prova de Morte
2009 – Bastardos Inglórios
2012 – Django Livre
2015 – Os Oito Odiados
2019 – Era Uma Vez em… Hollywood