“Fuleiragem fiction” e comédia teen sobre corpo trans, no Festival de Brasília
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
Os protestos tornaram-se a marca registrada da 52ª edição do Festival de Brasília. Nunca se viu edição tão politizada. Na noite chuvosa da última segunda-feira, 25 de novembro, eles começaram mais cedo. Às seis da tarde, na abertura da competição de curtas e longas-metragens candangos, reunidos na Mostra Brasília BRB, a numerosa equipe de “Escola sem Sentido” subiu amordaçada ao palco.
Só Thiago Foresti, o diretor do curta de 15 minutos, uma sátira corrosiva ao projeto de Escola sem Partido, tirou a fita adesiva que lacrava seus lábios, para avisar que tudo que ele poderia dizer ali estava “dito no nosso filme”. Quando a projeção terminou, os aplausos explodiram no Cine Brasilia. Começou, então, a exibição de “Mãe”, longa ficcional de Adriana Vasconcelos, um drama familiar sobre quatro mulheres. A principal delas, uma presidiária (interpretada pela baiana Ana Cecília Costa), é autorizada a passar o Natal com a família. Sua mãe, uma mulher de 66 anos (vivida pela atriz carioca Sura Berditchevsky), criou a filha e a neta da encarcerada. Rancores, dores e amores se misturam numa trama que tem o estupro como pedra angular, mas prefere centrar-se nos sentimentos das personagens. E, em especial, na questão da maternidade.
Com participação especial da cantora Carmen Manfredini, irmã do legionário Renato Russo, “Mãe” tem muita música em sua trilha sonora e termina, em final aberto para a protagonista, com pungente interpretação de Caetano Veloso para sua “It’s a Long Way” (do memorável elepê “Transa”). O público brasiliense aplaudiu com entusiasmo a história, integralmente ambientada em cidades-satélites e no Plano Piloto.
Quando as duas equipes da Mostra BRB dirigiram-se ao foyer do Cine Brasília para debater “Escola sem Sentido” e “Mãe”, os protestos voltaram a acontecer. O ator Wellington Abreu, presença marcante em filmes de Adirley Queiroz, e protagonista de “Escola sem Sentido”, usou o microfone para ler manifesto em defesa da liberdade de criação e expressão.
No filme, ele interpreta o simpático professor Chicão, adorado pelos alunos, pois dramatiza a História, sua disciplina, com gestos largos e apaixonados. Uma aluna, porém, grava sua aula no celular e mostra aos pais burgueses, que resolvem denunciar Chicão à direção do Colégio. Repreendido, ele começará a se conter. Irá, aos poucos, perdendo o entusiasmo e começará a dar aulas burocráticas e frias. O curta de Foresti seria apenas uma sátira divertida se não lançasse mão de poderoso recurso – o distanciamento brechtiano. Uma voz externa, proferida por uma jovem mulher germânica, comenta a ação. E o faz no idioma de Goethe.
Na terceira noite da competição nacional pelo Troféu Candango, os protestos foram mais contidos. Dupla mineira formada por Angélica Lourenço (diretora) e Leo Monteiro (produtor e preparador de elenco) defendeu “a manutenção de políticas públicas para o audiovisual brasileiro, tão ameaçados pelo atual governo” e avisaram que “Cabeça de Rua”, o primeiro filme que mostravam no Festival de Brasília, tinha tema de grande importância e urgente necessidade de enfrentamento: o desemprego e o subemprego.
As duas protagonistas do curta “Cabeça de Rua” são as primas Célia (Cora Rufino) e Sílvia (Danielle Sendin). Célia é guardadora-lavadora de carros numa rua de Belo Horizonte, credenciada pela Prefeitura. Alguém arruma para ela um emprego formal: vender ração para animais, numa loja. Em seu último dia de trabalho na rua, ela terá que decidir se quer mesmo ser uma “trabalhadora fichada, de sapato alto” ou continuar no subemprego com o qual se familiarizou.
As duas atrizes, vindas do NECA (Núcleo de Experimentação Audiovisual), abraçaram seus papeis com garra e o filme busca mais sensações que reviravoltas narrativas. E termina com música-manifesto: “Lésbica Futurista”. No debate, houve quem visse em Sílvia um estereótipo da mulher lésbica (jeito de comer masculinizado, boné com a aba virada para trás). A diretora e o produtor lembraram que fugiram do didatismo e dos estereótipos. E que a composição da personagem Sílvia era fruto do trabalho da atriz Daniela Sendin, que optara por tal gestualidade e adereço.
O segundo curta da noite pareceu, dentro do politizado Festival de Brasília, um verdadeiro Ovni. Sim, um objeto não-identificado. A começar por seu autor, o veteraníssimo Severino Dadá, quase octogenário. Num festival que só vinha abrindo espaço para jovens realizadores, causou espanto ver o grande montador de Nelson Pereira dos Santos e de Rogério Sganzerla, que o apelidou de “o Cangaceiro da Montagem”, no palco, sozinho, para defender “A Nave de Mané Socó”.
Vestido com uma vibrante camisa vermelha, Dadá só fez graça. Relembrou um pouco de sua história de muitas décadas no cinema brasileiro e avisou que se Spielberg e Luccas faziam sci-fic (science fiction), ele, pernambucano cabra da peste, fizera um “fuleiragem fiction”. Ou seja, uma ficção científica intencionalmente pobre, artesanal, fuleira.
No debate do filme, Dadá continuou narrando suas memórias e fazendo graça. Lembrou sua carreira como locutor de rádio, a prisão depois do golpe militar de 1964 (era militante de esquerda muito próximo a Miguel Arraes), e, por fim, a entrada definitiva no mundo do cinema.
“Tive que mudar para o Rio, pois a barra em Pernambuco estava pesada”. Daí, enturmou-se, graças a dois amigos alagoanos, os atores Jofre Soares e Emmanuel Cavalcanti, com o pessoal do cinema, em especial com Nelson Pereira. A fama de “ótimo sincronizador” (“pensavam até que eu lia lábios, que treinara no Instituto de Surdos e Mudos”) fez dele assistente de montagem, de direção, do que aparecesse. Montou alguns curtas, até que Nelson Pereira o convidasse para assinar a montagem de “O Amuleto de Ogum”. No filme seguinte, “Tenda dos Milagres”, baseado em Jorge Amado, ele virou inclusive personagem, o montador, de nome real, Severino Dadá. O escritor baiano se divertiu tanto com o acréscimo metalinguístico de Nelson, que dedicou livro a Dadá citando a presença dele no filme. “O Nelson chamou outro montador para editar as partes em que eu aparecia como ator, pois seria esquisito eu mesmo montar/cortar estas partes” (risos).
“A Nave de Mané Socó” é “um filme nepotista”, brincou o veterano montador, que antes dirigira dois médias-metragens documentais (“Geraldo José, o Som sem Barreiras”, em 2003, selecionado pelo Festival é Tudo Verdade, e “Memórias da Glória”, 2006).
“Fizemos ‘Mané Socó’ com apoio da Fundarpe pernambucana”— relatou — “com muito improviso e pouco dinheiro. Meu filho, André Sampaio (montador premiado de ‘Azougue Nazaré’) assina a montagem, minha nora, que estava grávida, faz uma moradora da cidadezinha da Pedra que engravida de um extraterrestre, e minha netinha encerra o filme, com os olhos azul-metálicos brilhando, pois é filha de um ET”.
Dadá, que montou “Nem Tudo É Verdade” e “Linguagem Orson Welles”, ambos de Rogério Sganzerla, contou de onde veio sua inspiração para “A Nave de Mané Socó”.
“Trabalhei com Sganzerla e ele era louco por Orson Welles. Como Orson Welles ficou famoso? Como locutor de rádio que inventou a guerra dos mundos, em transmissão radiofônica que abalou os EUA”. E mais: “eu também fui locutor de rádio e, no filme, interpreto um locutor radiofônico. Cabe a ele anunciar que os moradores da Pedra, no sertão nordestino, estão sendo abduzidos. Aí a gente vai inventando coisas, utilizando o que aparece nas locações. Vocês repararam naqueles homens paramentados na Cavalhada? Acharam que eu tinha gasto o pouco dinheiro do filme alimentando aquele monte de cavalos. Não gastamos um centavo nessa parte. Pegamos carona no festejo do município de Arcoverde. Custo zero”.
Louco pela cultura popular nordestina, Dadá encheu o filme de vaqueiros, aboiadores, repentistas e cantadores de cordel. Quando o filho, André Sampaio (também cineasta) viu que a história começaria com um vaqueiro, protestou: “vai ficar um filme antigo, velho”. Ao que o pai, em sua estreia na ficção, rebateu: “fique tranquilo, o vaqueiro será o primeiro abduzido pela nave espacial. Vamos fazer uma trilha sonora bem louca, tudo vai ficar bem diferente”.
A trilha, contou Dadá às gargalhas, foi fruto de apropriação e recriação: “pegamos trilhas de filmes de Spielberg e Luccas, reviramos do avesso, mexemos e remexemos, e daí nasceu o som da Nave de Mané Socó”. A direção de arte (do mesmo André Sampaio, o filho-cineasta) também foi feita no improviso. “A nave espacial foi gerada na oficina de um amigo, da soma de duas calotas de carro. E ganhou até uma luz vermelha, tudo no efeito especial (ou espacial)”.
Depois de contar que virou “verbete na Wikipedia” (aliás, um ótimo verbete) o montador e cineasta pernambucano, radicado há décadas no Rio, contou que sua vida será transformada em longa documental pelo cineasta, doutor em cinema e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Luis Alberto Rocha Melo. “Ele está fazendo este documentário há oito anos. Entrevistou Nélson Pereira dos Santos, que contou muito de nossa longa convivência, já falou com um monte de gente, mas não me mostra nada. Quer fazer surpresa. Só vai me deixar ver o filme quando estiver pronto”.
Depois da alegria de Severino Dadá, chegou a vez de debater “Alice Jr”, a comédia teen protagonizada por uma jovem transexual (a atriz pernambucana Anne Celestino), dirigida pelo paranaense Gil Baroni e escrita pelo ator e dramaturgo Luiz Bertazzo.
Primeiro, há que se registrar que o filme, que passou, antes de Brasília, por quatro outros festivais, recebeu, ao final, palmas calorosas. Quem pensava que a plateia da politizada competição brasiliense receberia com palmas protocolares a fábula construída como uma sessão da tarde cor-de-rosa, enganou-se. Houve quem aplaudisse o filme de pé.
A trama de “Alice Jr” é singela e de fácil compreensão e recepção. Inspirado levemente em “Alice no País das Maravilhas”, Bertazzo conta a história de uma heroína transexual, que deixa Pernambuco rumo a uma cidade interiorana (a fictícia Araucária do Sul, no Paraná). No novo lar, o pai, francês de nascimento e pesquisador de essências, deve sintetizar novo perfume a partir da semente de uma tal araucária imperial. A jovem, que é “vlogueira” de tutoriais, sonha em perder a condição de BV (Boca Virgem). A mudança repentina para uma nova cidade e um novo colégio, católico e conservador, vai perturbar seu sonho juvenil. Terá que enfrentar bullying e colegas hostis. Mas, depois de ser humilhada em dois momentos — um provocado pela ausência de banheiro para transexuais e outro, numa Pool Party, quando será desnudada à força — Alice Jr dará a volta por cima. E encontrará inesperada parceria para, enfim, perder a condição de BV.
No debate, “Alice Jr” só recebeu elogios ou perguntas informativas (sobre a trajetória da atriz, do diretor, a construção do roteiro, o lançamento comercial). Nenhuma crítica. Gil Baroni (neste que é seu terceiro longa, um deles, “O Amor de Catarina”, é protagonizado pela voggler Kéfera) aceita, sem protestos, definições como “sessão da tarde”, “comédia pop teen”, “fábula em ritmo de telefilme” etc. Assume, também, sem incomodar-se, que fugiu de qualquer aprofundamento na abordagem de tema tão complexo quanto a aceitação social de jovens transexuais. O pai de Alice, o perfumista interpretado pelo estreante Emmanuel Rosset (francês radicado no Brasil), adora e mima a filha. É adorável, o pai que todos pediram a Deus. Na escola, depois de algumas dificuldades, a personagem a todos conquista.
“Na vida real”— admitiu a atriz Anne Celestino —, “95% das transexuais sofrem muito no seio familiar, na escola, nas ruas”. Ela mesma contou que foi obrigada a cursar o supletivo, depois de voltar de curso de intercâmbio nos EUA e de ter realizado sua transição. “Sete escolas particulares pernambucanas se negaram a aceitar minha matrícula, me forçando a recorrer ao supletivo”. Hoje, Anne cursa a universidade.
Gil Baroni e Luiz Bertazzo assumiram, aberta e serenamente, o desejo de realizar uma fábula teen, bem-humorada e construtiva. E com linguagem pop, marcada por grafismos emprestados da Historinha em Quadrinho, da TV e, principalmente, dos mais descolados “vloggers” da internet. O filme será lançado pela Olhar Distribuidora, de Curitiba, em junho de 2020. “Vamos aproveitar a Grande Parada Gay de São Paulo para divulgar o filme, mobilizar o público e os formadores de opinião”, conta Baroni. Para arrematar: “temos pouco dinheiro para o lançamento e, por isto, vamos usar a criatividade, em especial na internet. Queremos, como ‘Bacurau’, criar um boca-a-boca bem positivo’.
Se depender da recepção das plateias que aplaudiram o filme em seus cinco primeiros festivais, “Alice Jr” será um sucesso de bilheteria. Quem defende que sua faixa etária seja censura livre — muita gente, durante o debate, defendeu tal recomendação — terá que conformar-se. “Alice Jr” recebeu indicação para maiores de 12 anos.