De Arthur a Coringa: a curva invisível do personagem
Por Hermes Leal
O candidato ao Oscar de melhor roteiro adaptado, “Coringa”, tem uma escritura de muito parecida com a do roteiro do filme “Parasita”, especialmente por sua estrutura e desenvolvimento do arco dos personagens, sendo fiel à teoria dos três atos. O roteiro dos dois filmes tem sua qualidade e apelo por utilizar como estratégia as transformações da narrativa e do personagem, seguindo um esquema teórico baseado na Semiótica das Paixões.
A Semiótica oferece instrumento para o roteirista construir o arco dramático de “Coringa”, na transformação interna e nas ações do personagem Arthur, que estão estruturados como roteiro através da mesma teoria que mostrou o arco dramático de “Parasita”, que também concorre ao Oscar de melhor roteiro original. Esse instrumento permite ir além do conhecido na construção de personagem e na estrutura dramática do roteiro.
A primeira observação no roteiro de “Coringa” é sobre como os roteiristas mudaram o nome do personagem. Tenho duas versões do roteiro original de “Coringa”. Na primeira versão, de abril de 2018, o personagem Arthur era assinado como Coringa, da primeira à última cena do roteiro. Na versão final, de dezembro de 2018, o nome de Coringa foi substituído por Arthur, por se tratar de um personagem que não tinha, até o final do roteiro, as características do vilão dos quadrinhos de Batman, do qual se originou. Assim, quem ler o roteiro, verá primeiro as ações de Arthur e somente no final da história começará a ler as ações de Coringa.
Essa forma de escrever tem uma razão, que reflete na qualidade do filme, que tem origem no roteiro, na organização da narrativa e da jornada interna e passional do personagem Arthur. Na reescrita do roteiro, o personagem exigiu um aprofundamento obrigatório antes que se transformasse em Coringa, especialmente para fortalecer o seu sofrimento, o seu sentir, para depois melhorar as performances em forma de ações. E isso é feito sob um arco de transformação do personagem de Arthur a Coringa. E esse arco não é somente o do “agir”, mas também o do seu “sentir”, um lado que antes não se explorava na construção do roteiro, que não fosse de maneira intuitiva.
A curva passional de Arthur, diferente da curva da ação, é invisível e regida pelo “sentir”, se transforma aos poucos, a partir deste sentimento de amor pelo próximo, no primeiro ato, que se transformará nas paixões da “raiva” e do “ressentimento”, no segundo ato. E que desencadeará em mais uma paixão, a “vingança”, no fechamento de seu arco, no terceiro ato, quando, ao invés de atirar em si próprio, atira e mata a pessoa que ele julga oprimi-lo e humilhá-lo.
Ou seja, essa passagem de Arthur a Coringa é uma demonstração de que mudanças como esta (o roteiro foi quase totalmente reescrito e teve cortadas mais de 60 cenas até o tratamento final) visam a focalização na passionalidade que rege as ações de Arthur. O que irá se transformar em “arco” será sua passionalidade, de mocinho a vilão, da dor individual para a coletiva e social.
A curva sensível de Arthur para se transformar em Coringa passa por um “contrato”, com a mãe e com o seu objeto de ser humorista, no primeiro ato, uma “manipulação”, no segundo, sobre sua origem, seu pai e sua mãe, e uma “sanção”, no terceiro ato, com a quebra de contrato com sua mãe, assim como o resultado de um programa narrativo da busca pelo sucesso como humorista de stand up, que se iniciou e se encerrou no primeiro ato.
Do ponto de vista da ação e do tempo, os atos estão bem distribuídos, com o primeiro se encerrando na página 36 do roteiro, quando é demitido do emprego, humilhado e desacreditado por ninguém levar em conta o que ele sente, pensa e faz. Na cena seguinte, inicia-se o segundo ato, que vai até a página 72, quando finaliza sua busca pela verdade, com relação à sua mãe e seu pai, e, no terceiro ato, se fecha a sanção; após matar a mãe, no segundo ato, agora Arthur se prepara para o seu “grand final”, participando de um show de stand up ao vivo pela TV.
Do ponto de vista de sua passionalidade, o arco ocorre quando o estado patêmico de alma de Arthur sai de um sujeito calmo, no primeiro ato (apesar da doença de rir fora de hora, tomar sete remédios por dia e visitar regularmente um psiquiatra), para um estado raivoso, depressivo e de vingança, no final de sua jornada, em razão do desprezo que as pessoas têm por ele. Suas paixões se transformam ao longo de sua jornada, motivam suas ações e geram seus diálogos, fechando um arco completo no final, do “sentir” e do “agir” de Arthur, se transformando no Coringa.
A jornada interna do personagem é invisível
A jornada interna, para a transformação em três atos, de Arthur à Coringa, ainda é marcada por uma frase em sua agenda, em que ele escreveu “valer centavos a mais com a sua morte que com sua vida”. Ele terá, obrigatoriamente, um programa narrativo com esse destino a resolver. Essa estrutura de ação de Arthur, em querer-ser um humorista famoso, tem uma origem no sentimento de se matar diante de uma grande plateia, e para o qual o personagem ensaia esta cena várias vezes. Seu equilíbrio passional vive por um fio: ou ele será um humorista ou morrerá chamando a atenção de todos para si, ao menos uma vez, na sanção, onde a verdade obrigatoriamente precisa aparecer.
No entanto, neste terceiro ato, no fim da jornada interna de Arthur, ele surpreende na sanção e não usa a arma para se matar, mas a usa para matar quem lhe rejeitava, o fazia sofrer, “liquidando a sua fratura” e o seu sentimento de rejeição, desviando a curva já traçada para o seu destino. E a cena que parecia previsível se transformou em uma surpresa. Impactou o final do filme.
Foi a estratégia montada nesse eixo passional de Arthur, de se matar caso não fizesse sucesso como humorista, que fechou o sentido do filme, surpreendendo o espectador. E esse tipo de cena surpreendente tem o nome de “narrativa concessiva”, a parte desta teoria que ajuda o roteirista a escrever cenas e personagens em forma de “surpresa”. Ela é o inverso da narrativa implicativa, ligada à ação.
A teoria leva em conta que os acontecimentos do nível da ação, que estavam previstos para acontecer, não aconteceram. E o que chegou no lugar foi uma concessão ao previsto, portanto uma surpresa que abalará o sentir do personagem. Se Arthur tinha um revólver que a todo tempo apontava para a própria cabeça, implicava que ele iria se matar. Mas isso não aconteceu e, ao invés disso, surpreendendo a todos, Arthur mata seu ídolo e não atira em si como estava previsto.
As curvas de transformação do personagem em três atos
A teoria na qual se baseia estes três atos, da Semiótica das Paixões, é científica e pode ser aplicada no roteiro de ficção de qualquer gênero e formato. É através dela que obtemos ferramentas para desenvolver essa curva visível, da ação, e invisível, do sentir, de cada personagem. Essa nova teoria do roteiro se inicia com este conceito narrativo de um contrato subjetivo, na base da confiança, entre dois personagens.
Serve para revelar sua personalidade inocente diante das injustiças praticadas contra ele, no trabalho e nas ruas, onde é espancado. Enquanto que o segundo, já é para buscar a verdade, com relação à sua mãe e ao seu pai, descobertas que o levam a matar de fato a própria mãe.
O ponto de virada final de “Coringa” está ligado à sanção da verdade sobre sua mãe e sua doença mental. Assim, o terceiro ato é para se vingar de todo o mal que lhe fizeram, um julgamento que se inverte o sentido da expectativa programada.
Na fase de contrato, a relação de Arthur com a mãe é virtualizada, só tem “querer”. Assim como ele também quer ser um humorista famoso, quer ser “visto como ser humano” também. Tem como antiprograma narrativo o fato de ser louco, que precisa de remédios controlados, e a descoberta da verdade sobre seu pai e sua mãe e sobre os abusos sofridos na infância, e tudo mais que encontra pela frente.
No segundo ato, para Artur se realizar como humorista e cuidador de sua mãe, ele ensaia sua dança e apresentação para adquirir “saber” ser bom humorista, função do personagem nesta fase chamada de manipulação, e de atualizada. É quando o personagem luta para adquirir saber, para “poder”, então, realizar-se de fato no terceiro ato, quando a verdade dos contratos for sancionada. O que não ocorre com Arthur. Ele não adquiriu competência como humorista na fase de realização, não consegui “poder-ser” humorista como queria. Mas não se matou. E ao ser “visto” finalmente como ele queria, quase vira herói.
Sua curva invisível foi se transformar, de um sujeito calmo e agradável, apesar de ter ações de um louco, sem potência no primeiro ato, em um sujeito raivoso e vingativo, no terceiro ato. E com potência para a intolerância, para a competência de “poder-matar” quem não consegue lhe ver. E, assim, ele se livra da pele de Arthur e entra para o time de vilões como Coringa.
Hermes Leal é escritor, jornalista e cineasta, autor do método para escrever roteiros screenwriteronline.com.
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