O Oficial e o Espião

Por Maria do Rosário Caetano

Na mais bela sequência de “O Oficial e o Espião”, novo longa de Roman Polanski, os algozes fardados do Capitão Dreyfus lêem, atordoados, o manifesto “J’Accuse”, escrito por Émile Zola. O texto, um dos mais famosos da história política da França, é – naquele momento (1898) – a matéria de capa e peça de resistência do jornal L’Aurore.

O vigésimo-terceiro filme do realizador polonês, estreia deste 12 de março, tem, porém, o judeu Alfred Dreyfus como personagem coadjuvante. E Zola como mero figurante. Quem domina a narrativa, construída com cores sombrias e diálogos cortantes, é o Coronel Picquart (Jean Dujardin, em desempenho notável).

O Caso Dreyfus durou doze longos e conturbados anos (no final do século XIX). Em dezembro de 1894, o capitão de origem judaica Alfred Dreyfus (Louis Garrel) foi condenado por “alta traição”. A acusação: teria passado informações militares ultra-confidenciais aos alemães. Julgado a portas fechadas, foi condenado a degredo perpétuo na Ilha do Diabo (na Guiana Francesa).

Ao assumir o comando da Contra-Espionagem em nome do Estado Francês, o Coronel Georges Picquart, antissemita como seus pares, descobre que os documentos (em especial uma carta, peça-chave na condenação) haviam sido forjados. Colocando em risco sua própria ascensão na carreira militar, o oficial resolve levar sua investigação a fundo e enfrentar o tribunal.

O filme, que rendeu a Polanski o Leão de Prata em Veneza e o Cesar de melhor diretor e roteiro adaptado (além de figurino para Pascaline Savanne), teve carreira notável na França. Vendeu 1,5 milhão de ingressos, mesmo sob boicote de feministas, que continuam, ao vê-lo, passados mais de 40 anos de seu ato mais condenável (fez sexo com uma pré-adolescente, Samantha Gailey), como “violador em série de menores”.

O cineasta de 86 anos buscou no livro “O Oficial e o Espião”, do britânico Robert Harris (o mesmo do thriller “O Escritor Fantasma”), sua matéria-prima. E, desta vez, Polanski realizou seu filme, uma produção de alto custo, em língua francesa e não no esperanto planetário (o inglês). Como sua carreira é uma das mais internacionais do mundo cinematográfico, ele nunca se preocupou em respeitar o idioma dos lugares em que se desenvolvem suas histórias. “O Inquilino”, por exemplo, se passa em um prédio parisiense e todos falam inglês. Mesmo caso de “O Pianista”, cujos protagonistas e coadjuvantes são habitantes do gueto de Varsóvia, capital da Polônia.

A entrega do cineastas ao idioma inglês é tão central em sua carreira que, ao escolher a alemã Nastassja Kinski para protagonizar “Tess”, ele a mandou aprender inglês nos EUA. Fez o mesmo com a esposa, a francesa Emmanuelle Seigner, quando a preparou para atuar em “Busca Frenética”.

O público contemporâneo de fora da França terá tolerância para fruir a nova e vigorosa narrativa de Polanski? Eis a pergunta que acompanhará o filme em seu lançamento brasileiro. Lançamento que se dá em hora das mais complicadas (muito próxima do Oito de Março, Dia Internacional da Mulher, e em tempo de medo de aglomerações por causa da pandemia do coronavírus).

Há que se registrar que “J’Accuse” não é tão inovador quanto os primeiros filmes de Polanski (“A Faca na Água”, “Repulsa ao Sexo” e “Armadilha do Destino”). Nem tão sedutor quanto os filmes considerados, pelos críticos, suas obras máximas (“O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “O Pianista”). Mas, depois de filmes ruins (como “Piratas”, “Lua de Fel”, este um porno-chic, e “O Último Portal”, indigno de seu talento), ou apenas bons (“A Morte da Donzela”, “Deus da Carnificina”, “A Pele de Vênus” e “Baseado em Fatos Reais”), o mestre polonês volta a comandar um longa-metragem de sólidas qualidades, denso e complexo.

Sem dúvida, junto com a trinca vitoriosa que encabeça as listas de críticos (acima citada) e os filmes inventivos de seus tempos polaco-britânicos, há que se inserir “J’Accuse” (e “O Escritor Fantasma”) entre seus momentos mais luminosos.

O Oficial e o Espião | J’Accuse
França/Itália, 132 minutos, 2019
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Polanski e Robert Harris
Elenco: Jean Dujardin, Louis Garrel, Emmanuelle Seigner, Grégory Gadebois, Hervé Pierre, Mevil Poupaud, Mathieu Amalric, Vincent Perez, Eric Ruf, Denis Podalydès, André Marcon (Émile Zola), Damien Bonnard e Didier Sandre
Fotografia: Pael Edelman
Trilha sonora: Alexandre Desplat
Distribuição: Califórnia

FILMOGRAFIA
Roman Polanski (Paris – 18/08/1933) – Cineasta e ator polonês, com dupla cidadania (francesa)

Como diretor:

1962 – A Faca na Água (Polônia)
1965 – Repulsa ao Sexo (Inglaterra)
1966 – Armadilha do Destino (Inglaterra)
1967 – A Dança dos Vampiros (EUA)
1968 – O Bebê de Rosemary (EUA)
1971 – Macbeth (Inglaterra)
1973 – Quê? (Itália)
1974 – Chinatown (EUA)
1976 – O Inquilino (EUA)
1979 – Tess – Uma Lição de Vida (França e parceiros)
1979 – Piratas (França, Tunísia e parceiros)
1988 – Busca Frenética (França e parceiros)
1992 – Lua de Fel (França e parceiros)
1994 – A Morte e a Donzela (França e parceiros)
1999 – O Último Portal (França e parceiros)
2002 – O Pianista (França-Polônia e parceiros)
2005 – Oliver Twist (França e parceiros)
2010 – O Escritor Fantasma (França e parceiros)
2011 – Deus da Carnificina (França e parceiros)
2013 – Weekend a Campignon (Jackie Stewart) – único documentário de Polanski (França, Inglaterra)
2013 – A Pele de Vênus (França e parceiros)
2017 – Baseado em Fatos Reais (França – Polônia)
2019 – O Oficial e o Espião (J’Accuse) – (França/Itália)

Como ator (30 filmes – destaques):

1955 – Geração (Andrzej Wajda, Polônia)
1967 – A Dança dos Vampiros (EUA)
1974 – Chinatown (EUA)
1976 – O Inquilino (EUA)
1994 – Uma Simples Formalidade (Giusepe Tornatore) – (Itália) – Protagonista, junto com Gérard Depardieu
2003 – A Vingança (Andrzej Wajda)
2008 – Caos Calmo (Antonio Luigi Grimaldi) – (Itália) – Protagonista, junto com Nanni Moretti

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