BIFF online exibe inédito sobre a atriz Anna Karina

Por Maria do Rosário Caetano

Com a exibição do inédito “Anna Karina, para Você Lembrar”, documentário sobre a musa (dinamarquesa) da Nouvelle Vague (francesa), será aberta, nesta terça-feira, 21 de abril, a sétima edição do BIFF – Brasília Internacional Film Festival.

A festa seria presencial e o viúvo de Anna Karina, o cineasta Dennis Berry, estaria em Brasília para festejar os 60 anos da cidade e apresentar o filme que narra a luminosa trajetória da atriz, cantora, diretora, escritora e tradutora (intérprete) de outra glória da cinematografia dinamarquesa, Carl Dreyer (1889-1968).

Só que a epidemia do coronavírus obrigou Anna Karina Carvalho, diretora do BIFF, brasileira batizada com o nome da atriz nórdica, a transportar o evento de seus palcos físicos (o Cine Brasília e o Cine Liberty Mall) para o espaço digital. Esta será a primeira experiência de realização de um festival de longas-metragens online no país. O É Tudo Verdade, dedicado ao cinema documentário, adiou sua edição de número 25 para setembro. E aproveitou o apoio da Spcine Play e Itaú Cultural para promover três poderosos eventos digitais (exibição das séries “A Herança da Coruja”, de Chris Marker, e “Women Make Film”, de Mark Cousins, e retrospectiva de documentários brasileiros premiados ao longo de suas duas décadas e meia de existência). Mas, há que se reforçar, os filmes inéditos de suas mostras competitivas só serão apresentados, presencialmente, na primavera, para público e júri.

Já o BIFF colocará toda sua programação no espaço digital. Inclusive a mostra competitiva. E os jurados votarão de suas casas, onde assistirão aos filmes. O mesmo fará o júri popular. Há produções que estarão disponibilizadas pela plataforma Looke, em diversos horários, ao longo desta terça-feira, até domingo, 26. Alguns títulos, porém, só estarão disponibilizados em horário fixo e pré-determinado (veja ficha técnica abaixo).

Além do fascinante e poderoso documentário dirigido pelo quarto marido de Anna Karina, o californiano Dennis Berry, o BIFF apresentará outra produção badalada: o polonês “Corpus Christi”, de Jan Komasa, que foi finalista ao Oscar internacional (perdeu para o sul-coreano “Parasita”). Com temática polêmica (fé, sacerdócio e crime) e elenco liderado por Bartosz Bielenia e Aleksandra Konieczna, o longa polaco foi visto por alguns como um “intruso” na festa do Oscar. Não estaria à altura dos outros concorrentes (“Dor e Glória”, de Almodóvar, “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, e “Honeyland”, de Kotevska e Stefanov). Houve, também, quem visse, em “Corpus Christi”, um instigante e bem-sucedido jogo entre o falso e o verdadeiro, a fé e a hipocrisia.

No centro da narrativa, inspirada livremente em fatos reais, está Daniel, jovem ex-presidiário que se faz passar por sacerdote em pequeno vilarejo da católica Polônia. Com dom oratório, aprimorado no cárcere, ele oficia missa no dia de Corpus Christi e encanta os fiéis. No frescor de seus 20 anos, o “padre” continua apaixonado por rock, motocicleta, bebidas alcoólicas e cigarros. A alta hierarquia da Igreja, instituição que prega o perdão, perdoará o rapaz que, por seu passado criminoso, não poderia frequentar um seminário e jurar votos sacerdotais, como o de castidade?

Para competir com “Corpus Christi”, a curadoria do BIFF escalou os documentários “Blue Girl”, de Keivan Majidi (Irã/Curdistão), “Mapa de Sonhos Latino-Americanos”, de Martín Weber (Argentina), “Hálito Azul”, do português Rodrigo Areias, e “Fendas”, do brasileiro Carlos Segundo (ambos exibidos na Mostra Internacional de São Paulo), e “Encantado, o Brasil em Desencanto”. Este filme, de Filipe Galvon, representa a França, mas destaca dois brasileiros (Jean Wyllys e Leandro Karnal) e cenários cariocas (o bairro suburbano do Encantado). Ao longo de 63 minutos, Galvon registra fragmentos de nossa história recente, em busca de “testemunho político e poético do Brasil” pelo “olhar da primeira geração de origem popular a estudar no exterior”.

Duas ficções completam a mostra competitiva: o francês “The French Teacher – Um Amor a Três”, de Stefania Vasconcellos (parceria com Brasil e Turquia), e o bósnio “Me Leve para um Lugar Legal”, de Ena Sendijarević (parceria com os Países Baixos).

Se Anna Karina não tivesse morrido em dezembro do ano passado, ela faria 80 anos em setembro próximo e voltaria a Brasília para mostrar o belíssimo documentário que o marido cineasta dedicou a ela. Os dois estiveram na edição inaugural do BIFF, em 2012. Ela foi homenageada, cantou no Teatro Nacional, assistiu e debateu alguns de seus longas-metragens com o público e visitou exposição com fotos de alguns de seus 58 filmes (os mais importantes dirigidos por Godard, Rivette e Visconti, sem esquecer Schllondorf, Fassbinder, Vadim, Zurlini, Michel Deville, Raoul Ruiz, George Cukor e Tony Richardson). A atriz se aventurou na direção de dois longas – “Vivre Ensemble”, de 1972, e o road movie “Victoire”, de 2007. E narrou dois documentários sobre a obra de seu compatriota, Carl Dreyer, um dirigido pelo dinamarquês Jorgen Ross (“Dreyer”, 1964), e outro pelo francês Eric Rohmer (“Carl Th. Dreyer”, 1965).

O diretor de “O Martírio de Joanna D’Arc” e “A Palavra” teve presença significativa na vida da atriz. Ela atuava como sua intérprete quando ele viajava a Paris. A mãe da atriz, que era estilista, assinou os figurinos de “Gertrude”, derradeiro filme do mestre nórdico. Tudo isto, porém, seria mero acessório se a obra máxima de Dreyer, “O Martírio de Joana D’Arc”, não fizesse parte de “Viver a Vida”, o mais belo trabalho de Anna Karina no cinema. Jean-Luc Godard, quis, em 1962, que sua mulher, encarnada em Naná, jovem prostituta parisiense, fosse ao cinema assistir ao filme de Dreyer.

Karina lembrou aquele momento quando passou por Brasília, oito anos atrás: “Eu não ‘contracenei’ com as imagens em celuloide de Falconetti (a Joana de Dreyer), pois filmamos em uma sala escura. Como eu conhecia o filme de cor, não foi difícil registrar minha dor e lágrimas ao evocar o rosto de Joana D’Arc naquele momento em que o Padre Massieu (Antonin Artaud) anunciava que ela seria queimada na fogueira”. A atriz contou que Dreyer viu o filme de Godard e gostou muito.

Dennis Berry não fez de “Anna Karina, para Você Lembrar” um filme doméstico, ou de “marido-fã”. Cineasta com 32 filmes no currículo (e mais 14 como ator e nove como roteirista), ele foi de rigor e desprendimento raros. Deu a Godard o que era de Godard. O papel de descobridor, primeiro marido e diretor dos principais filmes da atriz. Abriu espaço nobre para “A Religiosa”, de Jacques Rivette, o filme-escândalo, interditado na França católica, mesmo sendo obra de um dos patrimônios nacionais, o filósofo iluminista Denis Diderot.

A narrativa começa com Anna Karina, já quase octogenária e com seu inseparável chapéu, dentro de uma sala de cinema, como a jovem prostituta Naná, de “Viver a Vida”. Ela evocará memórias de infância. O nascimento em 1940, com a Segunda Guerra Mundial destroçando a Europa, a infância agitada, o amor por Anna Magnani, que ela viu em “Roma Cidade Aberta”, de Rossellini, e a paixão por Louis Armstrong e Count Basie. Decidiu que, quando crescesse, seria atriz como a xará italiana, cantora e bailarina embalada pelos sons dos grandes jazzistas negros norte-americanos. E apaixonou-se por Charles Chaplin e seu Carlitos e pelos musicais de Hollywood, em especial os estrelados por Judy Garland.

Aos 17 anos, com pouco dinheiro e muito atrevimento, ela partiu rumo a Paris. Seus imensos olhos azuis-acinzentados atraíram o mundo da moda. Virou modelo e conheceu a estilista Coco Channel, que sugeriu que trocasse seu nome civil (Hanna Karin Blarke Bayer) pelo afrancesado Anna Karina (aná kariná). Rejeitou um pequeno papel em “Acossado” (Godard, 1960), porque teria que ficar nua. Mas aceitou, sem ler o roteiro, protagonizar “O Pequeno Soldado”, que o produtivo Godard faria no mesmo ano. Daí viriam mais seis longas godardianos (“Uma Mulher é uma Mulher”, musical que rendeu a ela o Urso de Prata de melhor atriz em Berlim, “Viver a Vida”, “Band à Part”, “Pierrot le Fou”, “Alphaville”, “Made in USA”) e um episódio (“Antecipação”), também de Godard, em “O Amor Através dos Tempos”. Em 1967, acabava o casamento civil e artístico com JLG, que realizaria “A Chinesa” já com sua nova musa, e esposa, Anne Wiazenmsky.

Anna Karina, que frequentava assiduamente a Cinemateca Francesa, convivera e aprendera muito com o núcleo duro da Nouvelle Vague (além de Godard e Rivette, que a dirigiram, Francois Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Valcroze e Jean Douchet). Agnès Varda, hoje reconhecida como o seminal (e solitário) nome feminino da Nouvelle Vague, é lembrada pelo curta “Les Fiancés du Pont MacDonald” (ou “Mefiéz-vous des Lunettes Noires”), parte do longa “Cleo de 5 às 7”. Embora não creditada, Anna Karina interpreta a noiva maluquinha de Godard, o rapaz de óculos escuros, de quem devia desconfiar).

Em “Anna Karina, para Você Lembrar”, Dennis Berry e a atriz abrem espaço nobre para “Anna”, telefilme de Pierre Koralnik, no qual ela cantou (composições de Serge Gainsbourg) e dançou ao lado de Jean-Claude Brialy. Pop e coloridíssimo, o filme tem sequências valorizadas no documentário que abrirá o BIFF, e nos mostrará Serge Gainsbourg dizendo que “Karina é especial por seu senso de humor e sensualidade”. Dos filmusicais ela levará, pela vida afora, a canção “Sous le Soleil Exactement”, composição de Gainsbourg adotada com fervorosa devoção.

Com trechos de filmes escolhidos com muita sensibilidade (e conservados como se tivessem sido feitos ontem) e acesso aos poderosos arquivos da TV francesa e do INA (Instituto Nacional de Arquivos), Dennis e Anna constroem juntos um documentário à altura do talento e da fascinante história de Veronica Dreyer, Naná, Odile, Marianne, Natasha Von Braun, Shéhérazade, Paula Nelson, Suzanne Simonin, Marie Cordona, Irene Cartis… Enfim, como ela mesmo se definia “a pequena garota viking”, que transformou-se num dos principais ícones da Nouvelle Vague.

 

BIFF – Brasília Internacional Film Festival (online)
Data:
de 21 a 26 de abril
Com mostra competitiva, Biff Júnior (programação para crianças e adolescentes), tributo a Kirk Douglas, pré-estreias, Spotlight Brasília, aulas magnas e workshops.
Exibições acontecerão no site do www.biffestival.com, com suporte da Looke, plataforma brasileira de distribuição de vídeos via streaming. Para assistir aos filmes, basta clicar na mostra e título desejados e, após preencher cadastro, acessar toda programação diária, gratuitamente. A maior parte dos filmes estará disponível durante os seis dias do festival, mas alguns títulos só poderão ser acessados em horários pré-determinados.

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