Pesquisador analisa cinema subversivo de Carlão Reichenbach e Nelson Pereira dos Santos

Por Maria do Rosário Caetano

O que seria de “Limite” sem Edgard Brazil?

Todo filme brasileiro merece ser analisado?

Qual é o papel da guerrilha, do foquismo e do desbunde em filmes como “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, de Carlão Reichenbach, “Fome de Amor”, de Nelson Pereira dos Santos, e “Prata Palomares”, de André Faria?

O que há em comum entre livros de Renato Tapajós (“Em Câmara Lenta”), Ignácio de Loyola Brandão (“Depois do Sol”), Márcio Souza (“Operação Silêncio”), Renato Pompeu (“Quatro Olhos”), Carlos Heitor Cony (“Pessach”) e Antonio Callado (“Quarup”)?

O Cine Belas Artes, localizado na Avenida Consolação paulistana, foi salvo graças à manipulação cinéfila de memória construída artificialmente?

Essas cinco perguntas (e outras mais) são respondidas, com brilho e ousadia, pelo pesquisador e ensaísta José Inácio de Melo Souza, no livro “Salvados Digitais” (Edições do Z). A publicação será lançada tão logo a pandemia do coronavírus permita ajuntamentos sociais no hall de um cinema (o Espaço Itaú Augusta, um dos templos da cinefilia paulistana).

José Inácio, formado em Cinema pela ECA-USP (com mestrado, doutorado e pós-doutorado), é pesquisador aposentado da Cinemateca Brasileira e autor, entre outros livros, de “Paulo Emilio no Paraíso” (Editora Record), monumental biografia de Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), de quem foi aluno, e do sólido “Salas de Cinema e História Urbana de São Paulo” (Editora Senac).

Avesso a badalações, polêmicas e debates públicos, José Inácio pôde, desde a década de 1970, quando iniciou sua graduação, dedicar-se ao estudo do cinema brasileiro. E o fez com imensa dedicação, seriedade e zelo. Seus livros são marcados pelo raciocínio rigoroso e, coisa rara nos nossos meios acadêmicos e jornalísticos, pela ousadia (até atrevimento) ao colocar questões e perguntas incômodas.

O discreto pesquisador somou, ao longo das últimas décadas, estudos sobre temas que sempre o apaixonaram: a literatura e o cinema “engajados” brasileiros, produzidos na época da ditadura militar (1964-1984), as salas cinematográficas espalhadas pela grande metrópole paulistana, a censura (das “fantasias de nitrato” aos filmes das décadas de 1960, 70 e 80) e a relação da burguesia brasileira com nossas imagens fílmicas. Alguns destes artigos foram publicados no espaço digital.

Apaixonado por livros físicos e pelo prazer de retirá-los da estante e lê-los (foi isso que fez por mais de 50 anos), José Inácio resolveu escolher dez ensaios já publicados digitalmente ou inéditos para materializá-los neste “Salvados Digitais”. Quatro deles obrigatórios por sua originalidade e ousadia.

Quem começar a leitura pelo sexto ensaio (“Pasolini passou aqui: subsídios para uma história do Cine Belas Artes”), será fisgado em definitivo. Poderá discordar da ideia-mestra do pesquisador (os defensores do Belas Artes construíram memória cinéfila artificial para impedir que ele desaparecesse), mas não poderá negar a potência instigadora de seus argumentos.

Quem for desobediente e escolher aleatoriamente o caminho a trilhar, acertará em cheio se recomeçar pelo primeiro capítulo – “Escritores e cineastas contra o regime militar: um estudo comparativo”. A leitura se mostrará iluminadora (e com tempero algo iconoclasta). Mais dois ensaios se mostrarão empolgantes: o de número nove, “Burguesia e cinema: o caso visual”, cujo título homenageia Maria Rita Galvão, a grande estudiosa da produtora Vera Cruz, e o de número dez, “Proibido para menores e senhoritas”. Este, é encantador. Descobriremos que houve, nos anos 1910, 20 e parte dos 30, um cinema erótico (feito aqui ou majoritariamente vindo de fora) assistido pelos brasileiros homens e adultos. Durante a era muda, as tais “fantasias de nitrato”, travestidas em filmes científico-educativos, eram vetadas às mulheres de todas as idades e aos menores. E entre os brasileiros que produziam estes “erótico-científico-educativos movies” estava a família do escritor modernista Menotti del Picchia.

Três dos dez ensaios constituem mergulhos profundos em três filmes, dois deles pouco estudados (“A Ilha dos Prazeres Proibidos” e “Prata Palomares”) e um, “Fome de Amor”, famoso por seu elenco estelar (Leila Diniz, Irene Stefania, Paulo Porto e Arduíno Colasanti) e pelo prestígio de seu diretor, Nelson Pereira dos Santos. E também por sua fonte literária (“História para se Ouvir à Noite”, novela “cristã de talhe espírita”, de Guilherme Figueiredo, irmão do futuro general-presidente João Batista Figueiredo) e trilha sonora inovadora (do músico Guilherme Vaz).

Os ensaios dedicados aos filmes de Carlão, Faria e Nelson são obsessivos. José Inácio analisa os filmes quase fotograma a fotograma até nos levar a uma, digamos, exaustão crítico-criativa.

Quem, porém, insistir na leitura aprenderá muito com o capítulo dois – “Maio e Guevara no litoral fluminense” (referência às praias atlânticas que ambientaram “Fome de Amor”) e com o três – “Na fronteira, a utopia” (sobre “Prata Palomares, que André Faria dirigiu com atores do Teatro Oficina no elenco e Zé Celso Martinez como uma espécie de atrevido e incômodo codiretor-mentor). E, também, com o capítulo quatro – “A ilha e a anistia”, sobre “pornochanchada” produzida pelo “boqueiro” Antônio Pólo Galante, que Carlão Reichenbach transformou em filme político-anarquista.

No meio das reflexões de José Inácio, brotam análises (ou provocações) sobre filmes como “Anuska, Manequim e Mulher”, “Bebel, Garota Propaganda”, “O Bravo Guerreiro”, “A Mulher de Todos” e, até “Limite” e “Terra em Transe”, considerados dois dos maiores filmes da história do cinema brasileiro. E é ao falar do filme de Mário Peixoto (1908-1992), objeto sagrado de nossa cinefilia, que o pesquisador lança a provocadora pergunta: “o que seria de ‘Limite’ sem o grande (imenso) diretor de fotografia Edgard Brazil?”.

Há, entre os estudiosos do nosso cinema, quem se oriente pela máxima pauloemiliana de que “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”. Mesmo sendo discípulo e biógrafo do brilhante ensaísta e professor da USP, não é a esta provocação que José Inácio recorrerá. Antes de estudar exaustivamente o obscuro “Prata Palomares”, indagará se “todo filme brasileiro merece ser analisado”. Um pesquisador deve dedicar suas reflexões a uma obra de vida acidentada e parcos espectadores como a de André Faria?

Sua indagação constrói paráfrase de palavra de ordem do período mudo (“todo filme brasileiro deve ser visto”) e será defendida com garra em “Salvados Digitais”. De certa forma, o ensaísta se debate com questão posta por estudiosos do romantismo brasileiro: o que seria mais produtivo – estudar a poesia condoreira de Castro Alves (1847-1871), poeta que encantou multidões em seus curtos 24 anos de vida, ou priorizar a poesia vanguardista de seu contemporâneo Souzândrade (1833-1902), lida por poucos?

A resposta de José Inácio à sua própria pergunta resulta em ensaio palomariano de 57 páginas fartamente ilustradas (a cores) e reflexões pertinentes.

Ele começa lembrando que “’Prata Palomares’, por exemplo”, longe de pertencer “à linhagem das películas canônicas do cinema moderno como de ‘Rio 40 Graus’, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ e ‘Terra em Transe’”, deve, por isso, “permanecer à margem do sistema interpretativo?”

“Não se trata” – prossegue – “de uma pergunta formulada aos filmes obscuros, às obras importantes, porém de pequena repercussão realizadas por grandes cineastas como ‘Fome de Amor’, de Nelson Pereira dos Santos”. E situa, o diretor de “Prata Palomares” em nossa trajetória cinematográfica: “A carreira de André Faria se resume a esse único longa-metragem, embora ele tenha se iniciado com o ímpeto dos jovens assistentes em produções significativas do porte de ‘O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro’, de Glauber Rocha, e ‘Memória de Helena’, de David Neves”. Nós concluímos, depois do longo e exaustivo texto, que José Inácio acha que um filme não pode ser medido apenas por sua repercussão junto ao público. Portanto, deve ser analisado desde que nos permita refletir sobre aspectos importantes de nossa história estético-social-e-política.

Três dos capítulos que completam “Salvados Digitais” são de leitura mais difícil e interesse específico: o quinto, “Os Estúdios da TV Tupi no Arquivo Histórico Municipal” (sobre a edificação que, depois da emissora Associada, sediaria a MTV), o sétimo, “Do kinetoscope ao kinetoscópio: variações sobre o mesmo tema”, e o oitavo, “O primeiro cinema permanente do Brasil: o São de Novidades Paris no Rio”.

O saldo final é dos mais positivos. Ainda bem que José Inácio resolveu salvar seus textos retirando-os da imensidão digital e colocando-os em letra e imagens impressas, sob três blocos temáticos (“Ditadura Cuidado Tinta Fresca”, “Nos Ups and Downs do Arquivo Municipal” e “Grande Cinema Antigo”). Boa leitura.

 

Salvados Digitais
Autor:
José Inácio de Melo Souza
Edições do Z/Gráfica Bartira, São Paulo, 2020
466 páginas, com 29 fotos, ilustrações, anúncios de época e gráficos
Lançamento com autógrafos e debate, tão logo os cinemas sejam liberados pelas autoridades sanitárias.

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