Salvyano: entre a virulência e o rancor

Por Maria do Rosário Caetano

O crítico potiguar Salvyano Cavalcanti de Paiva ganha, vinte anos depois de sua morte, “biobibliografia” escrita por seu conterrâneo, o pesquisador Wandyr Villar. Embalado em capa de grande apelo e qualidade técnica, o livro soma depoimentos e consulta a arquivos “precários” para compor, de forma fragmentária, a trajetória do natalense. Ao deixar a capital do Rio Grande do Norte, ainda adolescente, Salvyano encontraria no Rio de Janeiro a cidade que iria amar e onde viveria a maior parte de seus 76 anos.

O menino potiguar desembarcou, na década de 1930, na então capital federal. Mas a perda, primeiro da mãe e, depois, do pai, em prazo curto (encontrava-se nas faixa dos 12 aos 15 anos) o abalariam profundamente. Órfão, foi criado por tios. Passou, nos primeiros anos de juventude, por pequenos empregos, até tornar-se jornalista e atuar nos principais veículos da imprensa carioca. Destaque para o Correio da Manhã, O Globo, Jornal do Brasil e revista Manchete.

Até sua morte, em 2000, desempenharia os mais diversos ofícios: publicitário, poeta, romancista, documentarista (autor de um único filme, o curta “Brasileiros em Hollywood”), tradutor e, principalmente, crítico de cinema. Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923-2000) tornar-se-ia, na definição de Wandyr Villar, “o decano da Geração de 1940, formada com os críticos Moniz Vianna, Alex Viany, Alípio Luiz de Barros, Hugo Barcellos, entre outros”. Depois de uma vida com muitos altos e baixos, abraçou-se ao próprio rancor transformando-se em um dos críticos mais virulentos (para não dizer destemperados) do país.

Para se ter ideia do que o potiguar-carioca seria capaz de escrever, basta consultar a página 189 da “biobibliografia” villariana. Ao relembrar trecho de “História Ilustrada dos Filmes Brasileiros – 1929-1988”, o livro mais mais famoso de Salvyano (publicado pela respeitada Francisco Alves/1989), Villar registra a destruição em regra de “A Idade da Terra”. Não satisfeito em detonar o derradeiro longa-metragem de Glauber Rocha, Salvyano ainda destruiu “Terra em Transe”, considerado um dos maiores filmes brasileiros de todos os tempos (até por Martin Scorsese). E agrediu o cineasta de Vitória da Conquista:

– “Mixórdia supostamente alegórica ou simbólica, com imagens e falas pseudopanfletárias, ‘A Idade da Terra’ é ainda mais confuso e inconsequente do que o abominável ‘Terra em Transe’, retratos da insensatez e primarismo do autor e diretor Glauber Rocha, fariseu ideológico e subcineasta endeusado por idiotas de todos os quadrantes”.

O que levara Salvyano, já costumeiramente virulento, a somar doses tão desmedidas de agressão e rancor? O livro fornece pistas. Algumas de natureza pessoal. Salvyano andava com problemas familiares, perdera um filho assassinado pela Polícia, já não encontrava emprego (e editores) com facilidade, tinha problemas de saúde. Mas a principal explicação está nas páginas 66 e 67 do estudo de Wandyr. Ele relembra depoimento que Salvyano prestou, em 1988, ao “Memória Viva”, na TV-U (TV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte). No início da conversa, o crítico avisou a Alvamar Furtado e Carlos Lyra, os entrevistadores, que sobre Glauber nada falaria: “Ele não é uma pessoa que eu gostaria de abordar aqui, por razões pessoais”. Mas adiantou que falaria, sem problemas, sobre o Cinema Novo, movimento que fora “saudado, trombeteado com fanfarras, no início (…) eu mesmo, com muito gosto, fui um dos que o incentivaram”.

Ao longo do depoimento, que durou 55 minutos, Salvyano acabou falando de Glauber Rocha (1939-1981), a quem Paulo Emilio definira como o “profeta do Cinema Novo”. Mas o fez sem citar o nome do cineasta baiano e dentro de contexto referente às relações dos cinemanovistas com o Governo Militar. O assunto entrara em pauta por causa do filme “Dedé Mamata”(Dodô Brandão, 1987) em sua relação com a “esquerda festiva”:

– “O líder maior deles, hoje chorado pelas viúvas como uma figura extraordinária. Inclusive a crítica francesa é grandemente responsável por isso. Ele morreu desolado, porque foi abandonado por ela. Mas é uma figura abominável que terminou rastejando, é o termo certo, para voltar a Ibirapitanga, uma senzala, que eles lá fora e, quando podiam, aqui dentro, diziam ser cúmplices exclusivamente de um determinado regime”.

Salvyano manteve com Glauber relação das mais tumultuadas. Em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Civilização Brasileira, 1963), o baiano registrou o potiguar como criador do neologismo “nordestern” (o faroeste cangaceiro) para referir-se ao mais famoso dos filmes de Lima Barreto (“O Cangaceiro, 1953). Em outros momentos, acusou Salvyano, que exercia concomitantemente – algo impensável nos dias de hoje – dois ofícios (jornalista e publicitário), de estar a serviço do poderoso cinema de Hollywood.

O livro levanta, sem se aprofundar, outros temas controversos na carreira de múltiplos ofícios de Salvyano. Em nenhum momento se discute suas relações com o mercado publicitário (Carlos Heitor Cony lembra que o amigo criara ótimo anúncio para o efervescente Sonrisal), sua “breve passagem pelo Partido Comunista Brasileiro” (lembrada por Luiz Carlos Lacerda), seu trabalho no INC (Instituto Nacional de Cinema), organismo estatal de fomento cinematográfico, nem sua inusitada parceria com a dupla soviética Vsevolod Pudovkin e E. Smínova no livro “Pequena História do Cinema das Repúblicas Populares” (1958).

Teria sido este livro, que uniu Salvyano a Pudovkin (1893-1953), fruto do estímulo de dois comunistas históricos, Alex Viany (padrinho casamento do potiguar) e o produtor João Tinoco de Freitas, pai do cineasta Luiz Carlos Lacerda? A “biobliografia” de Wandyr Villar não desbrava esse caminho, mas esclarece que “Pequena História das Repúblicas Populares” é uma publicação na qual Salvyano foi tradutor, revisor e autor de “substancial acréscimo histórico”.

A matriz do livro, afirma Wandyr, seria ensaio de Pudovkin e Smínova (nome que não aparece na capa brasileira) escrito em 1948 sob o título “História do Cinema Soviético”. Salvyano teria conhecido o material ao ler a revista italiana “Bianco e Nero”. Exatos dez anos depois, assinaria a curiosa parceria com o autor de “A Mãe” e “Tempestade sobre a Ásia”, acrescentando, ao ensaio soviético, informações sobre os cinemas da Polônia, Tcheco-Eslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Albânia e China. Vamos combinar, Salvyano gostava de abraçar grandes desafios.

Há que se lembrar que o livro de Wandyr Villar é fruto de muito esforço pessoal. Por conta própria, ele foi ao Rio de Janeiro, onde entrevistou os escritores Carlos Heitor Cony, Murilo Melo Filho e Geraldo Edson de Andrade, os críticos Alberto Shatovsky, José Carlos Monteiro e Miguel Serpa Pereira, o ator José Marinho, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, o casal Rossana Ghessa e Durval Garcia (ela, atriz, ele, produtor e ex-presidente do INC), e Francisco César Moreira, quadro técnico da Cinemateca do MAM. Em Maricá, entrevistou Regina Paranhos, a primeira esposa de Salvyano (que o acolheu quando, com Alzheimer, não tinha quem dele cuidasse).

O projeto “Salvyano Cavalcanti de Paiva” (o livro só leva o nome do crítico) compõe-se de três partes. A primeira traz dados biográficos (o que foi possível levantar, sem apoio do filho do biografado). A segunda registra todos os livros que Salvyano escreveu ou traduziu. A terceira reúne generosa lista de livros, catálogos, enciclopédias e programa de TV (o Memória TV-U), todos consultados pelo autor. Faltou um índice onomástico.

Registre-se que Wandyr publica, em italiano e português, o capítulo (“Gêneros no Cinema Brasileiro”), que Salvyano escreveu para o livro “Il Cinema Brasiliano”, organizado em 1961, pelo cineasta (“Trópicos”), produtor (“Bahia de Todos os Sambas”) e agitador cultural Gianni Amico. Publica, também, a íntegra do texto que acompanha o curta-metragem “Brasileiros em Hollywood”, narrativa sobre os feitos cinematográficos de Syn Conde, Antônio Rolando, Lia Torá, Olympio Guilherme, Raul Roulien, Eros Volúsia, Aurora e, principalmente, a grande Carmen Miranda.

Falta ao livro, além de aprofundamento na trajetória de seu personagem, textos exemplares de sua produção crítica, principalmente aquela produzida nos anos de maior vigor e em veículos influentes como o Correio da Manhã, JB e Globo.

Salvyano escrevia bem? Tinha ideias originais e lançava mão de bons argumentos? Wandyr garante que sim, que Salvyano era dono de texto de alta qualidade, fosse em prosa ou verso. Mesma opinião do tradutor e ensaísta José Lívio Dantas, que, ao apresentar o romance “O Mito em Água e Sal” (1974), assegura: “Era conhecido o penache com que Salvyano, quase menino, escrevia nos bons tempos de Eu Sei Tudo e A Cena Muda – vibrátil, com plasma, com muita macheza (sic), preto-no-branco, pão-pão-queijo-queijo. E com muito conhecimento de causa. Uma espécie de Norman Mailer. Um enfant terrible a ser de devidamente domesticado, mas não assimilado, pela hoje notória sociedade de consumo”.

Ao ler o livro villariano, nos deparamos com prova viva da verve jornalística, dom satírico e poder de fogo do crítico-publicitário-romancista-poeta. Em 1989, ele publicou, no Jornal do Brasil, o próprio obituário. Wandyr Villar o reproduz na íntegra. Vale, pois, reproduzir o inusitado e mórbido anúncio:

Salvyano Cavalcanti de Paiva Pereira. Ainda vivo mas morto de vergonha de ser brasileiro avisa à praça que, pela terceira vez em 4 meses, foi vítima de um furto na 6ª feira última, num ônibus da linha 434, Leblon-Grajaú, entre 18h15m e 18h45m, no trajeto Lapa-Pça Onze. O ladrão levou-lhe Carteira de Identidade, cartão CPF, cartões magnéticos Bradesco e Citibank, cartão de compras Bradesco, cartão de depósito Citibank, talões de cheque dos referidos bancos, cartão de saúde Semic, cartão do Sindicato de Escritores, permanentes de cinema, caderneta de endereços e telefones, saldo em dinheiro da pensão do INPS e carteirinha de couro. Pede-se a quem achar os documentos entregá-los à Rua Santana, 77, apto 1701, que será recompensado. Vítima de oito assaltos de rua, roubo de carro sem recuperação, extorsão, assassinato de um filho pelo Estado, espoliações trabalhistas, sem contar jamais com reparações judiciais desta terra amaldiçoada, aos 65 anos de idade e 51 de dignos serviços profissionais, Salvyano, antes que os genocidas oficiais de aposentados e os marginais impunes o matem, pede a quem possa ajudá-lo a ir embora desta nação inviável, a fim de passar seus últimos dias num país menos violento, mais acolhedor e mais seguro”.

Wandyr lembra em seu estudo, enfática e excessivamente, a origem “rio-grandense do norte” (nunca usa o gentílico potiguar) de Salvyano, embora o jornalista tenha vivido e trabalhado no Rio por mais de 60 anos. Entende-se o desejo do autor, bibliotecário e editor ativo em seu estado natal, de valorizar os nascidos no Rio Grande do Norte. Mas a insistência acaba dando ar provinciano ao livro. Bastava – e Wandyr Villar faz isso – chamar às falas autoridades políticas e culturais para que se empenhem em perpetuar o nome de Salvyano em ruas ou praças potiguares. Ele registra, ainda, sua indignação com instituições de ensino (incluindo a Universidade Federal do Rio Grande do Norte), indiferentes à trajetória do filho ilustre, um “verdadeiro polímata”.

Os melhores momentos da “biobibliografia” referem-se aos anos finais do crítico, quando já doente, sem dinheiro, editores e amigos (afastou a muitos com seu espírito brigão) foi parar, como inquilino, em um pardieiro, o Edifício Balança Mas Não Cai. E, depois, na casa da ex-esposa, em Maricá, pois só ela condoeu-se do sofrimento dele.

Quando a vida de Salvyano iniciava sua fase crepuscular, surgiu chance de ouro: publicar, pela respeitada Francisco Alves, projeto que o crítico acalentava desde os anos 1950, uma história ilustrada do cinema brasileiro. Com o livro pronto, Salvyano se aborreceu com o resultado gráfico e armou o maior barraco na editora. Caiu em desgraça no meio editorial carioca. E o livro, com fotos imensas, e retratos de muitas atrizes nuas ou seminuas, também não foi bem recebido pela crítica.

Wandyr Villar, mesmo que em posição defensiva, dá ênfase às principais restrições feitas ao livro-álbum: 1. excesso de rancor nos textos (o caso da sintética crítica-legenda de “A Idade da Terra” constituindo exemplar paroxístico), 2. omissão total da produção documental, 3. uso apelativo do corpo de atrizes nuas ou seminuas em boa parte das ilustrações da obra.

Por fim, resta torcer para que tenha sobrevivido, entre o legado de Salvyano (“jogado nos fundos úmidos de uma casa em Maricá”), sua autobiografia. Wandyr Villar não conseguiu acessá-la. Se ela existir, carrega nome que o crítico anunciou em diversas oportunidades: “Não Esqueço, Não Perdôo!: Memórias de um Redator Profissional” (ou “Não Esqueço e Nem Perdôo”).


Salvyano Cavalcanti de Paiva
Autor:
Wandyr Villar
Editora: Tábua de Maré, Natal-Rio Grande do Norte, 2020
Páginas: 250 fartamente ilustradas
Preço: R$100,00 (frete incluído)
Pedidos pelo e-mail tabuademareeditora@gmail.com

 

LIVROS DE CINEMA

1953 – “O Gangster no Cinema”
1956 – “Aspectos do Cinema Americano”
1958 – “Pequena História dos Cinemas das Repúblicas Populares” (com VsevolodPudovkin e E. Smínova)
1961 – “Il Cinemo Brasiliano” (coletânea organizada por Gianni Amico)
1989 – “História Ilustrada dos Filmes Brasileiros: 1929-1988”

ROMANCE E POESIA

1953 – “Operação Verso” (poemas)
1974 – “O Mito em Água e Sal” (romance)

TEATRO

1991 – “Viva o Rebolado!: Vida e Morte do Teatro de Revista Brasileiro”.

TRADUÇÕES

1970 – “A Vida Sexual Secreta do Automóvel Americano”, de Ray Puechner (tradução em parceria com Elice Munerato)
1987 – “Grace Kelly: As Vidas Secretas da Princesa”, de James Spada
1987 – “O Prazer Como Risco de Vida”, de Randy Shilts
19891 – “Simone de Beauvoir: Uma Vida de Liberdade”, de Carol Ascher
1991 – “Ernesto Sábato – Meus Fantasmas”

FILME

“Brasileiros em Hollywood” (1970) – curta-metragem

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