Leonardo Villar

Por Maria do Rosário Caetano

No prazo de três anos, de 1962 a 1965, Leonardo Villar, que morreu nesta sexta-feira, 3 de julho, aos 96 anos, protagonizou dois dos mais importantes filmes da história brasileira – “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, e “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos. O primeiro ganhou a Palma de Ouro em Cannes, o segundo competiu no mesmo festival e conquistou os principais prêmios na primeira edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Até o exigente João Guimarães Rosa apaixonou-se pelo desempenho do ator e pelo filme que recriou seu longo e poderoso conto, parte do livro “Sagarana”.

Leonardo Villar nasceu no interior caipira de São Paulo, em Piracicaba, em 25 de julho de 1923. Trabalhou em fazenda e, ao radicar-se na capital paulista, foi ajudante de alfaiataria. Bonito e fascinado pela carreira de ator, conseguiu, depois de passar por banca examinadora comandada pela atriz Cacilda Becker (1921-1969), ser aprovado para a primeira turma de alunos da EAD (Escola de Arte Dramática).

Dedicou-se ao teatro e projetou-se com destaque no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Estreou no cinema já como protagonista absoluto. E arrebatador. Anselmo Duarte o escolheu para interpretar Zé do Burro, o homem simples, criação do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), que, para salvar seu burro, fez estranha promessa a Iansã (carregaria nas costas uma cruz, de seu lar até Salvador). Promessa que pagaria numa igreja católica, apostólica romana. Só não contava com a intransigência do padre (Dionísio Azevedo), que não admitia promessa feita a entidade da umbanda (Iansã). Nem que um homem carregasse uma cruz como fizera Jesus Cristo em seu martírio. Fotografado pelo inglês (radicado no Brasil) Chick Foyle (1915-1995), “O Pagador” resultou poderoso e encantou Cannes. Ainda hoje é o filme brasileiro preferido de muita gente. Inclusive do ator Paulo Betti, nascido na mesma região caipira de Leo Villar.

Do denso, religioso e obsessivo Zé do Burro, o piracicabano Villar, nascido Leonildo Motta, partiu para personagem ainda mais denso, religioso e obsessivo: Nhô Augusto Matraga. Um fazendeiro que seria moído a paulada por rivais, dado como morto, socorrido por casal de pretos-velhos e que, ao recuperar-se, empreenderia iniciação mística. Iniciação que o levaria aos céus, “nem que fosse a porrete”.

Guimarães Rosa estava cabreiro com a nova “transcriação” de um de seus escritos. Os Irmãos Santos Pereira (Geraldo e Renato) haviam realizado desfibrada adaptação de “Grande Sertão: Veredas”. O crítico Sérgio Augusto escrevera: ao invés de “um épico, os irmãos haviam feito um hípico”. Afinal, cavalos corriam para todos os lados. Este filme chegara aos cinemas brasileiros em 1964. Um ano depois, Rosa se apaixonaria pelo “Matraga” de Leo Villar, pela trilha de Geraldo Vandré (em parte, reaproveitada por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, em “Bacurau”), enfim, pela totalidade do magnífico filme de Roberto Santos (1928-1987).

Naquela altura, Leonardo Villar era “o cara”, a melhor “cara” do cinema brasileiro. Entre “O Pagador” e “Matraga”, ele faria “Lampião, o Rei do Cangaço”, um nordestern de Carlos Coimbra (1963), “Procura-se uma Rosa”, de Jece Valadão (1964), “Amor e Desamor”, de Gerson Tavares, e o ótimo “A Grande Cidade”, de Carlos Diegues (ambos de 1965), no qual interpretou Jasão, um matador.

Atuou, em 1966, em “Jogo Perigoso”, um obscuro filme do mexicano Arturo Ripstein (em episódios: o outro, sem Villar, foi dirigido por Luiz Alcoriza). Seguiram-se “O Santo Milagroso” (também de 1966) e “Madona de Cedro” (ambos de Carlos Coimbra, 1968).

Todo mundo queria trabalhar com o piracibano, pois era realmente ator de primeira grandeza. Era, também – como registrou José Joffily, que o dirigiu na telenovela “Amazônia”, junto com Tizuka Yamasaki (Manchete, 1991) – um profissional “quieto, discreto, sem alarde”, que “não seguia moda alguma”. Ao saber da morte do ator, o cineasta e professor da UFF lembrou-se de versos de Kipling: “se você sabe lidar tanto com o sucesso quanto com o fracasso e tratar da mesma forma esses dois impostores…”. Para Joffilly, Leonardo Villar “viveu bem do jeito que queria todos seus 96 anos”.

O sucesso no teatro e os prêmios no cinema levariam o ator para as telenovelas da Rede Globo. Atuou em “Meu Primeiro Amor”, “Estúpido Cupido”, “Escalada”, “Coração Alado”, “Os Ossos do Barão”, “O Grito”, “Barriga de Aluguel”, “Laços de Família”, entre outras. Ocupado com as narrativas televisivas, o cinema, tornou-se, então, atividade esporádica. Fez “Amor de Perversão” , de Alfredo Sternheim (1982) e parecia esquecido pelo veículo que, como nenhum outro, o projetara. Até que Joel Pizzini o resgatou com um belo curta, “O Enigma de um Dia” (1996). Eliane Caffé o dirigiu em outro curta, “Caligrama” (também de 96). Daí, Beto Brant o convocou para o longa “Ação entre Amigos” (1998), thriller político escrito por Marçal Aquino. Depois, viriam “Brava Gente Brasileira” (Lúcia Murat, 2000) e o belo e delicado “Chega de Saudade”, de Laís Bodanzky.

Se, ao longo de seus 96 anos, Leo Villar tivesse feito apenas “O Pagador de Promessas” e “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, teria conquistado lugar nobre na história artística brasileira. Mas fez mais, bem mais.

Relato aqui história singela sobre o discreto ator, que tinha também seus pequenos desejos (e caprichos): em 1994, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que premiara o ator e o filme “Matraga” como os melhores de sua primeira edição, em 1965, resolveu abrir sua edição anual com sessão-homenagem ao filme de Roberto Santos, restaurado pela Cinemateca Brasileira. Subiram ao palco da Sala Villa-Lobos, do niemárico Teatro Nacional, além de Leo Villar, a viúva do cineasta, Marília Santos, o compositor Geraldo Vandré e o ator Guaracy Rodrigues. Na plateia, alguns ministros do Governo Itamar Franco, entre eles Ciro Gomes (por quatro meses, titular da Fazenda). Os fotógrafos fizeram centenas de fotos. No dia seguinte, a imprensa brasiliense publicou vistosos registros visuais daquela noite festiva.

O discreto Leonardo Villar viu suas fotos no Jornal de Brasília e solicitou a mim, que cobria o evento para esse veículo candango, cópias das tais imagens. Queria guardá-las em seu acervo pessoal. Escolhi quatro delas, que julguei as mais representativas e, autorizada pela chefia de redação, pedi ao laboratório que caprichasse na revelação e adotasse formato de bom tamanho. Quando as entreguei ao ator, ele me olhou e disse, com sua voz educada e baixa: “pena que faltou a que eu mais queria, aquela com o ministro Ciro Gomes”.

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