Não Toque em meu Companheiro

Por Maria do Rosário Caetano

“Não Toque em meu Companheiro”, título do novo longa-metragem da cineasta Maria Augusta Ramos, presta tributo a uma das expressões mais correntes da língua francesa: “Touche pas à mon pote”. A expressão é tão popular, que deu nome e motivo a famosa canção de Gilberto Gil, composta na língua de Yves Montand e transformada em hino anti-racista.

O filme de Maria Augusta, documentarista brasileira radicada na Holanda, reconstrói história de greve de bancários que começou mal, mas deu origem a poderosa rede de solidariedade. Interessados poderão assisti-lo no streaming, a partir dessa quarta-feira, 15 de julho. Basta acessar as plataformas Net Now, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme ou Looke.

O foco da narrativa levou Maria Augusta, a Guta,  ao início dos anos 1990, em especial ao ano de 1991, quando bancários (ou economiários, pois trabalhavam em agências da Caixa Econômica Federal), bloquearam agências para reivindicar melhores condições de trabalho e salários. Em pleno Governo Collor, a greve resultou na demissão de 110 profissionais, homens e mulheres.

O que essa greve teve de diferente das outras para merecer um filme? A generosidade dos que não perderam o emprego, mas reconheceram o sacrifício de seus líderes atuantes em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Londrina. Afinal, a categoria aceitou pagar, a cada novo mês, o salário dos 110 colegas demitidos. E o fez por mais de um ano. A pedido da organização sindical, os bancários autorizaram o desconto, em seus contracheques, de menos de meio por cento do total de seus vencimentos . E o fizeram sem saber se – e quando – os demitidos ganhariam batalha pela reintegração travada na Justiça.

Com tal atitude solidária, rara na história sindical brasileira, os demitidos receberam remuneração de sua categoria profissional e conseguiram manter suas famílias, pagar seus alugueis, sobreviver enfim. E esperar a vitória. O Governo Collor, responsável pela ordem de demissão, desmoronaria um ano e poucos meses depois e a Justiça garantiria a reintegração dos 110 economiários.

Guta Ramos reencontra muitos desses trabalhadores, nos dias de hoje. Passados quase três décadas, eles voltam ao anos de 1991 e 92, em conversas grupais e rememorativas. Uma das bancárias conta que, ao chegar em casa e contar para a mãe que fora demitida, a reação foi de espanto e desgosto. Era difícil para aquela senhora ver a jovem filha desempregada, fora dos quadros de respeitada instituição financeira. Além das conversas rememorativas de muitos dos demitidos (depois reintegrados), o filme trabalha com material de arquivo (fotos e trechos de telejornais, em especial). Em determinado momento, vemos discursos inflamados do presidente Fernando Collor de Mello, “o caçador de marajás”. O filme dá voz também à nova geração de bancários (um deles com discurso dissonante).

O documentário, de sintéticos 75 minutos, não adota tom passadista. Vai dos anos Collor aos anos Bolsonaro. O atual presidente é visto em Assembleia Geral da ONU proferindo discurso no qual garante que “o Brasil estava à beira do socialismo” e que “tal ideologia se instalara em escolas e lares”. O filme busca, ao usar tais imagens, esdtabelecer semelhanças entre o governo Collor e o atual.

Guta Ramos entende que, “Collor, com suas medidas severas de redução do Estado” assemelha-se ao atual governo, que “inaugura novo ciclo neoliberal no país”. E, portanto, tem “no enxugamento do Estado”uma de suas principais bandeiras.

Marilena Chaui, professora emérita da USP, reflete com sua participação – procedimento raro em filmes da diretora — sobre as relações verificadas no mundo do trabalho contemporâneo, baseadas cada vez mais na desvalorização e redução dos direitos sociais.

“Não Toque em meu Companheiro” nasceu de sugestão da Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal), mas nem por isso sua narrativa foi reduzida a peça de propaganda. Maria Augusta, de 55 anos, tem um nome a zelar. Ela é autora de obras reconhecidas como “Justiça”, “Juízo” e “O Processo”, este, um filme sobre o impeachment de Dilma Roussef, lançado com grande repercussão no Festival de Berlim, dois anos atrás.

Em 2014, ela recebeu, por sua obra conjunta, o Prêmio Marek Nowicki atribuído pela Helsinki Foundation of Human Rights. Seus filmes somam duas dezenas de prêmios em festivais nacionais e internacionais. “O Processo” conquistou láurea de melhor filme no festival ‘Visions du Reel’, na Suíça, que premiou também o denso “Justiça”. Este filme realiza aguda observação do “teatro” encenado em tribunais brasileiros a cada julgamento de atos de transgressão de pessoas oriundas das classes mais desfavorecidas. “Juízo” foi eleito o melhor filme no One World IFF e ganhou o Prêmio Fipresci (da Crítica Internacional) no DOK Leipzig-Alemanha.

Para realizar “Não Toque em meu Companheiro”, a diretora trabalhou com liberdade e dentro de seus princípios. Realizou um documentário a favor, sim, dos grevistas, mas também preocupado em ir além do fato histórico que lhe deu origem. Há que se registrar que seu nono longa-metragem não tem as qualidades de seus filmes anteriores, nem se aprofunda no cinema observacional que vinha praticando com empenho e criatividade. Em compensação, Guta Ramos resgatou do esquecimento momento ímpar na história dos trabalhadores brasileiros. Isto, num país cujos cineastas dedicam pouca atenção às lutas operárias e camponesas. O mesmo se dá, no tempo presente, com as novas conformações trabalhistas. Quantos filmes buscaram, nos últimos anos, entender, por exemplo, a emergência do “precariado” (trabalhadores de aplicativos, sem praticamente nenhum direito social)?

Não Toque em meu Companheiro
Brasil, 75 minutos, 2020
Direção e roteiro: Maria Augusta Ramos
Fotografia: Diogo Lajst e José Eduardo Pereira
Edição: Eva Randolph
Direção de produção e pesquisa: Zeca Ferreira
Produtora: Maria Augusta Ramos (NoFoco Filmes)
Coprodução: Fenae
Licenciado pelo Canal Brasil
Disponível a partir de 15 de julho, na Ne tNow, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke.

 

* “Seminário Na Real_Virtual – Documentário Brasileiro Contemporâneo”: Na segunda-feira, 20 de julho, palestra de Maria Augusta Ramos, após a exibição do documentário “Seca”. Depois, o seminário contará com palestras de João Moreira Salles, Cao Guimarães, Carlos Nader, Petra Costa, Walter Carvalho, Belisário Franca, Joel Pizzini, Gabriel Mascaro, Rodrigo Siqueira, Marcelo Gomes e Emílio Domingues.

Até 14 de agosto. Curadoria de Bebeto Abranches e Carlos Alberto Mattos. Com exibição de 12 documentários, sempre às 19h00, seguidos de palestras e debates com os realizadores. Inscrições a R$300,00 (todos os filmes e palestras) ou R$40,00 (por cada um dos programas).

 

FILMOGRAFIA
Maria Augusta Ramos
(Brasília-DF, 16-11-1964)

1995 – “Brasília, Um Dia em Fevereiro”
2000 – “Desi”
2004 – “Justiça”
2008 – “Juízo”
2013 – “Morro dos Prazeres”
2015 – “Seca”
2016 – “Futuro Junho”
2018 – “O Processo”
2020 – “Não Toque em meu Companheiro”

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