Gramado apresenta a “evasão de privacidade” de Sidney Magal e história homoafetiva vinda do Chile

Por Maria do Rosário Caetano

Documentaristas devem, eticamente, se perguntarem até que ponto podem invadir a privacidade de seus personagens. Quem, porém, escolhe Sidney Magal como tema – caso de Júlia Mariani, diretora do longa documental “Me Chama que Eu Vou” –, não se obriga a tal exercício. Afinal, o outrora rebolante cantor, hoje com 70 anos, é devoto praticante da “evasão de privacidade”. Com ele, não há segredos. Expõe, com simpatia e sinceridade, cada momento de sua vida.

O cantor-dançarino age como repórter de revistas de fofoca, aqueles que bisbilhotam a vida dos astros. Conta tudo. E depois aproveita as manchetes impressas, mistura de vida privada e carreira profissional, em seu favor. Adjetivos como “brega” e “cafona” o acompanham há décadas e somam-se a expressões como “cigano de araque”, “dono de um certo talento”, “ídolo fabricado pelo marketing” e “cara ridículo”.

A sexta noite da mostra competitiva do 48º Festival de Gramado – em cartaz nas telinhas do Canal Brasil e do Canal Brasil Play, até esse sábado, 26 – foi chilena e brasileira. O país andino, que ganhou um Oscar internacional com “Uma Mulher Fantástica” (protagonizado pela transexual Daniela Vega), trouxe “Los Fuertes”, história homoafetiva, protagonizada por dois jovens imersos em paisagem de rara beleza (o extermo sul do Chile, na região de Valdívia).

A representação brasileira contou, além da cinebiografia documental de Sidney Magal (a ficcional encontra-se em fase de pré-produção), com dois curtas: o paraibano “Remoinho”, de Tiago A. Neves, e o paulistano “Você Tem Olhos Tristes”, de Diogo Leite.

O próprio Sidney Magal apresentou, direto de sua casa, em Salvador, o sexto concorrente da competição brasileira. O que se viu foi um filme divertido e convencional, feito na base da camaradagem. Não há interesse em discutir os tentáculos da indústria cultural, o papel de empresários espertos, a qualidade (ou falta dela) no repertório do biografado. Ele é mostrado como um sedutor inveterado, bom marido, bom pai, boa praça até mais não poder. Agradece a Deus por tudo que conquistou (e está simbolizado em bela casa na Bahia, onde vive com a família há 22 anos), os sucessos verificados em dois momentos (final dos anos 1970, começo dos 80, e um “revival” com a lambada “Me Chama que Eu Vou”).

À medida que novos e – jovens – ídolos apareciam no mundo do showbiz, grandes hiatos se apresentavam para o filho único, que a mãe criou para ser famoso. O cantor conheceu, sim, momentos de ostracismo. Mas foi salvo pela “persona Magal” (existe o cidadão Sidney Magalhães e o personagem Sidney Magal) e passou a integrar elencos de musicais (como “Roque Santeiro”), telenovelas (“Ana Raio e Zé Trovão”) e filmes como “O Caminho das Nuvens”, de Vicente Amorim, protagonizado por Wagner Moura e Claudia Abreu. Magal, que começara cantando em bares e churrascarias, foi adaptando-se aos novos tempos. Sem perder a ternura, jamais.

A mãe de Sidney Magalhães, que teve o nome simplificado por um produtor estrangeiro, era cantora amadora e prima de Vinícius de Moraes. O jovem, alto (1m90), de rosto redondo, emoldurado por cachos angelicais, procurou o primo poeta, diplomata e bossa-novista, então estourando nas paradas com “Na Tonga da Mironga do Kabuletê”, para ver se este lhe dava uma mãozinha. E, quem sabe, uma composição para ele gravar. Vinícius foi objetivo. Avisou ao jovem primo que, com a beleza que Deus lhe dera, devia buscar outros e mais agradáveis caminhos.

Sidney Magalhães cantou e dançou na Europa (“com um grupo folclórico”, que Ronaldo Boscoli definiu como “show de travestis”), fez a rotina de bares e churrascarias, até gravar o primeiro disco. Um fracasso. Mas aí entrou em cena o compositor, cantor e produtor argentino Roberto Livi (1941-2019). O cara era um alquimista (como Paulo Coelho) e sabia transformar cobre em ouro. A carreira do cantor rebolante bombou. E ele transformou-se em símbolo sexual. As tietes urravam ao vê-lo com suas caras, bocas e trejeitos que misturavam “cigania” e o sex-appel de toureiros de olhar matador. Sem esquecer, claro, os figurinos que pareciam saídos de um show de Las Vegas.

As fãs não gostavam de ver os ídolos com pares matrimoniais. O casamento com a atriz Solange Couto (ignorado pelo filme) ficou nos bastidores. Mas, ao conhecer a adolescente baiana Magali West, uma Marta Rocha rediviva, morena de iluminadores olhos verdes, Sidney alucinou. A paixão tornou-se pública, veio o matrimônio e, depois, os três filhos (Gabriela, Nathália e Rodrigo). Aos 70 anos, ele cobre a mulher com olhares apaixonados. Como prometera à futura sogra, viveria com a esposa até o fim de seus dias. Promessa que vem cumprindo, com louvor.

O repertório de Sidney Magal é muito ruim. E ele sabe disso. Sabe, também, que não dá para rebolar como fazia aos vinte anos. Carioca convertido ao modo de viver baiano, o cantor é hoje um paizão (avô, também) bem-humorado e bem-sucedido. Soube administrar sua carreira.

O filme existe para fazê-lo brilhar. Não quer saber de nenhuma complicação. O que surge de dissonância vem do próprio Magal, que vê o corpo, outrora com 80 quilos distribuídos em quase dois metros de altura, já bem volumoso. Tenta agradar a um público mais sofisticado cantando (para a câmara do filme) clássicos da MPB e, até, a belíssima “João Valentão”, de Dorival Caymmi. O faz discretamente vestido de preto, com acompanhante ao piano. Quem já ouviu aquelas canções na voz de alguns dos maiores intérpretes desse país, segue (e seguirá) indiferente. Magal foi um invento da indústria do disco, engendrada para seduzir jovens com os hormônios a mil. O que o salva – vale repetir – é sua simpatia e capacidade de rir de si mesmo.

De leve, sem maiores desdobramentos, o filme mostra a debochada composição “Festa de Arromba II”, de Rita Lee e Paulo Coelho. Entre os versos da dupla, ouvimos “o Sidney Magal rebola mais/que o Matogrosso/cigano de araque/fabricado”. Magal nem se incomoda. Adora ser parodiado. Guarda com imenso carinho, em seus arquivos, sátiras televisivas feitas outrora por Renato Aragão e os trapalhões e, recentemente, por Marcelo Adnet.

No melhor momento do filme, sob um velho cajueiro, que faz sombra em sua piscina, ele conta que o vizinho sugeriu que cortasse a planta. Caso contrário gastaria o tempo retirando folhas da água. Ao que ele retrucou: “mas na nossa idade, o que nos resta fazer? Tomar uns drinques à beira da piscina, conversar e tirar as folhas da água”. O “cigano fajuto” sabe viver. E seduzir.

“Los Fuertes” recria, em versão longa, um curta-metragem, que Omar Zuñiga realizou, com os mesmos atores (Antonio Altamirano e Samuel González), em 2015. E que lhe rendeu o Teddy Bear (o Urso gay) no Festival de Berlim.

Um jovem santiaguenho, Lucas (Samuel González) visita sua irmã Catalínia (Marcela Salínas), no extremo sul do Chile, região de Valdívia. Conhece, então, Antonio, um contramestre de barco pesqueiro (Antonio Altamirano). Os dois se apaixonam e vivem noitadas de amor e sexo. Um integrante da comunidade reagirá com pedra atirada sobre Antonio, nascido na região. Um colega nas lides pesqueiras, homófobo, o confrontará. O jovem gay reagirá, em briga corporal, como um forte. Mesmo assim, e apesar de sua competência no trabalho, será demitido.

Antonio, que participa de encenação teatral e cívica da libertação do jugo espanhol, pratica esportes (gosta de futebol) e não se dá por vencido. Vai buscar saída profissional e no seu ramo de trabalho (a navegação pesqueira). Um fato, porém, impede que o filme seja apenas uma love story gay. Samuel ganhou bolsa para estudar em Montreal, no Canadá. Deixará o namorado em Valdívia?

No debate on-line do filme, Zuñiga, acompanhado dos dois protagonistas e do diretor de fotografia Nicolas Ibrieta, justificou a escolha da região de Los Rios, cenário dos mais fotogênicos. E falou do tom da narrativa, que foge da denúncia de truculentos atos de homofobia.

“Escolhi, embora tenha nascido e viva em Santiago” – detalhou –, “o extremo sul do Chile, por ser realmente um lugar muito bonito, que traz uma atmosfera marinha, bosques muito verdes e três belos fortes coloniais, construídos na época da Conquista espanhola. Gosto de barcos, do mar, das ondas”. Por isso, “sempre que podia, visitava a região”.

O fotógrafo Nicolas Ibieta fez questão de lembrar que não há “exploração turística da paisagem”. Tanto que “o filme recorre a muitos planos fechados nos atores e nos ambientes domésticos. Queríamos nos aproximar dos sentimentos dos personagens”.

Sobre o tom do filme, Zuñiga foi afirmativo: “quis construir uma narrativa com personagens que se amam e assumem esse amor”. Para arrematar: “já foram feitos muitos filmes sobre ataques homofóbicos. O nosso quis abrir porta mais ampla para o público conhecer histórias diferentes, de pessoas que se amam. Usamos as ondas do mar como metáfora da resiliência do povo chileno e dos dois protagonistas. Eles vivem sua paixão, sem culpas”.

O curta paulista “Você Tem Olhos Tristes” centra-se na luta profissional de um bike boy. Ou seja, um entregador de comida, que tenta ganhar a vida como “empreendedor de si mesmo”, só que numa bicicleta (ainda não tem recursos para tornar-se um motoboy).

O diretor Diogo Leite, autor de “Menino Pássaro”, selecionado anteriormente por Gramado, contou que a ideia do curta nasceu da leitura de “A Ralé Brasileira”, livro do sociólogo Jessé Souza. “Quando o filme foi realizado, as televendas ainda não haviam assumido a centralidade que assumiram com a pandemia da Covid-19”. Mas, na fase de edição, “a pandemia foi ganhando a dimensão que ganhou. E não imaginávamos que fosse tão grave”.

O curta conta com ótima participação da atriz Gilda Nomacce, na pele de uma tia da namorada do bike boy. Exalando frescor e improvisação, ela profere diálogos dos mais divertidos. Com um deles, solicita ao futuro “sobrinho” mercadoria para se virar e ganhar dinheiro. E que mercadoria seria essa? Pode ser “um prensadinho verde”, propõe.

Quem, também, faz ótima participação em “Você Tem Olhos Tristes” é o uspiano Jean-Claude Bernardet. Ele, que vem se engajando, com o entusiasmo costumeiro, em projetos de coletivos periféricos, interpreta um cliente idoso – e desrespeitoso – que se nega a pagar a conta via celular do bike boy. Exige que o rapaz vá ao restaurante buscar “uma máquina de verdade”. Interpretado pelo ator Daniel Veiga, o bike boy não apela ao vitimismo. Ao contrário, promove seu pequeno levante. E vai à luta.

O paraibano “Remoinho” é fruto do projeto Cinema Instantâneo e foi feito com imensa economia de recursos. “Uma só diária”, garantiu o diretor Tiago A. Neves. Sua protagonista, Maria, é uma moça calada, que regressa, com um filho pequeno, a lugar ermo, onde vive sua mãe (Zezita Mattos). A velha senhora pergunta pelo pai do menino. A moça segue em silêncio. Ouve cobranças de todos que a cercam. De forma lacunar e muito concentrado nos gestos e olhares de Maria, o filme se constrói sem alarde. O diretor é daqueles que acreditam que menos é mais.

Tiago A. Neves nasceu na Paraíba, mas viveu 15 anos em São Paulo. Ao regressar ao estado natal, ficou atento ao tema de seu curta – as cobranças feitas a quem parte e decide regressar. Zezita Mattos, que ano passado esteve em Gramado como integrante do elenco de “Pacarrete”, consagrado com oito Kikitos, este ano, integrou júri de filmes gaúchos e aproveitou o debate de “Remoinho” para comentar o momento cultural vivido pelo país.

“Estamos fazendo tudo para não sermos derrotados por forças obscurantistas. Vi ótimos filmes na Mostra Gaúcha e, também, nas competições de curtas e longas brasileiros. Como nova presidente da Academia Paraibana de Cinema” (ela ocupa a vaga que foi de Wills Leal), Zezita anunciou calendário com várias atividades no campo do audiovisual. “Não podemos cruzar os braços, seguiremos lutando”.

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