Gramado encerra competição com “King Kong en Asunción”
Por Maria do Rosário Caetano
A sétima e última noite da competição do Festival de Gramado, que entrega – com transmissão virtual do Canal Brasil (nesse sábado, às 21h) – os troféus Kikito aos melhores filmes brasileiros e latinos, foi marcada pelo impacto de “King Kong en Asunción”, o terceiro longa-metragem de Camilo Cavalcante. E por dois tocantes curtas: “Trincheira”, vindo de Alagoas, e “O Barco e o Rio”, do Amazonas.
O pernambucano, de alma latino-americana, “King Kong en Asunción” era um dos filmes mais esperados da competição brasileira. E o que se viu na telinha do Canal Brasil correspondeu à mais exigente das expectativas. Um filme visceral, poético, deambulante, perturbador. E com um protagonista em estado de possessão. O Velho, pistoleiro de aluguel interpretado por Andrade Júnior, cearense que viveu 60 de seus 74 anos em Brasília, é o mais forte candidato a melhor ator dessa quadragésima-oitava edição do festival gaúcho.
Se o júri escolher o Velho, o Kikito será póstumo. Andrade Júnior morreu vítima de enfarte fulminante, em maio de 2019. Portanto, há 16 meses. Não viu o filme pronto. Ator dos mais ativos do teatro e cinema brasilienses, ele nunca fora convocado a interpretar personagem tão denso e essencial a uma narrativa.
No debate on-line de “King Kong en Asunción”, Camilo Cavalcante narrou a gênese do filme. Em 2007, ele dividiu um quarto de hotel com Andrade Júnior, no Festival de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O ator, muito divertido e falante, fez um número (o do homem-gorila) para os olhos do pernambucano. “Andrade me falou de Ciudad de Leste, no Paraguai, que conhecia bem. Aquela performance ficou na minha cabeça, pois constituía imagem muito forte. Dela, nasceu um roteiro embrionário”.
O tempo passou e, toda vez que os dois se encontravam, Andrade Júnior perguntava pelo “nosso filme”. Camilo foi à cidade de Assunção, que desconhecia, pois o título do roteiro, ainda em processo, e o fio narrativo já estavam sedimentados. Seu protagonista, o homem-gorila de Andrade Júnior, viveria experiência existencial em muitos territórios da América Latina. Experiência que desembocaria na capital do Paraguai. Dez anos depois, as filmagens começaram.
“King Kong en Assunción” é um poderoso híbrido de gêneros. Começa como western crepuscular, ambientado num deserto de sal (a imensa Salina de Uyuni, na Bolívia). Ali, um homem, pistoleiro de ofício, já velho e atormentado, executa seu último trabalho: mata um homem, decerto um empresário (quem sabe um político). Nunca saberemos nada do morto.
Imagens arrebatadoras (de Camilo Soares, diretor de fotografia e professor da UFPE), parecem dialogar com a videoarte, mas sem experimentalismos estéreis. Elas são fruto de registro documental de múltiplas e desconhecidas paisagens, essenciais à construção atmosférica e geográfica desse impactante filme. Camilo Cavalcanti divide sua carreira, amorosamente, entre a ficção e o documentário.
O Velho (brasileiro), um “homem cindido”, que já não dorme (“o sono é uma ruína interior”), quer aposentar-se e partir em busca da filha que tivera (e abandonara) com Constanza, mulher paraguaia. Num bar, ele manterá intenso diálogo com um boliviano de nome Chiquitano (Juan Carlos Aduviri). O interlocutor reafirmará seus desejos: ser alguém que quer “morrer de sífilis”, trazida por sexo, muito sexo, e afogar-se em tragos, muitos tragos.
A narrativa prosseguirá como um road movie. O Velho, que parece saído de “Onde os Fracos Não Têm Vez”, filme oscarizado dos Irmãos Coen, irá “descansando suas angústias” em hotéis de segunda categoria, passando rapidamente por igrejas, procissões, bares e prostíbulos. Será ele, que 40 anos atrás fez seu primeiro serviço de pistolagem, um homem ou um bicho? Encontrará um bálsamo no seio de Constanza e da filha que desconhece?
Magníficos são os registros das andanças do Velho pela floresta boliviana, por povoados empoeirados e pelo chaco paraguaio. Até chegar, já pela metade do filme, ao grande centro urbano (Asunción, de 600 mil habitantes). Dali em diante, a narrativa se constituirá como um drama banhado em sexo, fúria, doses industriais de bebida e remorsos. Com direito a flashback ambientado num Brasil sertanejo. Ali, veremos o Velho, em sua infância, assistindo ao extermínio de sua família.
O encontro com a filha nada trará de redentor. Já o encontro com um amigo barbeiro (o paraibano Fernando Teixeira) servirá para limpar sua imagem suja, cortar seus imensos cabelos, aparar sua barba e colocar um pouco de picardia em trama tão densa. Os dois viverão loucuras, bacanais de sexo, bebedeiras monumentais.
Uma voz, a da atriz paraguaia Ana Ivanova (do elenco de “As Herdeiras”, filme premiado em Berlim), constituirá camada essencial ao filme. Em guaraní, ela trará sentidos profundos da alma do Velho, um homem que fez da morte seu ofício. E que agora vê a indesejada das gentes se aproximando. Fernando Teixeira definiu o falar intenso e perturbador da narradora como “uma voz xamânica”.
Camilo Cavalcanti revelou que, no roteiro filmado em 2017 (data importante em sequência política do filme), a narração over seria de Andrade Júnior. Ou seja, do Velho. Só que, insatisfeito com essa opção, resolveu radicalizar. Entregou o texto onisciente à própria Morte. Em guaraní. Afinal – indagou – “o que esse povo fez ao longo de sua história, senão deparar-se com a morte, com o extermínio?”.
Ana Ivanova fez testes para atuar em “King Kong en Asunción” e foi aprovada. Como as filmagens coincidiram com as de “As Herdeiras”, não pôde participar. Ficou mortificada, pois o filme seria sua primeira participação em produção brasileira. Ela, então, avisou a Camilo que “queria muito” trabalhar com ele. Que aguardava, ansiosa, qualquer convocação. Ao decidir tirar a narração do protagonista, o pernambucano procurou Ana e explicou seu desejo de tê-la como a voz do filme. Uma voz que seria a representação da Morte e estaria presente em grande parte do filme.
A atriz ficou perturbada pelo desafio. “Eu nunca fizera um personagem que fosse somente voz. Será que conseguiria atuar sem a imagem do meu corpo?”. Mesmo assim, instigada pelo desafio, ela topou. Sua Morte é visceral e – como muitos momentos da trilha sonora – mediúnica. “Xamânica”, como diz Fernando Teixeira.
O texto que coube a Ana Ivanova interpretar é de beleza convulsiva. Camilo Cavalcante procurou a escritora gaúcha Natália Borges Polesso e pediu que ela desse novas sonoridades ao que estava escrito no roteiro técnico. Ela o fez e o material foi vertido para o guaraní pela poeta paraguaia Lilian Sosa. Durante três semanas, a atriz ensaiou, sem descaso, aqueles dizeres encharcados “em filosofia e poesia shakespereanos”, que nada tinham de coloquial. Sentindo-se segura, viajou para o Recife, onde gravou, em estúdio, a voz da Morte.
Camilo fez questão, durante o debate, de registrar a essência latino-americana de “King Kong en Asunción”, um “filme que mobilizou cinco países (além do Brasil e Paraguai – Bolívia, Argentina e Colômbia)”. Atores e técnicos dessas cinco nações estão nos créditos. A trilha sonora é de Shaman Herrera, que vive e cria na Patagônia argentina. No fecho, em aberto, desse filme que deambula por paisagens das quais temos parcos conhecimentos (e muitos preconceitos), ouviremos Mercedes Sosa evocar os versos de “Volver a los 17”, um dos maiores sucesso de Violeta Parra.
Dois registros finais. Primeiro: entre os governantes que desgovernaram países de Nuestra América, o espectador verá os rostos de Fernando Collor e Michel Temer (ninguém supunha, em 2017, que o retrato de Jair Bolsonaro seria obrigatório nas paredes labirínticas do hotel de luxo que hospeda o Velho depois de recebido o soldo de último ato de pistolagem).
Segundo: o denso filme de Camilo, que deu a Andrade Júnior seu maior desempenho cinematográfico, terá preservado seu título de rara sonoridade e poder evocativo. A produtora Carol Vergolino contou que não houve, nem deve haver, embargo de detentores estadunidenses da marca King Kong. “Nos cercamos de todos os cuidados jurídicos, estudamos o assunto com assessoria de advogados e concluímos que nosso King Kong nada tem a ver com o dos filmes de Hollywood”. No que está muito certa. O King Kong de Asunción é um símio que nasceu das delirantes performances de Andrade Júnior, cresceu e transformou-se em imagens e palavras na fértil imaginação de Camilo Cavalcanti.
Os dois últimos dos 14 curtas da competição brasileira podem (e merecem) ser transformados em longas-metragens. O diretor amazonense Bernardo Ale Abinader contou, no debate on-line, que já está escrevendo a versão longa do delicado (e feminino) “O Barco e o Rio”. O diretor Paulo Silver, do alagoano “Trincheira”, poderá fazer o mesmo em parceria com seu co-roteirista, Rafhael Barbosa.
“O Barco e o Rio” se passa em águas amazônicas. Num velho barco, vivem três mulheres, Vera (Isabel Catão), sua irmã mais nova Josi e uma ajudante silenciosa. A mais velha das irmãs dedica-se, com afinco, aos serviços do barco e, evangélica, reza muito. Josi, ao contrário, aproveita seu corpo jovem e cheio de hormônios, para curtir noitadas na cidade. As ousadias da irmã acabarão, de alguma forma, acordando Vera, que buscará um mundo menos cerrado nos limites da embarcação e da onipresente Bíblia. As atrizes têm ótimos desempenhos e o filme poderá, sim, resultar em instigante longa-metragem.
“Trincheira” tem, em seu protagonista, um menino de imaginação muito fértil (Gabriel Nunes Xavier), sua força propulsora. Ele brinca num lixão. Ali, constrói objetos fascinantes. Uma caixa de descarga hidráulica vira uma mochila descolada, resíduos industriais geram brinquedos dos mais lúdicos. A destruição de seu pequeno parque de lazer por forças policiais higienistas ameaçará seus sonhos. Mas o filme, em sintonia com a vertente que mais se impõe, nesse momento, na produção brasileira (o diálogo com a ficção científica), levará a desfecho inesperado.
Tanto a equipe amazonense, quanto a alagoana testemunharam que seus estados vivem momento de grande criatividade e produção, graças a apoios estaduais e municipais (já que editais federais estão em compasso de espera). Que Abinader e Silver se articulem, logo, para viabilizar as versões longas de seus promissores curtas. Em especial, o alagoano. Afinal, será um grande desperdício se não puder contar com o carismático Gabriel Nunes Xavier. Como menino cresce como fermento, de um ano para o outro, poderá ser obrigado a substitui-lo.