Mostra SP registra crescimento de parceria entre cinema brasileiro e hispano-americano

Por Maria do Rosário Caetano

Houve um tempo em que o cinema brasileiro mirava os EUA. Engendrava parcerias com a maior potência cinematográfica do mundo em busca de um quinhão, por mais minúsculo que fosse.

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que prossegue até quarta-feira, 4 de novembro, no streaming e em dois cinemas drive-in, tem fornecido fortes indícios de que, finalmente, produtores e cineastas brasileiros parecem interessados em nossos vizinhos de fala hispânica. Vale registrar que, a cada novo ano, o maior festival de cinema do país e um dos mais antigos, abre mais espaço para o cinema de nossos hermanos. E busca viabilizar novas parcerias.

Nesse ano, o da quadragésima-quarta edição da Mostra, apesar da pandemia da Covid-19, Renata Almeida e equipe escalaram 15 filmes de Nuestra América para banquete composto com 198 títulos. E deu a um filme mexicano – o atrevido, distópico, brutalista e visceral “Nova Ordem”, de Michel Franco – a honra de ser o convidado inaugural.

“Nova Ordem” vem causando muita polêmica. Há quem o acuse de privilegiar os “whitexican”, ou seja, a elite branca que ocupa as melhores posições na escala social mexicana. Em detrimento da população de origem indígena, majoritária no país e – na distopia de Michel Franco – “submetida a papéis subalternos e humilhantes”. Voltaremos, no final, a essa discussão.

O interesse por parcerias artísticas com nossos vizinhos vem-se fazendo notar graças a projetos de fomento, como o Ibermedia e, em menor escala, os Prêmios Platino. Um filme de alma 100% latino-americana acaba de triunfar em Gramado – “King-Kong em Asunción”, de Camilo Cavalcante. O potente longa-metragem pernambucano foi rodado na Bolívia, Paraguai e Brasil, com atores e técnicos dos três países. Uma verdadeira UnaSul.

No Festival É Tudo Verdade, dedicado ao cinema documentário, outro filme – “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles – de alma essencialmente latino-americana causou sensação máxima, embora tenha perdido o (merecido) prêmio principal. Teve que contentar-se com menção honrosa. O documentarista brasileiro realizou seu filme mais maduro e criativo nas selvas amazônicas (Colômbia e Brasil, em especial) e enriqueceu sua narrativa com imagens da África (Congo) e Europa (Irlanda). Um filme de três mundos.

Realizadores jovens, como Camilo Cavalcante e Beatriz Seigner, conseguiram realizar filmes inovadores e instigantes como “King-Kong em Asunción” e “Los Silencios” (2018). Veteranos como Silvio Tendler (“Santiago de las Américas – O Olho do Terceiro Mundo”) e Lúcia Murat (“Ana. Sem Título”) prosseguem em seus diálogos com a América Hispânica. O documentário de Tendler, novo curador do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, passou pelo É Tudo Verdade em caráter hors concours. A “Ana” sem sobrenome é uma das peças de resistência da safra de expressão luso-espanhola da Mostra SP 44.

Lúcia Murat iniciou sua carreira no cinema já envolvida com a América Hispânica. Em 1984, com o então companheiro Paulo Adário, ela dirigiu vibrante documentário de média-metragem chamado “O Pequeno Exército Louco”, sobre o triunfo da Revolução Sandinista.

Com “Ana. Sem Título”, a cineasta e ex-presa política retoma sua imensa paixão por nossos vizinhos. No elenco e equipe técnica desse híbrido de documentário e ficção, encontra-se, em destaque, a atriz e slammer Roberta Estrela D’Alva, que faz a black Ana, artista plástica sem sobrenome. Destaque, também, merece a atriz Stella Rabelo, que perambula por Argentina, Chile, Cuba e México com Lúcia Murat (na papel dela mesma) e da jovem técnica de som Andressa Clain Neves. As três (em especial Stella) desempenham, em “Ana”, papel similar ao de Paulo Cezar Pereiro, o “Tião Brasil Grande”, em “Iracema, uma Transa Amazônica”.

Lúcia Murat, ao buscar o paradeiro da afro-brasileira Ana, caminhante por trilhas latino-americanas, encontra-se com nosso envolvente cancioneiro. Começa com Bola de Nieve e a magnífica “Vete de Mí”, e prossegue com Omara Portuondo, com “Nosotros”, Victor Jara e “Te Recuerdo Amanda”, Victoria Santa Cruz com “Me Gritaron Negra”, e Pepe Jara, com “Sabor a Mí”. Para somarem-se à trilha sonora (e composições modernas) de Lívio Tragtenberg.

A cineasta encontra-se também em seu décimo-segundo longa-metragem, com a História, o Cinema e a Literatura do continente. Imagens de arquivo evocarão a morte trágica da uruguaio-brasileira Soledad Barret, o Massacre de Tlatelolco, no México, o bombardeio do Palácio de la Moneda, quando da deposição (que levou à morte) de Salvador Allende, o cinema feminista de Maria Luiza Bemberg, na Argentina, as fotografias de Kati Horna, os cativos do Estádio Nacional do Chile, transformado em cárcere. Sem esquecer os manifestos do Coletivo Sudamerica, ativo em uma Santiago que buscava formas de romper a barbárie do golpe militar chileno. Mas o filme não se restringe ao passado, já que Ana, estrela d’alva brasileira, razão de ser do filme, emitirá o canto das slammers black de nossas periferias urbanas.

Algumas mulheres, de cabelos grisalhos, arrancarão, com seus depoimentos ao filme, fundas emoções em “Ana. Sem Título”. Vale destacar duas delas para representar o conjunto – a escritora mexicana Elena Poniatowski, de 88 anos (confesso nunca tê-la visto em um filme brasileiro), e Lita Stanic, produtor argentina dos longas de La Bemberg e de Lucrécia Martel.

Outro longa-metragem que, nessa edição da Mostra SP, coloca a América Latina e sua tragédia política em diálogo é “Aranha”, de Andrés Wood, coprodução Chile-Brasil, com a paulistana Paula Cosenza na retaguarda e Caio Blat no elenco.

O filme evoca, com seu enigmático título, o símbolo de movimento de extrema-direita que atuou, incansável, para derrubar Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. Três dias depois de conseguir seu intento, a aranha recolheu os fios de sua teia.

No centro da narrativa, está Inés, uma empresária poderosa, interpretada pela argentina Mercedes Morán (de filmes de Lucrécia Martel e do saboroso “Sueño Florianópolis”). Num belo dia, ela descobre que um colega de juventude (e grande amor de sua vida) fizera justiça com as próprias mãos e matara jovem que cometera furto em rua santiaguenha.

Preso, o homem de cabelos grisalhos se revelará um ex-militante do grupo da Aranha (Pátria y Libertad). O tempo passou e suas convicções da juventude amalgamaram-se ainda mais em sua alma política. Ele quer o Chile para os chilenos, a população armada, o direito de matar assaltantes nas ruas e de expulsar imigrantes negros, que insistem em viver nas cidades de seu país andino.

“Aranha” vai alternar a juventude de três jovens militantes de direita (Inés, futura empresária, seu marido Justo, filho da elite chilena, e Gerardo, vindo de classe baixa, mas direitista ardoroso). Mercedes Morán brilhará no tempo presente (2018). Uma jovem atriz (María Valverde) a representará nos anos Allende, a partir de 1971, quando ela fora eleita Miss História e Geografia. Esposa de Justo (Felipe Armas), Inés viverá tórrido romance com Gerardo (Pedro Fontaine, na juventude). E é em nome desse amor que ela tentará agir, de forma a obter atenuante de pena para ele, quando o descobrir encarcerado por justiçamento com as próprias mãos.

Andrés Wood nunca havia dedicado um filme à tentativa de compreender/analisar a (extrema) direita chilena. Seus dois filmes mais famosos – “Machuca” e “Violeta Subiu aos Céus” – tinham a gente morena do Chile como protagonista. No primeiro, ele fugiu do maniqueísmo e abriu espaço para os opositores de Allende. Mas seu olhar era solidário com Pedro Machuca, o menino que estudava em escola de elite graças à caridade alheia. A cinebiografia de Violeta Parra foi dedicada por inteiro a uma cantora das dores do povo chileno, mulher amargurada por complexas paixões que a levaram ao suicídio.

Pois chegou a vez, em tempo de renascimento da extrema-direita – os 80% de chilenos que votaram por uma nova Constituição são alvissareiro sintoma de mudança? –, de Andrés Wood mergulhar sua criação em narrativa cujos três principais protagonistas são assumidamente de direita. E em estágio de fiel matrimônio com o racismo, o armamentismo, o justiçamento e o recurso ao golpe de Estado.

Entre os longas hispano-americanos da Mostra SP, há que se destacar, além do poderoso “Nova Ordem”, dois pequenos grandes filmes: o boliviano “O Nome das Flores”, dirigido pelo iraniano (radicado no Canadá) Bahman Tavoosi, e o panamenho “Panquiaco”, de Ana Elena Tejera. E recomendar atenção para “Ouvindo-se Uivos”, do mexicano Júlio Hernández Cordón. Dono de narrativas densas, sintéticas e marcadas pela violência contemporânea do mundo (e do México), o realizador já nos incomodou (no bom sentido da palavra) com “Te Prometo Anarquia” e “Compra-me um Revólver”.

“O Nome das Flores” é tributário do cinema iraniano, em especial da vertente aberta por Abbas Kiarostami. Bahman Tavoosi constrói narrativa de grande força plástica e imensa economia de meios. Saber que se trata de mais um filme sobre a trágica experiência boliviana de Che Guevara não ajuda muito. Afinal, o realizador está mais interessado na gente boliviana, em seus falares, anseios e procederes. A política sai totalmente do campo retórico e imprime-se no corpo e expressão dos poucos personagens do filme. Trama rarefeita, paisagens de beleza cósmica, um filme fascinante.

O panamenho “Panquiaco” é documentário ensaístico, de beleza sensorial e cativante. Seu protagonista, Cebaldo (Cebaldo de León Smith), um trabalhador braçal de origem indígena, labuta no mar português. A saudade da terra natal o assombra. Em sua solidão de homem desgarrado, ele busca sua ancestralidade. Ela está em uma aldeia centro-americana, Guna Yala. Conseguirá ele, ao regressar à sua cosmogonia, encontrar-se? O filme se propõe, com delicadeza e sensibilidade, a refletir sobre os vínculos de um homem com sua origem, sua terra e seus mitos.

Para arrematar, voltemos a “Nova Ordem”. O brutalismo faz parte do cinema (e da vida) mexicano contemporâneo. Quem viu “Amores Perros” (Iñarritu, 2000) sabe disso. Acusar Michel Franco – dos ótimos “Depois de Lúcia” e “As Filhas de Abril”, além de produtor do venezuelano “De Longe Te Vejo”, de Lorenzo Vigas, vencedor de Veneza 2015 –, é adotar explícita má vontade. O distópico “Nova Ordem” compõe-se com personagens matizados.

A festa de casamento da protagonista, moça rica e branquíssima como jovens anglo-saxãs, que abre o filme, não endeusa a burguesia mexicana. Os jovens milionários são autocentrados, empresários e políticos chegam para as bodas com envelopes recheados de dinheiro vivo e de origem duvidosa (há coisa mais grosseira que levar cédulas para os noivos?). Os convidados são arrogantes e insensíveis à dor alheia.

A noiva, porém, se condói com o sofrimento de uma senhora mestiça, necessitada de cirurgia de urgência no momento em que a rede hospitalar entra em colapso (tanto são os feridos em rebelião popular). A jovem comerá o pão que o diabo amassou no correr da barbárie desatada. Mas não só ela. O clima de fim de mundo atingirá outros personagens, mestiços ou brancos. E, fato que dá complexidade ao filme: dois serviçais da mansão, de pele morena (herança indígena, portanto) serão quase “heróis” dessa trama adrenalinada. Trata-se de mãe e filho. Ela, uma espécie de governanta da mansão milionária e ele, um chofer-amigo da noiva.

É só prestar atenção na sequência final para concluir que “Nova Ordem” fez por merecer o Grande Prêmio do Júri – perdeu para “Nomadland”, dos EUA –, no último Festival de Veneza, e a consagração que lhe foi dada pelo Júri Jovem, responsável pelo Leãozinho de Ouro. Que chegue pois e com bom lançamento aos cinemas brasileiros.

SELEÇÃO LATINO-AMERICANA

. “Aranha”, de Andrés Wood (Chile, Brasil, fic, 105′)
. “Ana. Sem Título”, de Lúcia Murat (Brasil-Argentina, fic-doc, 110′)
. “O Nome das Flores”, de Bahman Tavoosi (Bolívia, Canadá, 79′)
. “Chico Também Gostaria de um Submarino”, de Alex Piperno (Uruguai, Brasil, fic, 110′)
. “Um Crime Comum”, de Francisco Márquez (Arg, Brasil, Suíça, fic, 96′)
. “Ouvindo-se Uivos”, de Julio Hernandez Cordón (Mex, fic, 72′)
. “Nova Ordem”, de Michel Franco (México, França, fic, 88′)
. “Panquiaco”, Ana Elena Tejera (Panamá, doc-fic, 85′)
. “La Francisca, uma Juventude Chilena”, de Rodrigo Litorriaga (Chile, França, Bélgica, fic, 80′)
. “Labirinto Yo’eme”, de Sergi Pedro Ros (México-Espanha, doc, 87′)
. “Mamãe, Mamãe, Mamãe”, de Sol Berruezo Pichon-Rivière (Argentina, fic, 70´)
. “Nem Herói, Nem Traidor”, de Nicolas Savignone (Argentina, fic, 74′)
. “Piedra Sola”, Alejandro Telémaco Tarraf (Arg, Mex, Catar, Inglaterra, doc, 82)
. “Sanguinetti”, de Christian Díaz Pardo (Mex, Chile, fic, 85′)

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