Mostra SP premia filme nigeriano e presta tributo à Cinemateca Brasileira
Por Maria do Rosário Caetano
A cerimônia de entrega dos prêmios Bandeira Paulista, atribuídos pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, transformou-se em noite de consagração do cinema negro. Não do filme de gênero “noir”, mas sim de narrativas criadas por diretores black e protagonizadas por personagens de pele preta.
São negros, africanos e nigerianos os grandes vencedores: os irmão Esri (Arie & Chuko). Eles tiveram seu longa de estreia – “Eyimofe – Esse É meu Desejo” – eleito, por unanimidade, como o melhor filme da Mostra, pelo júri oficial, formado com a montadora Cristina Amaral, a produtora Sara Silveira e o cineasta Felipe Hirsch.
O melhor longa documental escolhido pelo júri oficial, também por unanimidade, foi “17 Quadras”, de Davy Rothbart. Trata-se da saga da família Sanford, de negros norte-americanos, que vive (entre o crime e a luta pela sobrevivência), em Washington, a 17 quadras do Capitólio.
O júri destacou, também, o trabalho da cineasta afro-brasileira Joyce Prado, que estreou no longa-metragem com sólido documentário sobre o escravo Chico Rey, trabalhador de minas na Ouro Preto colonial. O filme, “Chico Rey Entre Nós”, porém, nada tem de passadista.
A jovem diretora busca no imaginário, que circunda o escravo-rei congolês, um símbolo da luta contra a escravidão. E o faz ouvindo dezenas de testemunhos de gente preta que vive e trabalha na Ouro Preto contemporânea. Constrói matizada denúncia sobre a persistência do racismo estrutural e reafirma a necessidade de se lutar pela posse da terra, por moradia, por direitos igualitários. Junto com “#eagoraoque”, de Bernardet e Rewald, “Chico Rei Entre Nós” é o mais politizado dos 35 filmes brasileiros exibidos pela Mostra.
O triunfo dos Irmãos Esiri, nascidos em Warri, no mais populoso país da África (a Nigéria se aproxima dos 200 milhões de habitantes), é dos mais merecidos. O júri, que analisou 15 filmes de diretores de até dois longas-metragens, encantou-se com história complexa, protagonizada por dois fascinantes personagens, trabalhadores e habitantes ambos da imensa Lagos – o eletricista Mofe (Jude Akuwudike) e a cabeleireira Rosa (Temi Ami-Williams). Ele sonha imigrar para a Espanha, ela, para a Itália. Problemas familiares atravancarão os desejos dos dois nigerianos.
Os Irmãos Esiri, de 35 anos, estudaram Cinema em universidades dos EUA. Arie, na renomada Columbia University, Chuko, na NYU (será que foi aluno de Spike Lee?). Aprenderam a construir história sutil, personagens complexos, tramas bem urdidas. Sedimentados no cotidiano de gente sonhadora, que busca o dinheiro a todo custo, seja para enterrar parentes, para o tratamento médico de uma irmã ou para comprar um passaporte, a dupla soma duas histórias à moda neo-realista, com singela delicadeza.
A Nigéria, maior potência do cinema africano (é reconhecida como “Nollywood”, por seus filmes de baixíssimo orçamento), deixa de lado as tramas mirabolantes para nos mostrar um filme de grandes valores, que vai se revelando aos poucos. Com muitas cores, mas sem nenhum exotismo ou excesso. Uma trama, não é exagero dizer, quase minimalista.
Além de “Chico Rey Entre Nós”, mais três filmes brasileiros se destacaram na cerimônia de premiação da 44ª Mostra: o ficcional “Valentina”, do mineiro Cássio Pereira dos Santos, e os documentários “Glauber, Claro”, de César Meneghetti, brasileiro educado no Centro Experimental de Cinematografia, em Roma, e “Êxtase”, da paulistana Moara Passoni.
“Valentina” é o longa de estreia de Cássio, autor de um belo curta sobre adolescente mineira, portadora de síndrome de Down, que sonhava conhecer o mar (“Marina Não Vai à Praia”). Mais uma vez, o cineasta tem uma personagem feminina no centro de sua narrativa. Agora, ela é uma adolescente trans, nascida Raul, que quer ser identificada pela professora, na hora da chamada, por seu nome social, Valentina. Interpretada por Thiessa Woibackk, também transexual, a personagem enfrenta muitas dificuldades, apesar de contar com o apoio sincero da mãe (Guta Stresser) e de dois amigos, um jovem gay, Júlio (Ronaldo Bonafro), e uma adolescente grávida, Amanda (Letícia Franco). Conta até com o apoio do pai (Rômulo Braga), um pouco omisso, mas quando dá as caras, trata a filha com carinho.
Só que de cidade em cidade (a trama centra-se no espaço físico de Estrela do Sul-MG), ela terá que enfrentar a homofobia. Em especial, de jovem dono de açougue, que não quer saber de gente como ela metida em sala de aula de colégio “respeitável e familiar” (mesmo que a lei garanta a Valentina desfrutar de tal direito e do uso de seu nome social).
Thiessa Woibackk é uma boa promessa como atriz, o roteiro (de Cássio e Camila Machado) é afirmativo, mas nunca apela para o facilitário. Na hora de receber os dois prêmios pelo filme, a atriz empolgou-se tanto, que tirou a máscara sanitária. Renata Almeida, diretora da Mostra, pediu que a recolocasse. Thiessa, então, fez veemente defesa da construção de espaços para corpos trans na sociedade e no audiovisual brasileiro.
“Glauber, Claro”, premiado pela Crítica, é um belo documentário. Na aparência, trata-se de making of póstumo de “Claro”, penúltimo longa-metragem de Glauber Rocha (1939-1981), realizado em Roma com elenco encabeçado pela francesa Juliet Berto (de “A Chinesa”, de Godard). Só que Cesar Meneghetti, nesse filme produzido por Renato Ciasca e Beto Brant, conseguiu ir além e produzir o retrato de um tempo. Um tempo em que, na Europa, Itália em especial, cinema e política constituíam algo orgânico, inseparável.
No belo documentário, graças a testemunhos como o do técnico de som de “Claro”, o italiano David Magara, ficamos sabendo que – enquanto ele captava, pelas ruas de Roma, os sons do experimento glauberiano – um tupamaro uruguaio dormia em sua cama. Dez dias depois de regressar ao país latino-americano, o guerrilheiro estava morto. A política era matéria constitutiva do cotidiano daquela geração que sonhou transformar o mundo. Fracassou, mas sonhou.
O documentário “Êxtase”, eleito melhor filme de jovem realizador pelo Júri Abraccine, é um filme experimental e raro. Sua diretora, a jovem Moara Passoni, é filha da ex-freira e ex-deputada petista Irma Passoni. Ao receber o prêmio, Moara contou ter levado quase dez anos para realizar tal narrativa. E que o maior desafio foi encontrar “uma linguagem para o filme”. Encontrou o que procurava, a muito custo, e agradeceu a “todos que deram corpos, almas e estômagos” para que ela chegasse ao “Êxtase”.
Na verdade, o longa de estreia de Moara, produzido por Petra Costa, é um híbrido. Tem algo a ver com “Elena”, da própria Petra. Sensorial, corporal, íntimo. Num breve momento, pensamos que a história de Irma Passoni, a mãe da cineasta, militante da esquerda brasileira e deputada por três mandatos, ganhará relevo. Mas não. O que está em cena é a anorexia. Dos 11 aos 18 anos, Moara privou o corpo de alimentos e submeteu-o a “rotina baseada no cálculo, na repetição e no ritual”. Clara, a protagonista do filme, soma de vivências da diretora e de outras jovens anoréxicas, é bailarina e chega, aos 15 anos, a pesar 29 quilos. Outro ingrediente constitutivo do filme, que seu próprio nome revela, é a religiosidade.
O júri Abraccine, formado com Ella Bittencourt, Juliana Costa e Francisco Carbone, destacou, ao premiar “Êxtase”, “a inventividade com que equilibra o corpo fílmico e físico, trazendo novas texturas para tema raro no cinema brasileiro e ampliando as possibilidades do documentário”.
A Crítica escolheu, como melhor filme internacional, o lusitano “Mosquito”, de João Nuno Pinto, “pela maneira pulsante e criativa como retrata um período histórico, ao borrar as barreiras entre o real e o imaginário, construindo uma obra antibelicista ao mesmo tempo em que critica o papel colonizador de seu país”. Mais um filme ambientado na África (Moçambique, 1917), onde (e quando) um soldado de 17 anos, sem pelotão e sem batalhas por lutar, vaga em clima de delírio provocado pela malária. Um belo momento do cinema português contemporâneo. No discurso de agradecimento, Nuno Pinto, acompanhando da mulher (brasileira?) e das filhas pequenas, mostrou imensa alegria pelo reconhecimento da Mostra.
O poderoso cinema iraniano foi reconhecido pelos cinéfilos que frequentam a Mostra paulistana (esse ano, em caráter excepcional, on-line). O vencedor – “Não Há Mal Algum”, de Mohammad Rasoulof – chegou a São Paulo com o Urso de Ouro, de Berlim, na bagagem. Os ingressos esgotaram-se logo. E as notas (cotações) foram consagradoras.
Ao receber o prêmio, via digital, o produtor Kaveh Farnam lamentou que “Não Há Mal Algum” continue sendo ignorado como uma produção iraniana. Por tratar da pena de morte, prática comum no Irã, o filme foi proscrito, assim como seu diretor, impedido de ir ao festival germânico receber seu Urso de Ouro. “A mídia de nosso país não nos inclui entre os filmes iranianos”, registrou Farnam.
Uma pena, pois trata-se de obra de imensa qualidade, capaz de nos envolver (e surpreender) em cada um de 152 minutos. “Não Há Mal Algum” faz da tragédia humanitária, que é a pena de morte, apenas pano de fundo. O que vemos, nos quatro episódios que o compõem de maneira orgânica, são histórias de gente comum. Jovens e adultos, vistos em quarteis ou casas com gerânios na varanda, transitando por avenidas ou estradas poeirentas, amando ou enfrentando grandes dilemas morais (como o de executar a pena capital).
“Welcome, Chechnya”, de David France, eleito o melhor documentário pelo júri popular, trata de questão revelante – a perseguição a gays e lésbicas no país asiático. Um grupo de apoiadores, estruturado no Ocidente, ajuda a retirá-los de região tão homofóbica e autoritária. O que mais impressiona, no filme, é saber que efeitos especiais foram usados para preservar a identidade dos refugiados homoafetivos chechenos. Jovens ocidentais emprestaram, digitalmente, seus rostos, aos jovens retirados, clandestinamente, de ambiente tão tóxico.
A cerimônia de premiação, comandada por Renata Almeida e Serginho Goisman, terminou com entrega de prêmios especiais – o Leon Cakoff, o Humanidade e o Fiaf. A emoção foi imensa. Primeiro, Sara Silveira (Prêmio Leon Cakoff) exaltou a força feminina no cinema brasileiro e clamou pela volta de mecanismos de fomento e pelo funcionamento integral da Ancine (Agência Nacional de Cinema), semi-paralisada. Depois, Walter Salles recebeu o Prêmio Fiaf (Federação Internacional de Arquivos de Filmes), por seus imensos serviços prestados à preservação da memória audiovisual brasileira (incluindo o Arquivo Mário Peixoto, responsável pelo resgate de “Limite”). O próprio Walter entregou o Prêmio Humanidade a um coletivo de treze funcionários da Cinemateca Brasileira, insituição que vive momento de transe. Há mais de 300 dias, arquivos fílmicos acumulados ao longo de um século correm riscos, sob a incúria do Governo Bolsonaro, hostil ao setor cultural.
Com uma imensa faixa em defesa da Cinemateca Brasileira, dois funcionários falaram pelo grupo. As imagens estão nos arquivos digitais da Mostra e devem ser vistas por todos aqueles que se preocupam com os destinos de nossas imagens cinematográficas e televisivas.
A Mostra prossegue até domingo, oito de novembro, em repescagem on-line, com 130 dos 198 filmes programados. Alguns, caso de “Não Há Mal Algum”, não estão mais disponíveis.
Confira os premiados:
. “Eyimofe (Esse É meu Desejo”), de Arie e Chuko Esiri (Nigéria) – melhor longa ficcional pelo Júri Oficial
. “17 Quadras”, de Davy Rothbart – melhor documentário pelo Júri Oficial
. “Chico Rei Entre Nós”, de Joyce Prado (São Paulo) – Menção honrosa do Júri Oficial, melhor documentário brasileiro pelo júri popular
. “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos (MG-DF) – Melhor ficção brasileira pelo júri popular, menção honrosa do Júri Oficial para a atriz Thiessa Woibackk
. “Glauber, Claro”, de Cesar Meneghetti (Brasil-Itália) – Prêmio da Crítica de melhor filme brasileiro
. “Mosquito”, de João Nuno Pinto (Portugal) – Prêmio da Crítica de melhor filme internacional
. “Êxtase”, de Moara Passoni (Brasil) – Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) para filme de jovens realizadores
. “Não Há Mal Algum”, de Mohammad Rasoulof (Irã) – Prêmio do júri popular de melhor ficção
. “Welcome, Chechnya”, de David France (EUA) – melhor documentário pelo júri popular
. “Neuros” – projeto de Guilherme Coelho – Prêmio Incubadora do Projeto Paradiso do Instituto Olga Rabinovich
. Prêmio Leon Cakoff – para a produtora gaúcho-paulista Sara Silveira
. Prêmio Humanidade – para o Coletivo de Funcionários da Cinemateca Brasileira
. Prêmio Humanidade – para o documentarista norte-americano Frederick Wiseman
. Prêmio Fiaf (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) – para Walter Salles, por seu trabalho na preservação materiais audiovisuais