Pacarrete

Por Maria do Rosário Caetano

Quinze meses depois de iniciar, no Festival de Gramado, surpreendente carreira, coroada com dezenas de prêmios e consagração do público, “Pacarrete”, longa de estreia do cearense Allan Deberton, chega aos cinemas. A estreia se dará nesta quinta-feira, 26 de novembro.

Conseguirá o filme, que recebeu oito troféus Kikito, venceu festivais em Bogotá, Vitória e Florianópolis, sair-se bem nas bilheterias? Em alguma sala de cinema, sujeita aos rigores sanitários impostos pela pandemia, espectadores se levantarão para aplaudir a atriz Marcélia Cartaxo, como fizeram nos 40 festivais de que o filme participou? Haverá empatia com Pacarrete, a bailarina ranzinza, educada nos rigores do ballet francês e capaz de enfrentar moinhos para homenagear sua cidade natal (Russas, interior do Ceará), no dia em que esta se tornava bicentenária?

Todos estamos cansados de saber: festivais, com seu público cinéfilo e festivo, costumam estabelecer relações calorosas com os filmes e artistas, relações que nem sempre se repetem no circuito comercial. Assistir ao filme junto com Marcélia “Pacarrete” Cartaxo e poder abraçá-la, no final, constitui circunstância especial. Já assistir ao longa-metragem em sala de cinema (e ainda por cima semi-vazia) é um desafio bem diferente. E há um agravante: os cinemas andam mobilizando menos de 10% da lotação permitida pelos protocolos sanitários. O público, com medo da Covid-19, prefere ficar em casa, assistindo a filmes e séries pelo streaming.

Mesmo assim, a Revista de CINEMA ouviu dois experientes profissionais do cinema brasileiro, acostumados a testar os humores do público há várias décadas – a produtora Mariza Leão e o cineasta Paulo Sérgio Almeida, editor do Boletim Filme B, a mais importante publicação de acompanhamento dos números de nosso mercado cinematográfico.

Almeida assistiu ao filme semana passada e deu seu testemunho: “Gostei muito de ‘Pacarrete’. Trata-se de um trabalho delicado e de muita personalidade. Ri com a personagem vivida genialmente por Marcélia Cartaxo, como também me emocionei com sua história dramática”.

“Assim como aconteceu comigo” – arrisca o editor do Filme B –, “pode acontecer com os espectadores que estão sendo encantados pelo trailer. Acredito que o filme terá um forte público feminino, pelo seu lado poético”.

Mariza Leão, que soma sucessos como “Meu Nome Não É Johnny”, a série blockbuster “De Pernas Pro Ar” (1, 2 e 3), estrelada por Ingrid Guimarães, além de filmes da filha Júlia Rezende (“Meu Passado me Condena” 1 e 2), conheceu “Pacarrete” em Gramado, em agosto do ano passado. Ela integrou o júri que atribuiu oito troféus Kikito ao longa cearense.

“Pacarrete” – avalia Mariza, com entusiasmo – “é um dos mais belos e divertidos filmes que o cinema brasileiro já produziu. Allan Deberton criou uma malcriada inusitada: uma mal-humorada sem limites”. Para, em seguida, externar o que espera para o filme em sua estreia comercial: “Pacarrete poderá ser amado e admirado por qualquer público! Não é um filme de nicho, porque sabe mesclar poesia e humor de forma exemplar”.

E, afinal, que filme é esse que participou de 40 festivais brasileiros e internacionais e ganhou 37 prêmios?

“Pacarrete” é um mix de comédia, melodrama e musical, com pitadas almodovarianas (e cores fortes, claro!), temperadas com altas doses de cinefilia. Seu diretor, nascido na interiorana Russas, em 22 de junho de 1982, cresceu frente à TV, devorando filmes em sessões da tarde e nas madrugadas, obras de consumo fácil e clássicos do porte de “Crepúsculo dos Deuses” (Billy Wilder, 1950). Nada mais natural, portanto, que, ao escrever o roteiro de seu primeiro longa (com vários parceiros), Deberton prestasse tributo ao filme protagonizado por Glória Swanson. E, também, a outras de suas paixões cinéfilas. Além de Almodóvar, “Pacarrete” homenageia os musicais de Fred Astaire (em abertura sensacional, que exigiu esforços excepcionais de Marcélia Cartaxo), ao francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (Jean-Pierre Jeunet, 2002) etc, etc.

Registre-se que o filme começa coloridíssimo e vai ganhando cores mais sombrias, pois a solidão de Pacarrete vai aumentando. Mas o filme nunca resulta em baixo-astral. Sua protagonista não é chorona. É, isto sim, muito da atrevida. Como bem a definiu Mariza Leão, ela é uma “malcriada inusitada”, abusada.

Outro “trunfo” do filme cearense, além do magistral desempenho de Marcélia Cartaxo, é sua poderosa, eclética e fascinante trilha sonora, que vai de Charles Trenet (“Douce France”) a – sim! – Tina Turner (“We Don’t Need Another Hero”), passando por Román Perez-Freire (“Ay, Ay, Ay”, com Orquestra de Paul Muriat), John Gummoe (“Ritmo da Chuva”, em francês, com Sylvie Vartan), Belchior (“Coração Selvagem”) e, claro, composições eruditas de Tchaikovsky e Saint-Saëns. Afinal, Pacarrete é uma ‘danseuse’ clássica, que ama as grandes composições que guiaram os passos das maiores bailarinas e bailarinos do mundo.

Com recorrentes e saborosas pitadas de humor, Deberton recria a história de personagem real, Maria Araújo Lima (1912-2004), apelidada de Pacarrete (corruptela de “pâquerette”, uma pequena margarida, em francês). A cearense, nascida em Russas, estudou ballet em Fortaleza, tornou-se bailarina clássica e professora de dança. O tempo passou e, envelhecida, regressou à sua cidade natal, para cuidar da irmã Chiquinha (Zezita Matos, no filme), presa a uma cadeira de rodas. Para ajudá-la, a ex-bailarina conta com a empregada Maria (Soia Lira), que cuida de todas as tarefas domésticas. As três mulheres, todas já sexagenárias, se ajudam, mas Pacarrete tem brigas frequentes com a doméstica. A “bailarina louca” é sonhadora, a empregada é realista.

Como Russas vai comemorar seus 200 anos de fundação, a velha Pacarrete, fonte do escárnio da cidade, principalmente da criançada, quer apresentar um número de balé clássico na noite máxima das festividades. A secretária de Cultura da Prefeitura (interpretada por Samya de Lavor), porém, tem outros planos e repertórios (shows com grupos de forró de plástico e duplas sertanejas). Para a titular da Cultura, os munícipes não querem saber de nenhum “Lago dos Cisnes”, menos ainda de uma bailarina “louca” e sexagenária.

Só um morador de Russas, dono de um bar, interpretado pelo baiano João Miguel (de “Cinema, Aspirinas e Urubus”), compreende os sonhos da “louca” e a trata com carinho e generosidade. As cenas em que os dois contracenam são ternas e envolventes. Outro elemento de ternura presente no filme tem a ver com o cachorro adotado por Pacarrete e batizado de He-Man. Ela dedicará ao animal, o carinho que daria ao filho que não gerou.

Ingredientes para sair do “nicho”, como bem lembrou Mariza Leão, “Pacarrete” tem. Resta saber se não sucumbirá ao catastrófico vazio que tomou conta dos cinemas nesse tempo de pandemia.

 

Pacarrete
Ceará, 97 minutos, 2020
Direção: Allan Deberton
Elenco: Marcélia Cartaxo, Zezita Mattos, Soia Lira, João Miguel, Samya de Lavor, Débora Ingrid, Edneia Tutti e Roger Rogério
Fotografia: Beto Martins
Direção de arte: Rodrigo Frota
Distribuição: Vitrine Filmes

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