Linduarte Noronha é o único autor do roteiro de “Aruanda”?
Por Maria do Rosário Caetano
Linduarte Noronha é o único autor do roteiro de “Aruanda”, filme reconhecido por Glauber Rocha como um dos momentos seminais do Cinema Novo? Ou teve dois conterrâneos – Vladimir Carvalho e João Ramiro Mello – como parceiros?
O documentário paraibano, realizado há 60 anos, desenvolve-se em dois tempos históricos, separados por poderosa elipse temporal?
No momento em que a Netflix exibe “Mank” (David Fincher, 2020), longa-metragem cotadíssimo para o Oscar e capaz de reavivar a polêmica em torno da autoria do script de um dos maiores filmes de todos os tempos – “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles – vale indagar quem escreveu, realmente, o roteiro de um dos mais famosos curtas-metragens brasileiros.
“Mank”, cujo roteiro foi escrito pelo pai de David Fincher, valoriza, até mais não poder, a autoria de Herman J. Mankiewicz (1897-1953). E, por isto, aproxima-se de tese defendida com ardor pela crítica Pauline Kael, em ensaio publicado em 1971 (disponível, em português, no livro “Criando Kane e Outros Ensaios”, da Editora Record, 2000).
Os argumentos de Pauline Kael foram rebatidos, com farta e sólida documentação, por Robert L. Carringer, em “Cidadão Kane – O Making of” (Civilização Brasileira, 1996). Carringer prova documentalmente que “Cidadão Kane” teve sete versões de seu roteiro, e que apenas as duas primeiras foram escritas por Mank (apelido de Mankiewicz). As outras cinco contaram com muitas (e essenciais) intervenções de Welles. Afinal, o atrevido estreante (em cinema) pretendia marcar presença em todas os créditos importantes do filme que produziria, dirigiria, protagonizaria e corroteirizaria. Sua ideia consistia em “começar com um diamante bruto (os dois tratamentos de roteiro de Munk) e ele mesmo lapidá-los e poli-los”.
Deixemos “Mank”, que dispõe da poderosa vitrine Netflix para mostrá-lo ao mundo inteiro, e “Cidadão Kane”, cujo octogenário será comemorado esse ano, para exegetas mais qualificados, e passemos ao sexagenário “Aruanda”, um pequeno-grande filme nascido no Terceiro Mundo, em condições mais que adversas, improváveis.
Durante a décima-quinta edição do Festival Aruanda, realizado mês passado, coube-me a função de mediadora de “live” protagonizada pelos cineastas Vladimir Carvalho, de 85 anos, e Jorge Bodanzky, 77, ambos muito impactados pelo primeiro curta-metragem de Linduarte Noronha (1930-2012).
Vladimir, há que se lembrar, figura nos econômicos (rarefeitos, até) créditos de “Aruanda” como assistente de direção (ao lado de João Ramiro Mello). A fotografia e a montagem são de Rucker Vieira. Linduarte, que dirigiria mais dois curtas – “Santa Luzia do Sabuji” (1960) e “O Cajueiro Nordestino” (1962) – e um único (e maldito) longa-metragem, “O Salário da Morte” (1971), assina sozinho, além da direção, o argumento e o roteiro de “Aruanda”. Divide a produção com Rucker Vieira.
Na live (disponível no YouTube do Festival Aruanda), Vladimir Carvalho reafirma que ele e João Ramiro Mello ajudaram Linduarte a escrever o roteiro de “Aruanda”. Mostrou, inclusive, cópia amarelada pelo tempo (o filme já soma seis décadas) do “roteiro escrito a seis mãos”. Na folha de capa – destacou –, “estão registrados os nomes dos três roteiristas”.
Em 2002, depois de ler entrevista do diretor de fotografia (e cineasta) Walter Carvalho, irmão de Vladimir, à Revista de CINEMA (número 28, mês de agosto), Linduarte Noronha nos encaminhou, por intermédio da jornalista Cecília Noronha, a seguinte carta (publicada na Revista de CINEMA número 30/outubro):
“Primeiramente, quero elogiar a jornalista Maria do Rosário Caetano pela entrevista com Walter Carvalho. O entrevistado, indiscutivelmente, é um nome de peso na cinematografia nacional. Porém, gostaria que ficasse registrado o meu protesto com relação aos mitos criados em torno do documentário “Aruanda”. Por exemplo, quando Walter afirma: “Quando ‘Aruanda’ foi concebido, em 1959, eu ficava no meu quarto, próximo da sala, sem conseguir dormir. Escutava, curioso, tudo que falavam Linduarte Noronha, Vladimir e João Ramiro Mello. Eles escreveram o roteiro juntos”. A título de esclarecimento: o roteiro de “Aruanda” nunca foi feito a seis mãos. Pode até ter sido visto por João Ramiro e Vladimir. O que ocorre é que muitos provincianos não conseguem aceitar que um produto cultural de uma terrinha esquecida como João Pessoa tenha, justamente em 1960, ultrapassado os limites do Rio Sanhauá. Linduarte Noronha está concluindo um livro que vai esclarecer todos os mitos que existem em torno do filme”.
Alguns livros sobre Linduarte Noronha e seu filme mais famoso foram publicados. Mas as memórias do cineasta e professor da Universidade Federal da Paraíba não foram (ainda) editadas. Como ele enfrentou sérios problemas de saúde em seus anos derradeiros (inclusive perda parcial da visão), talvez nem as tenha escrito.
Outra questão levantada na live (“Permanência de Aruanda 60 Anos Depois”) se refere à existência de elipse temporal que dividiria os 20 minutos de “Aruanda” em duas épocas históricas. A primeira, até a metade da narrativa, se passaria no pós-Abolição da Escravatura (Lei Áurea, assinada em 1988), quando Zé Bento parte, com sua família (mulher e filhos) para a região do Olho d’Água da Serra do Talhado. Ex-escravizado, ele buscava um local para viver e trabalhar. Passou, então, a dedicar-se ao plantio de mandioca e à cerâmica (fabricação artesanal de potes e outros utensílios domésticos). Tais utensílios eram levados em lombo de burro à feira plantada numa pequena cidade ao pé da serra. E lá comercializados.
Quem prestar a devida atenção verá que a cidade tem construções de alvenaria ao feitio do Brasil de meados do século XX (o filme foi concebido no final de 1959 e realizado em 1960). E o vestuário dos frequentadores da movimentada feira são também similares ao usados no interior do Brasil da época em que “Aruanda” foi rodado.
Vladimir Carvalho deu a entender, durante a live, que não houve, na concepção do filme, a intenção de dividi-lo em dois tempos (final do século XIX e meados do século XX), mas sim o desejo de mostrar que, naquela região do Nordeste, homens que viviam em sítios isolados, continuavam em situação tão difícil e desassistidos quanto na época da escravidão.
Jean-Claude Bernardet, autor de livro seminal sobre o cinema documentário brasileiro (“Cineastas e Imagens do Povo”, 1985, reeditado em 2003) já refletiu sobre o assunto em artigo elaborado depois de seminário realizado, em 2006, no mesmo Festival Aruanda. O ensaio foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
O cineasta Silvio Da-Rin, autor de importante livro sobre a história e a linguagem do cinema documental – “Espelho Partido: Tradição e Transformação do Documentário” (Azougue Editorial, 2004) – inscreve-se no time dos que veem “Aruanda” como um filme em dois tempos, separados por elipse.
Eis sua análise, realizada para a Revista de CINEMA: “O documentário ‘Aruanda’ começa com a encenação da migração de Zé Bento e família, de sua terra ressecada e empobrecida, subindo a Serra do Talhado em busca de melhor local para se estabelecer. Após longa jornada, encontra um olho d’água na beira de um lajeado, onde resolve se estabelecer. Começa a construção de uma casa de pau-a-pique e retoma o cultivo de mandioca para fabricar a farinha, base de sua alimentação. Ao mesmo tempo, sua esposa retoma o trabalho como oleira, no fabrico de utensílios domésticos de barro para vender na feira mais próxima. Ao longo do filme, a locução nos permite entender que a migração se deu no século XIX; e que, com o passar do tempo, o sítio de Zé Bento, no pé da Serra do Talhado, tornou-se ponto de referência para muitos escravos libertos, que para lá acorreram, dando origem a um quilombo.
A narrativa prossegue nos “tempos atuais” – o filme data de 1960 – encenando a penosa viagem de Zé Bento e família em direção à feira, para tentar vender seus utensílios e comprar fumo de rolo e insumos para complementar sua subsistência.
Logo, o filme se dá em dois tempos históricos. O abandono da morada anterior da família de Zé Bento e a sua nova vida, em condições um pouco mais generosas, mas ainda muito duras, visto que, como afirma o final do texto da locução, ‘Talhado é um estado social à parte do país; existe fisiograficamente, mas inexiste no âmbito das instituições’.
A elipse temporal é um recurso que data do cinema das origens, no final do século XIX. ‘Aruanda’ recorre a esse recurso elementar sem atribuir a ele maior ênfase, apenas sublinha que, naquelas paragens longínquas do sertão da Paraíba, o tempo não parece passar e o isolamento dos habitantes é uma das marcas cruéis do subdesenvolvimento e improdutividade econômica”.
Silvio Da-Rin introduz nova questão em sua análise do primeira curta-metragem de Linduarte Noronha: “Durante a recente live, promovida pelo festival paraibano, achei por bem retomar a questão da ‘ficção em Aruanda’, coisa inexistente, mas que havia sido polemizada por Jean-Claude Bernardet, no debate em 2006, em João Pessoa. Há tanta ficção em ‘Aruanda’ quanto nos primeiros documentários, os clássicos fundadores do gênero, como ‘Nanook’, ‘Moana’ ou ‘O Homem de Aran’ – filme que tanto impressionou Vladimir Carvalho e o atraiu irremediavelmente para o domínio do documentário.
Encenação e ficção são coisas diferentes. A migração de Zé Bento e família é considerada pelos habitantes da Serra do Talhado um fato histórico que deu origem a um quilombo. Até onde sei, nada tem de ficcional. Talvez possa ser considerada, no máximo, uma lenda local perpetuada pela tradição oral. Seria isso uma ficção? Não creio.
O ‘pulo do gato’ de Robert Flaherty, que possibilitou a criação de um novo gênero – o documentário – usando ‘materiais naturais’, foi a introdução do drama no domínio do filme de viagem, que até então se caracterizava pela mera descrição fisiográfica. E, claro, e muito importante, o uso da sintaxe narrativa cinematográfica que vinha de ser criada por E.S. Porter e contemporâneos e aperfeiçoada por David Griffith, constituída de uma escala de planos – do panorâmico ao super close, pela geografia imaginária constituída por campo e contracampo, pela montagem paralela e um sem número de outros recursos que impropriamente passamos a denominar ‘linguagem cinematográfica'”.
Seis décadas depois, “Aruanda”, como mostra Silvio Da-Rin, continua gerando polêmica. Sinal de que o filme permanece vivo, estimulante e arrebatador.