Cine Marrocos
Por Maria do Rosário Caetano
“Cine Marrocos”, primeiro e único longa solo de Ricardo Calil, estreia nessa quinta-feira, 5 de junho, no circuito de salas físicas. Depois irá para as plataformas de streaming.
O filme, premiado no Festival É Tudo Verdade, de São Paulo, e também no México e Alemanha (nos festivais de Guadalajara e Leipzig), constitui programa obrigatório por sua capacidade de revitalizar o onipresente documentário de temática social.
Obra de construção metalínguística, “Cine Marrocos” se apresenta como um híbrido de vários subgêneros documentais. E alcança resultado orgânico, tendo muito a dizer e mostrar em seus sintéticos 76 minutos.
Ricardo Calil, paulista de 46 anos, é jornalista e crítico de cinema. Desde 2010, quando estreou no longa-metragem com “Uma Noite em 67”, parceria com Renato Terra (parceiro também em “Imperial” e “Narciso em Férias”), ele vem dedicando-se, cada vez mais, ao cinema. Sua curta trajetória como documentarista já lhe rendeu duas vitórias no É Tudo Verdade (com “Cine Marrocos”, em 2019, e com “Os Arrependidos”, parceria com Armando Antenore, dois meses atrás). Registre-se que “Cine Marrocos” é o mais elaborado de seus cinco filmes. Para somar tragédia social e momentos de glória (e decadência) de um cinema, o documentarista recorreu ao teatro, à performance, ao canto, a imagens de arquivo e a depoimentos testemunhais.
O ponto de partida de Calil já se apresenta como fascinante achado: centenas de sem-teto vão morar num dos mais emblemáticos cinemas do país, outrora parte da fulgurante Cinelândia paulistana. A sala viveu dias de glória desde sua badalada inauguração, em 1952. Em 1954, durante os festejos do quarto centenário da capital econômica do país, sediou festival povoado por astros hollywoodianos (Erroll Flynn, Jean Fontaine, Jeanette MacDonald, Ann Miller, Edward G. Robson e Eric Von Stroheim), europeus (Abel Gance, Michel Simon, André Bazin) e japoneses (uma atriz de “pezinhos delicados” que, qual Cinderela, “perdeu seu sapatinho” nos degraus da escadaria).
Os anos se passaram e o proprietário do Cine Marrocos não pagou os impostos devidos à prefeitura. Por isso, foi obrigado a entregar a sala (e o edifício) ao poder público, como forma de ressarcimento. Com a migração do lazer cinematográfico para os shopping-centers, a Cinelândia paulistana foi se degradando. Enquanto não se restaurava o majestoso Marrocos (e o imenso edifício de muitos andares, que o tem como parte térrea), o comando do MSTS – Movimento Social dos Trabalhadores Sem-Teto (não confundir com o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, de Guilherme Boulos) mobilizou 30 ou 40 voluntários. Foram os pioneiros da ocupação. Depois, novos moradores foram chegando ao local. Mais de mil sem-teto – estrangeiros (em maioria imigrantes vindos da África) e brasileiros – viviam, mesmo que precariamente, no Marrocos paulistano.
Deserdados sociais seriam, pois, os protagonistas do filme. E a sala cinematográfica, seu principal cenário. Calil resolveu, então, com ajuda do ator Ivo Muller (de “Tabu”, de Miguel Gomes) e de Georgina Castro, montar oficina teatral com os ocupantes do cinema-edifício. E selecionou cinco longas-metragens, fonte de encantamento de plateias planetárias – “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Noites de Circo”, de Ingmar Bergman, “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, e “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini.
Coube aos oficineiros recriar (ou evocar) papeis que foram de Gloria Swanson, Marlon Brando, Gina Lollobrigida, Vittorio de Sica, Jean Gabin ou Harriet Andersson. Alguns deles brilham em suas performances, caso da brasileira Volusia Gama, a “Norma Desmond marroquina”, e do camaronês Koutou Yamaia, que transformou diálogo do “Júlio Cesar” shakespeareano em rap.
Registre-se, aqui, que “Cine Marrocos” se constroi como uma babel linguística, devidamente legendada. Afinal, fala-se, ao longo do filme – seja na tela hollywoodiana ou europeia e no decadente cinema paulistano – inglês, francês, sueco, italiano e até lingala, idioma trazido da África.
Depoimentos de diversos personagens da ocupação – como a caboverdiana Dulce Tavares, o congolês Júnior Panda Badibanga e os brasileiros Tatiane Oliveira, o jovem Fagner, também Oliveira, e o “astro” Valter Machado – enriquecerão a narrativa. Valter teve desempenho tão forte – e reforçado por sua figura singular – que tornou-se uma espécie de “voz artística” do filme. Um personagem, em especial, o articulado e aliciante Vladimir Ribeiro Brito, será responsável pela quebra do sonho trazido pelo filme.
Há documentários que, ao longo de seu processo de feitura, sofrem grandes reviravoltas. Este é o caso de “Cine Marrocos”. Tudo colaborou para que o filme nada tivesse de ingênuo ou edificante. Seu desfecho, sob versos de “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, nos distanciará do mundo onírico do cinema para nos arremessar na crua realidade das ruas do centro paulistano.
O documentário de Ricardo Calil é em tudo oposto ao cinejornal “Bandeirantes na Tela” (número 11, do acervo da Cinemateca Brasileira), que derrama glamour e grandiloquência ao registrar o desfile de astros mobilizados pelo Festival de Cinema do Quarto Centenário. No cinejornal, vemos a herança do cinema de cavação, a narrativa higienizada dos filmes publicitários, o ufanismo dos que fizeram de São Paulo “a grande metrópole bandeirante”. Já em “Cine Marrocos”, nos deparamos com a complexidade da vida e com personagens reais, aqueles que não dispõem do mais básico dos direitos (à moradia). Um filme para se ver e rever.
Cine Marrocos
Brasil, 76 minutos, 2021
Direção: Ricardo Calil
Produção: Muiraquitã e Olho Só, em parceria com Globo Filmes, Globonews e Canal Brasil
Fotografia: Carol Quintanilha e Loiro Cunha
Montagem: Jordana Berg
Trilha original: André Namur
Distribuição: Bretz e Spcine