“Carro Rei” coloca Matheus Nachtergaele na disputa pelo Kikito de melhor ator
Por Maria do Rosário Caetano
Com a exibição de “Carro Rei”, uma fábula do Terceiro Mundo dirigida pela pernambucana Renata Pinheiro, Gramado viu surgir um grande concorrente para Chico Diaz, o “Homem Onça” de Vinícius Reis, até agora o favorito ao troféu de melhor ator. Trata-se de Matheus Nachtergaele, que interpreta também um homem-bicho, o símio Zé Macaco.
Os integrantes do júri (Carol Castro, Catarina Apolônio, Ana Mendes, Fabrício Boliveira e Tabajara Ruas) vão ter que decidir qual dos dois (ou apelará ao “ex aqueo”?) merecerá o Kikito pela melhor interpretação.
“Carro Rei” foi filmado em Caruaru, município pernambucano de 370 mil habitantes, que orgulha-se de contar com vistoso “Autódromo Internacional”. O resultado é um filme ousado, um híbrido de gêneros (ficção científica, horror e fábula político-ecológica). Uma provocação, enfim, bem ao gosto de Renata e de Nachtergaele.
A ficção científica made in Caruaru vem recebendo boa acolhida em festivais internacionais como o de Roterdã, na Holanda, onde estreou, e agora passa pelo escrutínio de festival canadense. E faz sua première brasileira em Gramado.
Além do longa de Renata Pinheiro, diretora de curtas memoráveis (“Super Barroco” e “Praça Walt Disney”) e dois longas (“Amor, Plástico e Barulho” e “Açúcar), a sexta noite da competição gramadense contou com o longa uruguaio “A Teoria dos Vidros Quebrados”, de Diego Fernández Pujol, e dois curtas, o paranaense “Aonde Vão os Pés”, de Débora Zanatta, e “Memória de Quem (Não) Fui”, do fluminense Thiago Kistenmacker.
O roteiro de “Carro Rei” foi escrito por Renata, em parceria com Sérgio Oliveira e Leo Pyrata. Os três uniram-se para contar história jamais vista em nossas telas, nesse longo primeiro século de narrativas ficcionais brasileiras.
A diretora convocou – além de Matheus Nachtergaele e da performer alemã Jules Elting (que passou pelo Oficina de Zé Celso) – um time de jovens intérpretes pernambucanos (Luciano Pedro Jr e Clara Pinheiro), que somou-se a talentos já maduros (Adélio Lima, Ane Oliva, Walmir do Côco e Tavinho Teixeira). O caruaruense Adélio, vale lembrar, interpretou Luiz Gonzaga em “Gonzaga de Pai pra Filho” (Breno Silveira, 2012).
Só os familiarizados com filmes como “Christine, o Carro Assassino” (Carpenter, 1983) e “Crash – Estranhos Prazeres (Cronenberg, 1996) não estranharão o insólito universo fabular de “Carro Rei”.
Sérgio Oliveira contou, durante o debate mediado por Roger Lerina, que os curadores de Roterdã garantiram nunca ter visto uma produção brasileira parecida com o longa pernambucano. Renata fez questão de pontuar que seu filme referencia, também, um título brasileiro – “Fuscão Preto”, de Jeremias Moreira Filho (1983).
“Carro Rei” começa no ano 2000, quando uma mulher dá à luz dentro de um carro novinho em folha. O bebê será batizado com o nome automobilístico de Uno (Luciano Pedro Jr). Uninho aprenderá a dirigir ainda criança e estabelecerá a mais profunda relação com o carro-manjedoura. Conseguirá, inclusive, conversar com ele e receber as devidas respostas (voz do paraibano Tavinho Teixeira).
Zé Macaco, um mecânico dos mais habilidosos, será cúmplice do sobrinho Uno. Suas esquisitices, porém, incomodarão o cunhado (Adélio Lima), dono de frota de carros-taxi. Para o cunhado, Zé Macaco não passa de um inútil, um abestalhado, que nunca se casou.
Uno cresce e grande mudança virá a se processar em sua vida. Ele irá estudar na Universidade e acabará aliando-se a grupo de ativistas ambientais. O discrimado Zé Macaco irá viver sozinho em um ferro velho desativado. Mas o destino de tio e sobrinho voltará a cruzar-se.
O filme tem momentos de intensa e perturbadora inventividade. A performer alemã Jules Elting (que se expressa em português perfeito, aprendido em passagem de dez anos pelo Brasil) faz sexo com o carro. Zé Macaco arrasa em número de pole dance. Até a horrorosa estátua do Borba Gato paulistano é evocada (isto, antes, bem antes, de ser incendiada por ativistas).
Profissionais como Fernando Lockett (fotografia), DJ Dolores (em mais uma trilha mobilizadora), Karen Araújo (na direção de arte, terreno em que Renata Pinheiro é fera) e Quentin Delaroche (montagem) comungam do desejo de realizar um filme inusitado, realmente fora do previsível.
E, registre-se, a entrega de Matheus Nachtergaele ao mecânico Zé Macaco é espantosa. Ao dar ao personagem uma fisicalidade animal (simiesca), ele correu grandes riscos. Sua interpretação poderia ter resultado em algo risível. Mas não!
O mecânico-símio é um ser que nos comove. Solitário, desprezado por muitos (menos pela irmã e pelo sobrinho), ele imanta nossos olhos com seus estranhos movimentos, seus pazeres inusitados (como praticar pole dance, prática tão feminina) e sua capacidade de transformar refugos industriais em um carro rei. Mesmo que os rumos do homem símio “involuam” de forma surpreendente.
“A Teoria dos Vidros Quebrados”, segundo longa-metragem de Diego Pujol (o primeiro, “Rincón de Darwin”, passou pelo Cine Ceará), é fruto de parceria entre Uruguai, Argentina e Brasil, unidos pelo Fundo Ibermedia.
O Uruguai entra com a história, ótimos atores (Cesar Troncoso, Verónica Perrota, Carlos Frasca, Jenny Galvan), cenário (o povoado de Aiguá, de menos de três mil habitantes) e direção. A Argentina, com os atores Martín Slipak, o protagonista, e Guillermo Arengo. O Brasil, com Roberto Birindelli, carioca de origem platina, e Aleteia Selonk, da Okna Produções. Aleteia tem sido peça importante na busca de parcerias com produtores hispano-americanos (foi assim em “Mulher do Pai”, primeiro longa de Cristiane Oliveira).
“La Teoria de los Vidrios Rotos” é uma comédia rasgada e contaminada, intencionalmente, por elementos do western e do musical. A história, embora baseada em fatos reais, é fruto da mente fértil dos roteiristas Rodolfo Santullo e Diego Pujol.
Cláudio Tapia (Martín Slipak) é um jovem corretor de seguros que recebe promoção na firma que o emprega. Recebe, também, uma missão: ir a uma cidade distante onde incêndios estão destruindo carros, um atrás do outro.
O diálogo com o western se dará pela ambientação. A cidade que recebe o agente de seguros assemelha-se a um empoeirado povoado do Velho Oeste. E pela trilha incidental de Franny Glass (Gonzalo Deniz). O músico assina também as canções narrativas, que namoram o brega e ajudam a comentar, jocosamente, a ação.
No debate do filme, o ator Cesar Troncoso, detentor de um Kikito pelo tocante “O Banheiro do Papa”, contou de sua alegria em poder atuar em comédia que quer ser, realmente, uma comédia, sem se fazer acompanhar do enobrecedor adjetivo ‘dramática’.
“A intenção do diretor e a nossa” – divertiu-se – “era fazer rir. Eu, que tenho sido chamado para interpretar muitos policiais e militares, todos dramáticos. Pude, dessa vez, me divertir ao interpretar um comissário bem doidão”.
Os dois curtas da noite de quarta-feira foram dirigidos por realizadora e realizador homoafetivos e tematizaram histórias também homoafetivas.
No belo e original “Aonde Vão os Pés”, Débora Zanatta recria história de sua adolescência. Num bar, onde placa avisa que ninguém deve incomodar os que bebem, uma prostituta volumosa (a maravilhosa atriz Eliane Campelli) se embriaga e canta a plenos pulmões como os presentes. Todos, aliás, cantam muito bem (até o difícil repertório de Tetê Espíndola). Em certo momento, uma jovem irá com a prostituta para o refúgio (desta), já alta madrugada. A jovem fará sua iniciação com a volumosa loura felliniana?
Thiago Kistenmacker realiza em “Memória de Quem (Não) Fui”, seu quarto curta, uma história tocante. Um pai (Fernando Alves Pinto) enterra sua filha, a trans Marina, como se fosse um homem. Faz imprimir na lápide, a identificação civil (e originária) do nome de batismo do filho. Mas um grupo de amigas de Marina mudará o rumo dos fatos.