Ecofalante mostra “O Jogo do Poder”, segundo Costa- Gavras, e “Novo Evangelho” dos imigrantes

Por Maria do Rosário Caetano

A décima edição da Mostra Ecofalante, festival dedicado a sete eixos socioambientais (ativismo, biodiversidade, cidades, economia, povos & lugares, tecnologia e trabalho), promete começar em alta voltagem, já em sua noite inaugural.

Nessa quarta-feira, 11 de agosto, a partir das 19h, depois das devidas apresentações, será exibido o documentário “O Novo Evangelho”, do suíço Milos Rau, que mistura religião (o doloroso ritual da via-crucis protagonizado por um Cristo negro), problemas de imigrantes vindos da África (para as lavouras de tomate na Itália) e a história do próprio cinema.

Dois filmes sobre personagens bíblicos – “O Evangelho Segundo São Mateus”, de Pier Paolo Pasolini (1964) e “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson (2004) – são evocados nesta produção que uniu Suíça, Alemanha e Itália.

O primeiro filme, o de Pasolini, é lembrado com trecho de grande beleza, registrado em suave preto-e-branco e com atores escolhidos entre as gentes do povo. O segundo, um épico masoquista falado em aramaico, é rememorado por integrante de sua numerosa equipe. Ambos foram – assim como outros filmes de época inspirados nos Evangelhos – rodados em Matera, cidade da região de Basilicata, na Península Italiana.

Nas cercanias milenares de Matera, encontram-se trabalhadores vindos da África, a maioria sem documentos. Ocupados nas lavouras de tomate, eles tentam fundar cooperativa capaz de evitar que atravessadores se apossem da mais-valia de suas muitas horas de estafante trabalho. Um deles, o ativista Ivan Sagnet, vai comandar os colegas e interpretar Jesus Cristo em seu calvário rumo à cruz. Manifestações trabalhistas ganharão espaço nobre nessa instigante narrativa documental, expondo cartazes e faixas que clamam por reconhecimento e dignidade.

Depois da introdução do “O Novo Evangelho”, a Mostra Ecofalante de Cinema apresentará, dessa quinta-feira, 12 de agosto, até 14 de setembro, portanto ao longo de 32 dias, 110 produções oriundas de 40 países. Brasileiros de todos os pontos do nosso território poderão ver os filmes on-line e gratuitamente.

Além do “Evangelho” pregado por um Cristo imigrante, três dos longas selecionados pela curadoria do Ecofalante chamam atenção: “O Jogo do Poder”, de Constantin Costa-Gavras, que regressa à sua terra natal, a Grécia, para relembrar momento de imensa conturbação político-econômica, “A História do Plástico”, de Deia Schlosberg, dos EUA, e o brasileiro “A Bolsa ou a Vida”, do cada vez mais produtivo Silvio Tendler.

Do Brasil, há que se destacar, ainda, segmento especialíssimo e imperdível – a mostra informativa Territórios Urbanos: Segregação, Violência e Resistência. A curadoria foi matadora em suas escolhas ao selecionar filmes da grandeza e potência atemporal de “O Prisioneiro da Grade de Ferro (Autorretratos)”, o maior e melhor dos filmes de Paulo Sacramento, e “Era o Hotel Cambridge”, filmaço de Eliane Caffé. Destaque, também, para “Notícias de uma Guerra Particular”, a seminal parceria de Katia Lund e João Moreira Salles (programação completa abaixo).

“Adults in the Room”, vigésimo longa-metragem do greco-francês Costa Gavras, de 88 anos, ganhou, no Brasil, o título de “O Jogo do Poder”. Trata-se de ficção baseada em fatos reais. Depois de sete anos de crise, a Grécia encontra-se à beira do abismo. Do processo eleitoral surge novidade, que a população toma como sopro de esperança: um partido de esquerda, o Syriza, comandado pelo jovem e belo Alexis Tsipras, ganha as eleições. Mesmo sob intensa pressão – principalmente de autoridades monetárias européias – Tsipras assumirá, em Atenas, o cargo de primeiro-ministro e formará seu governo. Para o Ministério das Finanças, convidou Ioannis Georgiu Varoufakis, o “Yanis”.

“O Jogo do Poder”, de Costa Gavras

A dívida da Grécia com bancos internacionais, porém, mantinha o país em polvorosa e sob pressão constante. Yanis só conseguiria permanecer no cargo de janeiro a setembro de 2015.

O breve ministro das Finanças, já fora do Governo, escreveu o livro “Adultos na Sala – Minha Batalha com o Establishment Europeu”. A partir do relato do conterrâneo, o experiente Costa-Gavras construiu sua narrativa, que dura 124 minutos. Embora seja cidadão francês e viva em Paris há muitas décadas, o diretor de “Estado de Sítio” conhece profundamente seu país de origem. É dele o premiadíssimo “Z”, thriller político sobre o assassinato do médico e político socialista Grigóris Lambrakis (Yves Montand), no começo dos anos 1960, quando a Grécia vivia sob a ditadura dos coronéis.

No novo filme, falado em grego, inglês e francês, Costa-Gavras urde trama das mais consistentes e provocativas. Tanto que “O Jogo do Poder” foi premiado com o Cesar francês e o Prêmio do Cinema Europeu, ambos na categoria melhor roteiro. Embora, à primeira vista, a trama pareça intrincada, o diretor conseguirá revelar as complexas entranhas do jogo de poder empreendido pela Troika (FMI, Comissão Europeia e o Banco Central Europeu). Um poder tão avassalador que, mesmo vencendo plebiscito (portanto, com a população reafirmando suas propostas), o primeiro-ministro Tsipras acabaria compelido a abrir mão de suas promessas de campanha, desmontar sua equipe “esquerdista” e aceitar as imposições da Troika, dona dos destinos da Europa Unida.

No elenco, Christos Loulis interpreta Yanis, o breve. Ulrich Tukur representa Wolfgang Schaüble, o homem forte da economia germânica, e, por extensão, a europeia (ele vive preso a cadeira de rodas, desde que foi vítima de atentado – um tiro atingiu sua coluna vertebral paralisando suas pernas). Alexandros Bourdoumis incorpora o primeiro-ministro Tsipras, estrela do Syriza. A italiana Valeria Golino é uma das poucas mulheres com algum destaque no elenco, composto majoritariamente de homens brancos e poderosos.

O documentário “A História do Plástico”, da norte-americana Deia Schlosberg, expõe problema grave: a poluição trazida pelo plástico, material onipresente em nossas vidas, dos brinquedos dos bebê aos utensílios domésticos.

A jovem Deia, que ganhou dois prêmios Emmy (o Oscar da TV) nos tempos de estudante, foi presa em 2016, ao filmar protesto contra combustíveis fósseis em Dakota do Norte. Para tirá-la do cárcere, dezenas de celebridades assinaram carta, em sua defesa, encaminhada ao então presidente Barak Obama. Libertada, ela seguiu sua trajetória profissional. E realizou novos títulos do chamado “cinema verde”, ou seja, filmes que lutam pela preservação do meio-ambiente.

O público do Ecofalante verá o mais recente deles, justo este que revela o lado inconveniente do plástico, produto residual da indústria petroquímica. Esta descoberta, que fascinou o século XX e teve expansão vertiginosa, agrava a emissão de carbono na atmosfera, gera poluição marinha e do solo. E mais: sua fabricação traz riscos à saúde, já que dezenas de substâncias tóxicas são utilizadas em seu “aperfeiçoamento”.

O incansável documentarista carioca Silvio Tendler, de 71 anos, mesmo preso a uma cadeira de rodas, trabalha cada dia com mais paixão e entusiamo. Seu novíssimo longa-metragem “A Bolsa ou a Vida” se propõe a refletir sobre “o que virá depois da pandemia”. Para ajudá-lo nessa reflexão, ele conversou, entre outros, com o cineasta britânico Ken Loach, com o ativista e criador da Bienal de Cinema Indígena, Ailton Krenak, com o padre Júlio Lancelotti, conhecido por seu trabalho com moradores de rua, e com a criativa e progressita professora de História Rita von Hunty, que é drag queen. Rita, registre-se, destacou-se como uma das personagens do documentário “Youtubers”, de Sandra Werneck e Bebeto Abrantes. Como mantém participação que mobiliza milhares de seguidores no YouTube, ela vem conquistando cada vez mais (e merecido) espaço.

Chico Guariba, que dirige o Ecofalante, e sua equipe destacam ainda os filmes “Mulheres de Farda”, de Deirdre Fishel (sobre policiais femininas em Minneapolis, nos EUA), “Res Creata”, do italiano Alessandro Cattaneo, que traz a relação milenar, ora conflitante, ora harmoniosa entre seres humanos e bichos, “A Campanha Contra o Clima”, de Mads Ellesøe, selecionado pelo poderoso Festival de Amsterdã (sobre campanha de negação da causa antrópica do aquecimento global, patrocinada secretamente por grandes petroleiras) e “Solo Fértil”, centrado em grupo de ativistas (cientistas, agricultores, políticos e artistas) como Ian Somerhalder e a brasileira Gisele Bündchen, reunidos no movimento global “Agricultura Regenerativa”. O documentário é narrado pelo ator e ativista ambiental Woody Harrelson.

Guariba e equipe fazem questão, também, de chamar atenção para produções recentes que registram desastres nucleares. Cinco filmes integram segmento especial intitulado “Energia Nuclear – 35 Anos de Chernobyl, 10 Anos de Fukushima”. Entre eles estão o francês “O Desastre de Chernobyl”, de Thomas Johnson, e o germânico “Nuclear Forever”, de Carsten Rau.

Quem se interessa pelos Panteras Negras (o partido black, não o filme da Marvel), poderá apreciar “Dope Is Death: A Outra Luta dos Panteras Negras”, documentário da norte-americana Mia Donovan. Ela empenhou-se em tema singular: a história, por poucos conhecida, de programa de desintoxicação, iniciado por um dos fundadores do Black Panther Party, no bairro nova-iorquino do Bronx, ao longo da década de 1970. A África também terá presença marcante na programação do Ecofalante, com filmes vindos do Quênia, Angola e Madagascar.

 

10ª Mostra Ecofalante de Cinema
Data: 11 de agosto a 14 de setembro
On-line e gratuita
Abertura: nessa quarta-feira, às 19h, com solenidade inaugural e, às 20h, exibição do filme “O Novo Evangelho”
Os 110 filmes de longa e curta duração serão disponibilizados no site do evento, www.ecofalante.org.br, e também em plataformas parceiras (Belas Artes à La Carte e Spcine Play)

 

Competição Latino-Americana

“Piedra Sola”, de Alejandro Telémaco Tarraf (Argentina)
“499”, de Rodrigo Reyes (México)
“Era Uma Vez na Venezuela”, de Anabel Rodríguez (Venezuela)
“Chico Rei Entre Nós”, de Joyce Prado (Brasil)
“Edna”, de Eryk Rocha (Brasil)
“Meu Querido Supermercado”, de Tali Yankelevich (Brasil)
“Pajeú”, de Pedro Diogenes (Brasil)
“Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitán (Brasil)
“Sobradinho”, de Marília Hughes e Cláudio Marques (Brasil)
“O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels”, de Tiago Carvalho (Brasil)
“Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero (Brasil – MG)
“Mata”, de Fábio Nascimento e Ingrid Fadnes (Brasil)
“Território Suape”, de Cecilia da Fonte, Laercio Portella e Marcelo Pedroso (Brasil-PE)

Mostra Territórios Urbanos: Segregação, Violência e Resistência

“Branco Sai, Preto Fica”, de Adirley Queirós
“Mataram meu Irmão”, de Cristiano Burlan
“O Prisioneiro da Grade de Ferro (Autorretratos)”, de Paulo Sacramento (cópia remasterizada)
“O Caso do Homem Errado”, de Camila de Moraes
“Notícias de uma Guerra Particular”, de João Moreira Salles e Kátia Lund
“Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos
“O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna
“Era O Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé
“Auto de Resistência”, de Natasha Neri e Lula Carvalho
“À Margem da Imagem”, de Evaldo Mocarzel
“Um Lugar ao Sol”, de Gabriel Mascaro
“Elevado 3.5”, de João Sodré, Maíra Buhler e Paulo Pastorelo
“A Vizinhança do Tigre”, de Affonso Uchoa
“Atos dos Homens”, de Kiko Goifman
“Meu Corpo é Político”, de Alice Riff
“Corpo Delito”, de Pedro Rocha

One thought on “Ecofalante mostra “O Jogo do Poder”, segundo Costa- Gavras, e “Novo Evangelho” dos imigrantes

  • 10 de agosto de 2021 em 00:57
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    Pra mim é um prazer ler a Revista de Cinema, estar bem informado com tudo que ocorre no mundo do cinema. Parabéns a equipe da revista, pela qualidade e informações.

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