Os “arcos” estratégicos de “Round 6” e das melhores séries de ficção
Como séries de sucesso tão diferentes, como “Round 6”, “The Morning Show”, “Mare of Easttown” e “Big Little Lies”, estruturam suas estórias e seus personagens para “fisgar” o espectador através dos arcos dramáticos
Por Hermes Leal
O que é um arco? Por que se chama arco e para que serve? Os arcos são fundamentais para aumentar a compreensão do espectador sobre o personagem, a intriga, a atmosfera e a própria história. Além de gerarem maior impacto no espectador. Servem para resolver problemas de unidade do tema e do sentido da trama, para prender o espectador involuntariamente em uma expectativa e para também impactar esse espectador no final do arco, de preferência com uma boa e inesperada surpresa.
Por que a revelação da identidade do “denunciante” do apresentador Mitch Kessler (Steve Carell), no final de “The Morning Show”, causa tanto impacto? Porque fecha um arco que se iniciou nas primeiras cenas do primeiro episódio, como um incidente inicial, quando Mitch é demitido ao ser denunciado por assédio sexual, gerando um sentido narrativo de que existia um “denunciante oculto” que ocasionou a sua demissão.
O arco se iniciou com essa informação oculta da verdade, pois o denunciante podia ser vários personagens, que são explorados como pistas falsas até o final do arco, quando o denunciante é revelado. O arco se forma através dos eventos que ocorrem neste período de tempo, entre o incidente inicial, que marca o começo do arco, quando o espectador é preparado para a surpresa, e o incidente final, que revela a verdade oculta como um impacto final.
A técnica para se desenvolver um arco serve para que, nos últimos minutos de “The Morning Show”, o espectador seja pego por um grande impacto, quando é revelado o que estava oculto em forma de surpresa; que o denunciante se tratava de Chip (Mark Duplass), o insuspeito chefe de jornalismo.
O que sustenta a série “Round 6” não são os jogos matando humanos, que estão em muitas séries e filmes, como “Bacurau”, mas a jornada interna de cada personagem, afetado por suas imperfeições
Qual o grande impacto no espectador no final da primeira temporada de “Westworld”? A descoberta de que William (Jimmi Simpson) e o Homem de Preto (Ed Harris) são a mesma pessoa, em tempos diferentes. Esse impacto no espectador, em que ele não percebe que existia uma verdade oculta nos dez episódios da série, fecha um arco aberto no início do primeiro episódio, com a existência de um Homem de Preto perseguindo Dolores (Evan Rachel Wood) e um jovem William que a defende.
O mesmo impacto tem o espectador quando descobre, no último episódio, que o “responsável” pelos jogos mortais de “Round 6” era um dos personagens menos suspeitos que poderia existir, o senhor idoso Oh Il-nam (Oh Yeong-su), o jogador número 1. O espectador não percebe que o senhor à beira da morte, insuspeito como o jornalista Chip, era o personagem que “ocultava a verdade”, que organizou toda aquela matança, da qual também participou. O que sustenta a série não são os jogos matando humanos, que estão em muitas séries e filmes, como “Bacurau”, mas a jornada interna de cada personagem, afetado por suas imperfeições.
Se você for rever a série irá perceber que esse arco de “uma ilusão a uma verdade” do senhor Oh Il-nam fez a dramaturgia ganhar mais sentido, e que a verdade que estava oculta já estava implícita em todos os episódios, de que o personagem, apesar de senil, “sabia” como jogar mais que os outros. Esse tipo de pista que permeia toda uma série possui uma técnica para que possa ser eficiente.
Nem toda intenção de surpresa pode ter o efeito no espectador de surpreendê-lo. É preciso mostrar o que está oculto, de alguma forma, nas ações dos personagens, – o que chamamos de implicação, o previsível –, para que possamos ter um efeito de curva e arco no final, em forma de uma “concessão” – o imprevisível – do que era esperado. Esse é o sentido da existência do que se chama de arco.
Em “Big Little Lies”, existem dois arcos estratégicos na estrutura narrativa. Um se inicia com um assassinato, logo nas primeiras cenas, cujo “assassino oculto”, assim como o denunciante em “The Morning Show” e o responsável pelos jogos em “Round 6”, só será revelado nas últimas cenas do último episódio da primeira temporada.
O arco estrutural de “Big Little Lies” serve para esconder a identidade do assassino e do assassinado, abrindo com esse incidente inicial e fechando quando a verdade for revelada no final da temporada. A série ainda tem mais um arco que irá gerar um sentido, e mais importante do que o arco do assassinato. Se inicia quando o garoto Ziggy é acusado de ter machucado uma colega na escola. Este incidente, no início da série, abre este arco, ocultando quem seria o verdadeiro agressor, que será revelado, em forma de surpresa, no final da temporada.
Já explicamos em outros artigos como funcionam os arcos em um filme, exemplificando-os em “Roma”, “Parasita” e “Coringa”. Geralmente, no transcorrer de três atos, se forma um arco que vai de “uma ilusão a uma verdade”. O arco estrutural destes filmes organiza a jornada de ação do personagem e arma uma estratégia para prender e surpreender o espectador. O que tornou a série “Round 6” um fenômeno não foram somente suas cenas de violência, mas a jornada individual e afetiva de cada personagem.
O arco perfeito elabora a jornada do “agir” e do “sentir” dos personagens
Em “Coringa”, o arco estrutural se inicia com uma frase de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) “de que será mais visto morto do que vivo”, nas primeiras sequências, e se fecha na última sequência, quando “surpreende” a todos, não se mata e mata o outro. Um arco que elabora a jornada do personagem de Arthur Fleck a Coringa, que parte de um sujeito bonzinho e finaliza como um sujeito raivoso e vingativo.
O arco perfeito elabora a jornada do “agir” e do “sentir” do personagem. Levando em conta que o sentir rege o agir na produção narrativa e de personagens sensíveis. O arco tem uma estratégia, na forma como usá-lo para funcionar corretamente, e tem uma teoria, baseada na construção da surpresa através da “implicação x concessão”, assim como também organiza a jornada interna do personagem, o chamado arco afetivo que revela sua paixão e imperfeição ocultas, e que está presente em todo bom filme e boa série.
Portanto, temos dois tipos de arco, o da estrutura narrativa e o arco do personagem, que podem ser longos, como os exemplificados, ou curtos, que se abrem e se fecham em poucos episódios. O que há em comum em todos esses arcos estruturais é que eles sempre se iniciam com o chamado “incidente inicial” e se fecham com uma “verdade que estava oculta” neste incidente. Já o arco do personagem leva em conta a “paixão” e os danos que lhes afetam.
Nos gráficos abaixo, para exemplificar como esses arcos estão estruturados, chamaremos de Arco 1 o da estrutura e da “surpresa” e de Arco 2 o do personagem. E há ainda o Arco 3, estratégico, que serve para potencializar as surpresas finais no espectador, e que se fecha com ao menos dois terços dos episódios transcorridos.
Arco do personagem
Os arcos não são apenas estruturais. Eles servem também para demarcar as curvas sensíveis do personagem, na forma como é afetado por suas paixões, como ódio, rancor, raiva, melancolia, medo, ambição, culpa, ira, entre outros. São as paixões, e suas mudanças ou transformações, que formam o arco da passionalidade do personagem, dando-lhe densidade. Assim como existe o “arco interno”, que o personagem manipula em seu simulacro existencial, onde esconde suas “imperfeições”, que estão sempre ocultas na busca do personagem pela “perfeição”.
São as paixões, e suas mudanças ou transformações, que formam o arco da passionalidade do personagem, dando-lhe densidade
Em “Big Little Lies”, existe um arco invisível, o da personagem Madeline Mackenzie (Reese Witherspoon), que é marcado por um sentimento da paixão da “culpa”, e o final de sua jornada será uma liquidação desse sentimento de culpa, causando o principal incidente no final da primeira temporada. As ações das últimas cenas da primeira temporada, que fecha um arco estrutural, ocorrem em razão da necessidade de Madeline de confessar sua traição e culpa ao marido.
Dentro deste arco da culpa está oculta a “imperfeição” de Madeline por ter traído o marido, e esse arco se fecha quando ela precisa revelar a “verdade” para sua própria filha, de que não era perfeita como parecia ser. Esse também será o arco da jornalista Alex Levy (Jennifer Aniston), a personagem principal de “The Morning Show”, em uma curva que vai de “uma ilusão a uma verdade”, em que fecha o arco revelando a verdade para sua filha, no último minuto do último episódio, fechando a temporada.
A jornada de ação de Alex é não perder seu posto no comando do programa, mas no seu arco “sensível”, a personagem esconde uma verdade, de que sua família não é perfeita como aparenta ser e de que sabia dos assédios do ex-colega denunciado. Esse arco fecha quando a verdade é revelada, quando Alex revela a todos a “sua verdade” que estava oculta no encerramento da temporada.
Em “Westworld”, o arco da personagem Dolores, que sofre de uma grande melancolia (uma paixão que afeta a personagem com o desejo de morrer), abre com uma busca por “algum acontecimento especial” e fecha no final do último episódio da primeira temporada, quando chega em uma praia nos limites do parque e então morre, terminando o arco de seu “sofrimento”.
Já a curva de “sofrimento” da personagem Mare Sheehan (Kate Winslet), em “Mare of Easttown”, é a liquidação de um sentimento de luto pela morte do filho, e seu arco se fecha quando a personagem retorna ao lugar onde o filho se suicidou. Mare tem um “arco de cura”, de liquidação do luto pelo suicídio do filho. Um tipo de arco interno que, bem usado, permite sensibilizar o espectador pelas emoções do personagem de forma eficiente.
A curva de “sofrimento” da personagem Mare Sheehan, em “Mare of Easttown”, é a liquidação de um sentimento de luto pela morte do filho, e seu arco se fecha quando a personagem retorna ao lugar onde o filho se suicidou
Esse arco do personagem serve para “ocultar e revelar” sua passionalidade, que é realmente o que motiva suas ações e sensibiliza o espectador. É o que “sente” Mare que sensibiliza o espectador. Que torna a série boa. E ela sente luto, em que é afetada por uma dura melancolia que a deixa anestesiada pela perda do filho.
Uma jornada de vingança é caracterizada pelo o que sente o personagem vingador, que precisa ser um grande “ódio”, uma paixão que o personagem quer se livrar. O que motiva o personagem a uma jornada de vingança é liquidar o seu ódio. Matar o outro que causou o ódio é uma consequência do seu sentir. E essa curva da alma do personagem é gerada dentro de um arco que se forma como um “simulacro existencial”, caracterizado pela imperfeição do personagem.
A estratégia de um terceiro “arco especial”
Além dos dois tipos de arco, estrutural e do personagem, existe um outro que se fecha antecipadamente, que serve para surpreender o espectador antes do final da temporada, causando, muitas vezes, até mesmo uma parada na narrativa, e que mais adiante revela que o espectador foi enganado. Chamamos esse arco de “terceiro tipo de arco”, que ocorre normalmente no sétimo episódio em uma série de dez.
Em “The Morning Show”, esse terceiro arco se fecha quando é revelado para o espectador, no final do sétimo episódio, que a principal suspeita de ser a “personagem denunciante” oculta – implicava ser Hannah Shoenfeld (Gugu Mbatha-Raw) – morre suicidando-se.
Em “Westworld”, esse arco que falseia o final se fecha com um grande impacto, também no final do sétimo episódio, quando Bernard (Jeffrey Wrigth), e o espectador, descobre a verdade oculta, de que é um robô e não um humano como ele achava que era, por sonhar e ter sentimentos de “culpa” que só os humanos possuem. O impacto ocorre em razão de uma estratégia de revelar o oculto que não percebíamos.
Em “Round 6”, esse Arco 3 se inicia com um policial em busca do irmão, que se infiltra dentro dos games para descobrir a verdade sobre seu desaparecimento. E essa busca se encerra com uma surpresa, antes dos dois episódios finais, fechando o arco com a revelação de que seu irmão é a pessoa mascarada que comanda todo o jogo mortal. Deixando a grande revelação, de quem controla o mascarado, para as cenas finais, fechando o grande arco ao revelar que se tratava do jogador número 1.
O que motiva o personagem a uma jornada de vingança é liquidar o seu ódio. Matar o outro que causou o ódio é uma consequência do seu sentir
Em “Sombras e Ossos”, esse Arco 3 se fecha quando Alina Starkov (Jessie Mei Li) descobre que seu herói, o sedutor General Kirigan (Bem Barnes), é na verdade o grande vilão da história, exatamente a dois episódios do fim da temporada. Os dois episódios finais não têm mais esse arco inicial, retomando a série como se fosse do início, com o objetivo de criar um grupo de “vingadores” para atuarem juntos nas próximas temporadas.
Em “Mare of Easttown”, série com sete episódios, o Arco 3 promove uma parada no quinto episódio, quando o crime, que abre o incidente inicial, é solucionado, fechando o arco do desaparecimento das garotas. Mas existe mais uma morte suspeita. E que fechará o arco final, no último episódio, quando é revelado o “verdadeiro” autor deste crime.
A técnica teórica da semiótica da narrativa e das paixões
Do ponto de vista da estrutura narrativa, o arco de Bernard só se torna possível devido a uma técnica de “implicação x concessão”, em que são mostradas lembranças do seu filho que já morreu. O que implicava “não ser máquina”, pois é afetado por paixões. Mas a verdade é revelada neste arco imprevisível, com uma “concessão”, um tipo de narrativa baseada no imprevisto, na chegada do inesperado.
Já a implicação no arco principal da série, na jornada de ação de Dolores, trata-se de um artífice de montagem, em que o mesmo personagem (Wiliam e Homem de Preto), mais novo no presente e mais velho no passado, são mostrados ao mesmo tempo no final do arco, sem que o espectador, até então, tenha feito uma ligação de um com o outro.
O esquema da “surpresa”, na qual nos baseamos para formatar os arcos, está inserido dentro de um escopo teórico maior, com “sete esquemas” necessários para se formar uma boa narrativa, fundamentados na teoria da semiótica narrativa, semiótica das paixões e semiótica tensiva. Esses esquemas se encontram em dois livros e em vários vídeos, disponíveis no site screenwriteronline.com/br. No site também se encontra outros artigos sobre arcos nos filmes “Roma”, “Parasita” e “A Doce Vida”, além de um estudo profundo sobre a estrutura e a construção dos personagens de toda a série “Game of Thrones”.
Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e cineasta. É mestre em Cinema, pela ECA/USP, e doutor em Linguística e Semiótica, pela FFLCH/USP. Autor de sete livros, incluindo “As Paixões na Narrativa” (Editora Perspectiva).
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