As estratégias da série “1899” para engajar o espectador

Conheça as técnicas utilizadas pelos roteiristas de séries internacionais para fisgar, emocionar e impactar o espectador, prometendo e entregando grandes surpresas, além de camadas profundas de personagens que sensibilizam a narrativa com suas paixões

Por Hermes Leal

A palavra de ordem no mundo das séries é o engajamento de sua audiência. O sucesso, de público, crítica e prêmios acontecem em decorrência de um trabalho de roteiro muito bem estruturado para atingir o espectador com algo que o impacte de verdade. Esse engajamento permite aos canais e streamings os raros sucessos que geram muitas temporadas e derivados com outros filmes e séries. Este mês a Netflix lançou a série “1899”, escrita com estratégias utilizadas pelos roteiristas internacionais, técnicas universais, que globalizam a história para capturar a audiência e o engajamento do espectador.

As ferramentas de captura utilizadas pelos roteiristas Jantje Friese e Baran bo Odar, criadores da série de sucesso “Dark”, são basicamente duas. Uma estratégia no nível do discurso, da história narrada, em que se “ocultam verdades” para depois serem reveladas, e que vem formar o “arco” estratégico da ação. E outra estratégia explorada nos níveis de profundidade dos personagens, buscando as origens e os danos que causam seus sentimentos e estados emocionais. A utilização de técnicas desses dois aspectos na história dá a liga necessária para fisgar o espectador logo nos primeiros minutos do primeiro episódio.

A estratégia principal do engajamento está estruturada em um esquema de roteiro, de “prometer” muito no início e “entregar” o que prometeu no final. O espectador é fisgado por estas séries internacionais de sucesso, porque é induzido a uma “expectativa” de que sentirá uma grande potência ao ser surpreendido no fim de sua espera. É preciso uma série de cenas com personagens e objetos com verdades ocultas, que coloque o espectador em estado de espera, até que o que seria segredo seja revelado.

Esse arco de espera pelo inesperado tem uma técnica (implicação x concessão) – que explicaremos mais adiante –, que ajuda a prender e a impactar o espectador na cena reveladora do final. A entrega do prometido ao espectador para que ele se sinta engajado e satisfeito – que é um problema para os roteiristas de séries no Brasil a resolver – precisa ser uma recompensa pela espera. É preciso que a espera tenha um incidente inicial que faça sentido com o fechamento final.

Esses arcos de ação e emocional de todos os personagens, que demarcam o que acontece do início ao fim da história, servem para fisgar e manter preso o espectador com uma estratégia de gerar uma expectativa e uma “espera do inesperado”. Uma espera da surpresa que deverá surgir trazendo “verdades” ocultas que podem ser reveladas a qualquer momento.

A estratégica da surpresa impactando o espectador

A trama de “1899” é um mistério, centrada no que está oculto na jornada passional da médica psiquiátrica Maura Franklin (Emily Beecham), que acorda em um navio transatlântico tocado à carvão, saído da Europa com destino à Nova York, de onde seu irmão desaparecido enviou uma carta dizendo que sabe sobre o que pai fez com ela.

Maura tem lembranças de que esteve presa em uma clínica psiquiátrica pelo pai, e sua sanidade é colocada em questão logo no início da série. No meio da viagem, encontra um navio desparecido há meses, com mais de mil e quinhentas pessoas que sumiram misteriosamente. Ela descobre um garoto sobrevivente, iniciando toda uma série de acontecimentos inexplicáveis que prenderá o espectador.

Os roteiristas oferecem um leque imenso de objetos e situações sem esclarecer o que são. Além do mistério em torno de quem é Maura, se ela é realmente louca e tudo que está acontecendo é fruto de sua sanidade mental, há um segredo em seu enorme pingente no pescoço, e seus braços têm marcas como se tivesse sido amarrada em uma clínica psiquiatra como ela sonha. No mesmo tempo inicial, há uma inquietação no espectador em querer saber quem é o garoto encontrado, por que somente ele estava vivo e bem alimentado, e que fim levou os outros passageiros.

E, ainda, Daniel Solace (Aneurin Barnard), um homem misterioso, sai do mar e entra no navio e passa a proteger Maura e o menino, sendo que sua identidade é um mistério, mas é o personagem que sabe da verdade sobre o que está acontecendo de estranho e os fenômenos inexplicáveis em torno do navio fantasma. Daniel sabe manipular pequenos aparelhos futuristas e digitais, no final do século 19 – tem inseto que abre portas –, e sabe quem é Maura, assim como a identidade do garoto sobrevivente e esquisito que ela tenta salvar. É o que detém o saber que os outros e o espectador não têm.

Existem ainda outros mistérios inseridos pelos roteiristas que deixam o espectador à espera por um esclarecimento, como a descoberta de que todos os passageiros, e não somente Maura, também têm uma carta, de que as bússolas não funcionam sem razão, que o telégrafo sempre passa a mesma mensagem sem sentido, e por que o capitão Eyk Larsen (Andreas Pietschmann) vê sua filha já morta andando no navio encontrado à deriva.

Todos esses mistérios abrem um ARCO particular da surpresa, porque durante os próximos episódios o espectador é colocado em espera do esclarecimento destes mistérios, e quando ele surgir precisa ser diferente do que ele esperava, mas que tenha algum impacto cognitivo para funcionar.

O arco principal, que gera sentido à narrativa em forma de um “macro-arco”, é a palavra “acordar” que Maura ouve em seus sonhos, como se a personagem principal estivesse em um pesadelo e aqueles acontecimentos não existissem. Esse acordar é acompanhado de um off que explica como funciona o cérebro humano, ao ser comparado com o mito da caverna, de Platão, como sendo ambos um lugar de “simulacros”. De falsas realidades. Essa referência é importante para dar sentido ao “arco do acordar”, para que o espectador tenha uma surpresa não porque a verdade apareceu, mas porque ela já estava sendo mostrada de alguma forma, não apareceu do nada. O espectador precisa dessas informações adicionais ao “oculto”, de dicas de que existe algo não revelado mostrando outros eventos.

Esse mito foi usado propositadamente para que, no final, o espectador entenda, no nível cognitivo, o fechamento surpreendente que a revelação da palavra acordar irá lhe impactar, com a verdade até então oculta sobre o sentido desta palavra. Quando a verdade sobre o “acordar” aparecer, o mito da caverna e o estudo do cérebro irá ajudar na “cognição” do espectador com a surpresa, com o não esperado, que estará relacionado ao que é “falso” ou “realidade” da personagem Maura.

Porque o relato desse mito comparando com o cérebro, no início da série, que serve para gerar uma cognição no espectador (que é o reconhecimento da verdade em cima de uma referência já conhecida), e o acordar estão relacionados ao “simulacro existencial” da personagem, que pegará o espectador de forma não esperada nas cenas finais.

Como a própria série explica, o mito é sobre pessoas que viviam em cavernas diante de sombras projetadas, e acreditavam que o mundo se resumia àquelas sombras, por não conhecerem o mundo que existia do lado de fora da caverna. Essa comparação será importante para haver um reconhecimento imediato da verdade oculta pelo espectador, quando ela aparecer no final do arco, revelando quem é Maura, Daniel e o garoto misterioso.

A estratégia dos personagens emocionando o espectador

Já a segunda estratégia, agora nos níveis de profundidade dos personagens, serve para que o espectador seja sugado não mais pela espera, mas pela sensibilização, o sentimento e as emoções. Porque será esse “personagem sensível” que vai emocionar o espectador, e fisga-lo durante o percurso da espera, que está entre a criação e a ocultação da verdade, no arco da surpresa, e a revelação dessa verdade.

Esse recheio da série precisa ser conduzido pela jornada individual de cada personagem em busca de seu “destino”. Além da jornada emocional, é importante, para sugar o espectador, que esses personagens secundários tenham também uma necessidade de estar naquele navio e de chegar à Nova York. Ou seja, o arco emocional de cada personagem está ligado a uma jornada rumo a um destino de realização.

Do ponto de vista das camadas emocionais, em “1899”, todos os principais personagens têm uma jornada de “sofrimentos”, e o que torna um personagem diferente do outro é que cada um sente os efeitos de um tipo de “paixão” em particular. Suas camadas escondem essas paixões que afetam suas mentes e seus corpos, gerando inquietude passional que resulta em suas falas e ações.

A personagem principal, a psiquiatra Maura Franklin, sofre com uma paixão do “luto”, mas que o espectador só irá saber o que a torna inquieta e aflita no final do arco do “acordar”, exatamente nas últimas cenas que fecha a temporada. É uma paixão que fica oculta durante toda a sua jornada. Essa paixão do luto afeta Eyk Larsen, capitão do navio, que sofre também da paixão do luto, pela morte da mulher e das filhas, e por isso vive bêbado, mas essa paixão não fica oculta, é mostrada desde o começo da história. Sua paixão é a mesma de Maura, mas somente no final o espectador saberá, e terá uma cognição imediata em razão de já conhecer o sofrimento do capitão.

Entre outros bons personagens, todos com um mundo sensível em particular, com seu próprio foco para o mundo, existe uma família religiosa ao extremo, em que a personagem principal sofre da paixão da “fé”, da negação da verdade, assim como existe um casal em lua de mel, em que o marido sofre de uma terrível “culpa”, quando deixa um amigo para trás durante uma guerra, e assume o papel de uma pessoa que não era ele. E, ainda, a paixão do “amor” entre dois homens, que se disfarçam de padres, mas são amantes e esperam ter uma vida mais livre nos Estados Unidos.

A cognição e o engajamento final

O engajamento tem um percurso e um fim, e no oitavo e último episódio de “1899” foi preciso entregar ao ansioso espectador o que a série prometeu no primeiro episódio. Que seria surpreendê-lo com “aquilo que ele não esperava”. Essa é uma premissa que está em todas as grandes e premiadas séries internacionais. Todos os grandes mistérios serão elucidados de forma não esperada. No fim, tudo que estava oculto fica esclarecido; onde foram parar os passageiros do navio fantasma, a identidade do menino e do homem misterioso que tenta salvar Maura.

O espectador engajado, que esperou até a última cena da jornada de Maura, terá uma recompensa ao ser surpreendido com aquilo que parecia ser e não é, quando descobrir o que significa o “acordar”. Ao mesmo tempo em que é revelado os mistérios, como o significado da pirâmide que está presente em vários lugares, um segredo que está ligado ao “acordar” de Maura. Mas o grande impacto final (que não vou revelar aqui) é quando se descobre finalmente o significado de sua angústia, que é o seu “luto”, até então oculto.

E, mais ainda, como todos os enigmas que estavam sendo mostrados se relacionavam ao estrago que esse sentimento passional do “luto” acarretou à Maura. Todos os mistérios estavam relacionados aos efeitos que a “paixão” do luto causou, por isso os roteiristas plantaram na história as informações relacionadas ao funcionamento do cérebro para gerar fantasias com as imagens projetadas na caverna de Platão.

Essa técnica narrativa de prender o espectador e ganhar o seu engajamento está relacionada a um arco de implicação de mostrar algo como sendo a verdade que está oculta, para depois, no final, fechar com uma “concessão”, de que parecia que a verdade seria aquela, mas não era, é outra. Está em “1899”, quando o acordar de Maura não era nada do que o espectador esperava, mas também não era desconhecido por ele, até porque esse segredo oculto e revelado no final foi gerado por uma paixão, o “luto”, o mesmo que o espectador vinha acompanhando via sofrimento do capitão Eyk Larsen pela perda da mulher e dos filhos.

Para se fazer um arco de ação e emoção funcionar foi preciso usar a técnica que permite uma perfeita “cognição” do espectador, quando o que estava em segredo foi revelado e precisou ser reconhecido. O espectador precisa “reconhecer” a surpresa para ser impactado e sensibilizado.

O espectador se sente recompensado na espera, porque ele foi preparado para ser atiçado, de forma sensível e cognitiva, a gostar dos personagens e do mistério, ser alimentado nesse gosto, para ser surpreendido no final. É uma construção de roteiro. O final da série, que de longe deixa “Matrix” para trás, só foi possível, porque havia uma preparação para entendermos o “simulacro existencial” de Maura, onde ela gerou e guarda o luto que sente.

Esse esquema está em todas as series de sucesso. Tenho outro artigo explicando como se faz para usar essa teoria da surpresa impactando o espectador, as mesmas aplicadas nos filmes “Roma”, “Coringa” e “Parasita”, e nas séries “Round 6”, “Game of Thrones”, “Big Little Lies” e “Westworld”.

A estratégia de “Westworld”

Em “Westworld” existe um exemplo muito bom que ajudou a engajar o espectador pela surpresa e pela “paixão” dos personagens. O impacto no espectador ocorre quando da revelação, no sétimo episódio, de que o personagem Bernard (Jeffrey Wright) era uma máquina, um robô, e não um humano como o espectador pensava. Do ponto de vista do personagem, o espectador é tocado pela paixão afetando a alma e o corpo dos personagens, como a paixão da “melancolia” em Dolores (Evan Rachel Wood), do luto em Maeve (Thandiwe Newton) e da culpa em Bernard.

O impacto desta surpresa levantou a audiência da série, porque conseguiu atingir o espectador desprevenido. O espectador não imaginava que Bernard fosse um robô, porque, além de um bom cientista, que ajudava a controlar as outras máquinas, ele tinha uma “paixão” da culpa pela morte do filho, uma imagem que lhe causava sofrimento. E os robôs não tem esse tipo de sentimento. Ter paixão “implica” ser humano, mas houve uma “concessão” no final deste arco, como o do “acordar” de “1899”, uma quebra da implicação que surpreendeu o espectador.

Para que esse impacto fosse bem aceito pelo espectador, os roteiristas fizeram uma história paralela à de Bernard, com a personagem Maeve, que mostrava ao espectador que a verdade estava ali bem na frente. Maeve é uma gerente de um bar no velho oeste, que o espectador sabe que é um robô, e que ela também tem uma “paixão do luto” pela perda de uma filha, cujas imagens sempre lhe vêm à mente e lhe causam sofrimento. Essa informação paralela leva à informação cognitiva de que tanto falamos. A existência de um robô que sofre ao lado de Bernard, ajudou de alguma forma a impactar o espectador.

É a mesma técnica usada em “1899”, com o luto de Maura causando surpresa no espectador, porque ele já vinha sendo trabalhado para receber essa informação, acompanhando o luto do capitão Eyk Larsen, que também tem uma “paixão” do luto lhe afetando, e que o espectador acompanha seu grande sofrimento que sente pela morte trágica da família. Sentimento que estão em Maura e o espectador não vê.

Quanto à questão do simulacro de Maura, que mudou o mundo por causa de uma perda, temos a mesma técnica de trabalhar o “simulacro existencial” do personagem como o efeito do luto em Wanda, de “WandaVision”. Nesta série, o sofrimento pela morte do marido e o desejo por filhos faz Wanda construir um simulacro de uma família feliz (com o marido e os filhos vivos) de acordo com o seu desejo. E, da mesma forma como Maura, a verdade aparece no final e impacta o espectador, que descobre que toda aquela “Matrix” tinha sido obra da sua “paixão” do luto.

O engajamento das séries brasileiras

No Brasil, as séries brasileiras ainda estão longe de ter um padrão global, como são as boas séries internacionais, feitas na Coreia, na França ou no Estados Unidos. Não temos sucesso nas séries, como temos nos filmes, exatamente pela dificuldade de os roteiristas brasileiros desenvolverem dramas. O espectador brasileiro se acostumou a ser fisgado por três tipos de gêneros, o do “sexo”, o da “favela/presídio” e o da comédia. Basta ver as séries brasileiras no Globoplay, na Netflix e na HBO, que são de sexo ou violência. Já a comédia é um terreno para o cinema, para os filmes, e que está condicionada aos atores de humor e comédia. Mas e o drama? Não tivemos nada que conquistasse o público, pela força dos personagens, como ocorre com estas séries internacionais.

Esse tipo de engajamento temático destes três gêneros, além de não globalizar as séries, não tem a mesma força do engajamento pela jornada dos personagens e pelas surpresas prazerosas que o espectador tem com ao ser surpreendido. Esse esquema da surpresa é universal, assim como as emoções dos personagens, em que em toda a humanidade (menos no Brasil) existe um reconhecimento do sofrimento das paixões como algo de bom, que pode salvar as pessoas, e não de uma “cura”, em que nossa dramaturgia está se apoiando. Nossas séries e filmes têm mais um gênero, o da “cura”, e mais uma vez estamos deixando de lado a dramaturgia que o mundo inteiro conhece, em troca de uma mágica para resolver os problemas emocionais e de vida dos personagens.

Essas teorias novas aqui expostas foram extraídas de uma ciência nova, do século 21, que vem da Semiótica das Paixões e da Semiótica Narrativa, de A. J. Greimas, e que foram aplicadas ao cinema por mim. Quem tiver interesse em escrever séries mais globalizadas, esse conhecimento está disposto em um livro e em vídeos (https://screenwriteronline.com/br), com tradução para inglês, francês, espanhol e coreano, já acessados por leitores e alunos do mundo inteiro.

 

Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. É mestre em Cinema pela ECA/USP e doutor em Linguística e Semiótica pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na Coleção Estudos da Editora Perspectiva.

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