“Licorice Pizza” é uma comédia que merece brilhar na festa do Oscar

Por Maria do Rosário Caetano

“Licorice Pizza”, o nono longa-metragem do californiano Paul Thomas Anderson, é a estreia imperdível dessa semana. O filme, que recebeu apenas três, mas importantes, indicações ao Oscar (merecia mais, em especial o de melhor atriz para a encantadora Alana Haim), estreia nessa quinta-feira, 17 de fevereiro, e tem tudo para transformar-se em um cult movie.

O candidato a melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro original foi talhado para cativar a moçada esperta. Tem personagens jovens e atirados, história de amor cheia de percalços, sequência de aventura de tirar o fôlego (e com mulher ao volante), diálogos descoladíssimos, Sean Penn em momento de iluminação, Bradley Cooper na pele de um garanhão-canastrão irresistível e uma agente de artistas emaconhada, dessas de antologia. Se tudo isso não bastasse, há ainda um protagonista – Cooper Hoffman – rechonchudo, feioso, talentoso e carismático como o pai, o saudoso Philip Seymour Hoffman (1967-2014).

Philip, nunca é demais lembrar, foi parceiro de PTA (Paul Thomas Anderson) em muitos filmes, atuou como coadjuvante em diversos outros, até conquistar o Oscar de melhor ator por sua notável interpretação de (Truman) “Capote” (Bennett Miller, 2006). Morreria de overdose, na banheira de seu apartamento em Manhattan, aos 46 anos, deixando três filhos. O mais velho, Cooper Hoffman, tinha pouco mais de 10 anos.

Para reviver muitas de suas experiências de adolescente (e também as de amigas e amigos), PTA convocou a cantora Alana Haim, filha de uma de suas professoras na vida real, e o filho do amigo morto (na ocasião das filmagens, Cooper contava 15 anos). Acertou na mosca. Os dois jovens dão ao filme frescor contagiante. Nenhum dos dois é bonito. Fogem totalmente ao padrão do cinema juvenil made in USA, com suas louras (e galãs) de dentes perfeitos, cabelos louríssimos e roupas grifadas.

Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman) são jovens comuns, cheios de sonhos e prontos para dar muitas cabeçadas até encontrar algum rumo. A narrativa, que dura velozes 134 minutos, começa no colégio onde Gary estuda. É dia de registrar foto na carteira estudantil. Ela, que tem 25 anos, assessora o fotógrafo. Ele, um pirralho gorducho, tem 15 e mesmo assim atreve-se xavecar a moça. Ela o esnoba. Ele insiste. Tira onda de ator (integra espetáculo meio ridículo, comandado por coroa muito da moralista, que mobiliza garotos de pijama).

Gary Valentine faz tudo para conseguir um encontro com a morena. Ela banca a difícil. Ele fornece o endereço de um bar. Volta para casa e garante ao irmão mais novo que encontrou a mulher de sua vida e que vai casar-se com ela. Custe o que custar.

O que veremos até o final do filme é uma história de encontros e desencontros, protagonizada por um casal improvável. Ele, um empreendedor que se acha muito do esperto e tenta se ajeitar economicamente vendendo colchões de água. Ela, um espírito prático, decidida e dona do próprio e longilíneo “nariz judeu”. Por falar na origem judáica da personagem, é no seio do núcleo familiar de Alana que acontecerá uma das melhores sequências de “Licorice Pizza”. Durante e após jantar desenhado para ser dos mais românticos, tudo tomará rumo inesperado e acabará envolvendo pênis, prepúcio e até ateísmo. O resultado é digno de um filme de Woody Allen (mas com tempero “Boggie Nigths”). De matar de rir.

PTA, que é o autor solo do roteiro, mostra-se um devoto de Nossa Senhora do Contexto, a santa protetora do igualmente bem-humorado Luis Fernando Verissimo. Quando os negócios de Gary, ajudado por Alana, parecem se aprumar e ele começa a vender colchões de água, vem a terrível crise do petróleo de 1973, aquela decretada pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), que arremessou os preços nas alturas. Os carrões rabo de peixe dos desvairados consumidores californianos (e de várias partes do mundo) começam a fazer filas em postos de gasolina e a conviver com grave falta de combustível. A vida urbana transforma-se numa bagunça.

E o que os colchões de água têm a ver com isto, indaga o inocente Gary. A esperta Alana vai explicar tudo ao tonto rapaz. Até ele cair na real, o filme nos brindará com sequências lisérgicas. Bradley Cooper dará vida a um playboy-garanhão que se diz namorado de Barbra Streisand. Atrás de combustível, em seu chamativo conversível vermelho e disposto a cantar qualquer portadora de saia ao alcance de sua vista, ele detonará a fase de “ação” dessa comédia rara e das mais inteligentes. Mas melhor ainda que o personagem do galã californiano é o de Sean Penn (Jack Holden). Que fica ainda mais fascinante quando em dupla com seu parceiro Rex Blau, interpretado pelo músico e ator Tom Waits.

Não resulta claro na magnífica sequência protagonizada por Sean Penn que ele teve como fonte de inspiração o galã William Holden, o roteirista enredado por Norma Desmond (Glória Swanson) em “Crepúsculo dos Deuses” (Billy Wilder, 1950), passados 20 e poucos anos. O que vemos na tela é um galã, veterano sim, seduzindo Alana, que deseja ser atriz. Há evidentes traços de Holden no personagem, louco por aventuras na África, beberrão e mulherengo. Dele e de outros homens à moda antiga, aventureiros como John Huston. A loucura que Rex Blau (Waits formidável!) proporá ao amigo é um retrato de um tempo que passou, a louca década de 1970.

Em “Booggie Nights”, PTA recriou o mundo do cinema erótico californiano. Em “Licorice Pizza”, o cinema também está presente, pois tanto Gary, quanto Alana sonham em ser atores. Ela se submeterá a certos rituais para conseguir algum papel (entrevista, testes etc.), mas as coisas não darão muito certo. Ele descobrirá outro empreendimento profissional-comercial no mundo das máquinas pinball, esse inferno sonoro do mundo moderno. Haverá, ainda, curiosa trama eleitoral, com candidato à prefeitura da região de San Fernando, onde PTA nasceu e cresceu. E que terá Alana como importante assessora política. Mas tudo ficará em segundo plano. Pois Gary só tem um objetivo na vida: ser amado por Alana. Resta saber se moça, tão madura, vai unir-se ao gorducho espinhento e imaturo.

Ao chegarmos ao fim dessa nova e imperdível viagem cinematográfica do diretor de “Magnólia” – tão deliciosa quanto “Boggie Nights” – entenderemos porque veículos como Positif, Les Inrock, Bande à Part, Le Monde e Cahiers du Cinéma (que encapou sua edição número 783, de janeiro último, com imagem de Alana & Gary) lhe atribuíram a cotação máxima: 5 estrelas. Mesmo caminho adotado por mais 13 veículos de grande prestígio na cinéfila França. Outros onze foram mais rigorosos: (só) quatro estrelas. Nenhum veículo se atreveu a colocar-se abaixo dessa generosa marca estelar.

Saiba, pois, leitor, que há muito, mas muito tempo, Hollywood não nos presenteava com uma comédia tão inteligente e prazerosa. Parodiando o título brasileiro de “Boggie Nights”: é “Prazer sem Limites”.

 

Licorice Pizza
EUA, 134 minutos, 2021
Diretor: Paul Thomas Anderson
Elenco: Alana Haim, Cooper Hoffman, Sean Penn, Bradley Cooper, Tom Waits, Benny Safdie, George DiCaprio, Skyler Gisondo, John C. Reilly, Emma Dumont, Maya Rudolph, Mary Elizabeth Ellis, Nate Mann, John Michael Higiggins, Danielle Haim, Mordechai Haim
Fotografia: Michael Bauman
Música: Jonny Greenwood
Indicado ao Oscar de melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro original

 

FILMOGRAFIA
Paul Thomas Anderson (Califórnia, EUA, 26/06/1970)

1996 – Jogada de Risco
1997 – Boogie Nights – Prazer Sem Limites
1999 – Magnólia
2002 – Embriagado de Amor
2007 – Sangue Negro
2012 – O Mestre
2012 – Vício Inerente
2017 – Trama Fantasma
2021 – Licorice Pizza

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