Cine TVT apresenta filmes de João Moreira Salles e Toni Ventura

Por Maria do Rosário Caetano

Os cineastas João Moreira Salles e Toni Venturi terão alguns de seus principais filmes exibidos pela TVT (TV dos Trabalhadores) ao longo dos próximos oito sábados.

“Notícias de uma Guerra Particular”, que Salles dirigiu em parceria com Kátia Lund, abrirá a mostra na noite desse sábado, 16 de outubro, às 21h30. “Entreatos” e “No Intenso Agora”, dois dos mais importantes documentários do realizador carioca, serão exibidos nos dias 23 e 30.

De 6 de novembro a 4 de dezembro, serão apresentados cinco longas-metragens de Toni Venturi – duas ficções (“Cabra Cega” e “A Comédia Divina”) e três documentários (“O Velho”, sobre Prestes, “Dia de Festa” e “Dentro da minha Pele”).

Antônio Pacheco Jordão, programador cinematográfico da TV dos Trabalhadores, conta que a emissora está tão satisfeita com os resultados da sessão Cine TVT, exibida aos sábados, que “prepara outra janela, o Cinema Especial, dedicada a filmes programados em datas comemorativas”.

As sessões especiais começaram com “Coragem! As Muitas Vidas de Dom Paulo Evaristo Arns”, de Ricardo Carvalho, em comemoração ao centenário de nascimento do arcebispo de São Paulo”, e prosseguiram com “Paulo Freire Contemporâneo”, de Toni Venturi, no dia exato do nascimento do pedagogo da libertação (19 de setembro).

No dia 12 de outubro, foi exibido “Lavoura Arcaica”, recriação cinematográfica do romance homônimo de Raduan Nassar, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e lançada há exatos 20 anos.

O público da TVT é de nicho, mas sua programação vem repercutindo no meio de trabalhadores sindicalizados e de produtores culturais. “Realizamos” – lembra Jordão – “uma mostra de filmes produzidos no ABC Paulista no final da década de 1970, começo dos anos 80, com boa resposta do público”.

O programador do Cine TVT comemora, nesse momento, a exibição dos filmes de João Moreira Salles e de Toni Venturi. Afinal, a emissora exibirá três dos cinco filmes do discreto cineasta carioca, hoje ocupado com a revista Piauí e mergulhado em processo de realização de longa documental sobre a Amazônia, projeto que realiza sem nenhuma pressa.

Dizer que João Moreira Salles, de 59 anos, só dirigiu cinco longas (ou quatro e meio, se levarmos em conta que “Notícias de uma Guerra Particular” é um média-metragem), estaremos ignorando parte substantiva de sua produção audiovisual, iniciada em 1987, em parceria com o irmão, Walter Salles. Juntos, eles dirigiram a série documental “China, o Império do Centro”, exibida pela Rede Manchete. Depois, a dupla produziu “América”. Seguiram-se curta (“Poesia é Uma ou Duas Linhas e por Trás uma Imensa Paisagem”, sobre Ana Cristina César) e documentários, como “Futebol”, parceria com Arthur Fontes, e a série “6 Histórias Brasileiras”, na qual João dirigiu “O Vale” e “Santa Cruz”, ambos em parceria com Marcos Sá Corrêa.

Como produtores (na Videofilme), os irmãos João e Walter Salles somam dezenas de títulos, em especial a fase derradeira de Eduardo Coutinho (1933-2014), iniciada em 2001 com “Babilônia 2000”, prosseguindo até “As Canções” e tendo no recheio os notáveis “Edifício Master” e “Jogo de Cena”. Registre-se que, com a trágica morte de Coutinho, João finalizou “Últimas Conversas”, trabalho que o realizador de “Cabra Marcado para Morrer” não tivera tempo de concluir.

Nessa quinta-feira, Juca Kfouri conversará, em seu programa “Entre Vistas” (TVT, 22h), com o diretor de “No Intenso Agora”, hoje um dos mais festejados documentaristas do país.

“Notícias de uma Guerra Particular” nasceu do desejo de João e Kátia Lund de abordar, com a maior complexidade possível, o grave problema da violência urbana no Rio de Janeiro. Alcançaram seu intento ao mobilizar novas (e corajosas) vozes capazes de nos ajudar a entender a “guerra particular” travada entre o morro e o asfalto. Depoimentos esclarecedores como o de Hélio Luz, então chefe da Polícia do Rio, do escritor Paulo Lins e do policial Rodrigo Pimentel, do Bope (Batalhão de Operações Especiais), somar-se-iam ao testemunho de Gordo (Carlos Gregório), um dos fundadores do Comando Vermelho, de moradores das favelas e de vários (pequenos) serviçais do tráfico.

Em momento crucial do filme, lembra-se que, na função de atendente de farmácia, um jovem ralará meses e anos a fio para conquistar o que o tráfico lhe dará em poucas semanas.

O filme de Kátia e João inseminou todos os documentários e ficções que viriam a seguir no ciclo conhecido como “favela movie”: “Cidade de Deus”, que concorreria a quatro Oscars da Academia de Hollywood, “Ônibus 147” e os dois “Tropa de Elite”, de José Padilha, “Última Parada: 174”, de Bruno Barreto, “Alemão”, de José Eduardo Belmonte, e o ainda inédito “Pacificado”, de Paxton Winters. Entre muitos outros.

Depois de “Notícias de uma Guerra Particular” (e de “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, que contou com fundamental parceria com Kátia Lund), nomes como os do romancista Paulo Lins, do policial Rodrigo Pimentel, do sociólogo Luiz Eduardo Soares e da antropóloga Alba Zaluar ganhariam imenso destaque e espaço na mídia. E o Bope se transformaria numa idealizada “reserva moral” (e armada) do país.

“Notícias…” resistiu ao tempo. Passados 22 anos de seu lançamento, o filme ainda consegue iluminar muitos aspectos da violência brasileira. Sua presença na lista de melhores documentários brasileiros de todos os tempos (em sétimo lugar), publicada em livro pela Abracine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), comprova seus valores estéticos e ousada abordagem temática.

O longa documental “Entreatros” nasceu para acompanhar a quarta campanha do candidato Luiz Inácio Lula da Silva – derrotado uma vez por Collor e duas vezes por FHC – à presidência da República. Com o diretor de fotografia Walter Carvalho na retaguarda, João Moreira Salles percorreu o país, com liberdade para filmar comícios, encontros, debates etc. O candidato finalmente triunfaria.

Além de João, que acompanhou a campanha eleitoral colado ao candidato petista e a seus principais assessores, a Videofilme produziu o longa documental “Peões”, de Eduardo Coutinho (exibido como “filme-síntese”, pela TVT, na Mostra do Ciclo Metalúrgico). A proposta do autor de “Santo Forte” era bem diferente da de João. Caberia a ele ouvir os operários que atuaram com Luiz Inácio da Silva, o Lula, no dia-a-dia do Sindicato de São Bernardo do Campo e nas greves do ABC Paulista.

“Entreatos” causou certo desapontamento nos que aguardavam um épico operário. Ou seja, a apoteose da chegada de um metalúrgico, migrante nordestino pobre, sem grande instrução formal, à presidência da República. Rever o filme, hoje, em outro contexto, será, não há dúvida, experiência das mais instigantes.

O terceiro longa documental de João Moreira Salles programado pelo Cine TVT é nada menos que arrebatador. Durante 2 horas e 17 minutos, o cineasta revê, com imagens poderosas e reveladoras, os acontecimentos que abalaram o mundo na fervilhante década de 1960. Das manifestações do maio francês, que sacudiram Paris e Lyon, passando pelo maoísmo (que vicejou na Europa, estimulando jovens a carregarem seu exemplar do “Livro Vermelho”), pela Primavera de Praga e pelo Brasil de 1968, ano da morte do estudante Edson Luiz e da Passeata dos 100 mil.

Como fizera em “Santiago”, filme sobre o mordomo da família Moreira Salles, João se coloca como partícipe do filme. “No Intenso Agora” é narrado em primeira pessoa. O cineasta criou coragem e usou a própria voz como fio de memórias (em “Santiago”, ele transferira a tarefa a um de seus três irmãos).

João resgatou – em “No Intenso Agora” – imagens registradas por sua mãe e amigos em viagem à China de Mao Tse-Tung. O documentário dura, sim!, mais de duas horas, mas é tão vertiginoso e fascinante, que não percebemos o passar do tempo. Sentimos o desejo de ver mais (e tão surpreendentes) imagens recontextualizadas à sensibilidade de nosso tempo. Será, sempre, um prazer (re)ver jovem militante parisiense atendendo, ao telefone, a mãe aflita que procura pelo filho rebelde. O riso será inevitável.

O Cine TVT vai exibir, também, cinco dos nove longas-metragens de Toni Venturi, paulistano de 65 anos. O primeiro será “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes”, que marca a estreia do realizador no formato de longa duração.

Venturi, que estudou Cinema no Canadá, chega a bom termo em seu intento – desenhar um retrato multifacetado do militante comunista, nascido no Rio Grande do Sul, em 1898. O filme foi o vencedor dos festivais É Tudo Verdade, de São Paulo, e da Mostra de Cinema de Cuiabá, além de ter ganho o Prêmio Resgate Histórico, da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Para enriquecer (e contextualizar) rico material oriundo de intensa pesquisa de imagens, Toni reuniu depoimentos do próprio Prestes, de Oscar Niemeyer, Fernando Morais, Leonel Brizola, Eliane Brum, Carlos Heitor Cony, Fernando Gabeira, Roberto Freire, Ferreira Gullar e William Waack.

A trajetória de Luiz Carlos Prestes se confunde com a história da República brasileira no século XX. Nascido em Porto Alegre, ele morreria aos 92 anos, em 1990. O Velho secretariou o PCB (Partido Comunista Brasileiro) de 1943 a 1980 (portanto, por longos 37 anos). Seu reconhecimento começou na década de 1920, quando liderou a Coluna Prestes. Seria eleito senador pelo PCB em 1945. A mesma eleição elegeria Jorge Amado para o cargo de deputado federal, ambos pelo Partido Comunista. Mas a experiência legislativa dos dois duraria muito pouco, pois o PCB seria posto na ilegalidade.

O documentário de Venturi começa com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e passa por alguns dos momentos mais complexos da vida do político gaúcho. Prestes foi tema de biografia escrita pelo baiano Jorge Amado sob o esperançoso (e idealizado) título de “O Cavaleiro da Esperança”. Ao longo de 104 minutos, serão lembrados exílios e prisões do Camarada, o levante de 1935 (a chamada “Intentona Comunista”), o “justiçamento” da adolescente Elza Fernandes (acusada de traição), a entrega de Olga Benário, militante comunista alemã e mulher de Prestes, aos nazistas (ato do Governo Vargas), os anos de exílio vividos na URSS e o regresso, com a Anistia de 1979, ao Brasil.

“Cabra Cega”, segunda ficção de Toni Venturi (a primeira foi “Latitude Zero”) é um drama político ambientado no tempo em que jovens brasileiros organizavam-se em grupos (célula ou aparelhos) armados para enfrentar a ditadura militar (1964-1984). Thiago (Leonardo Medeiros) é um deles. Ferido em emboscada, é levado ao apartamento do arquiteto Pedro (Michel Bercovitch). Lá, ficará aos cuidados de Rosa (Débora Duboc), seu único contato com o mundo exterior.

O filme, que começa com imagens de arquivo e mostra Che Guevara morto na Bolívia, pode ser resumido por frase (dedicatória) que o encerra: “aos muitos brasileiros cabras-cega que tentaram atravessar a escuridão para tomar o céu de assalto”. No elenco, além dos dois protagonistas, estão Jonas Bloch, Milhem Cortaz, Luciano Quirino, Walter Breda, Renato Borghi, Odara Carvalho e Tiago Moraes.

“Dia de Festa” é um documentário sobre a luta de trabalhadores Sem-Teto pelo direito à moradia. Venturi concebeu o filme em parceria com Pablo Georgieff. A dupla escolheu quatro mulheres Sem-Teto para, através de suas vivências e ações (dentro de movimentos coletivos), desenhar fascinante retrato da luta popular por direito dos mais elementares – ter uma casa, um teto, para viver dignamente.

Neti, Silmara, Janaína e Ednalva terão papel importante na organização do “dia de festa”, ou seja, aquele momento (outubro de 2004) em que seriam deflagradas sete ocupações simultâneas de moradias abandonadas na megalópole paulistana. Um dos melhores filmes do atuante realizador, que fez da ação política um dos componentes de seu trabalho.

O longa mais recente de Venturi – “Dentro da Minha Pele” – também foi realizado em parceria. Dessa vez com a socióloga afro-brasileira Val Gomes. A dupla empreende poderosa reflexão sobre o racismo brasileiro e dá voz a nomes conhecidos como a socióloga Suely Carneiro, a psicóloga Cida Bento, o músico Solloma Salomão, o professor da UFABC Jessé Souza e o tenente-coronel aposentado Adilson Paes, estudioso das causas da violência policial. Eles se somam a rappers, slammers, modelos, artistas plásticos, arquiteta, médico, garçom, estudantes, doméstica e funcionários públicos. Com montagem dinâmica e uso de recursos gráficos, o filme se distancia dos tradicionais “cabeças falantes” e consegue mobilizar (e enriquecer) a experiência cívica do espectador.

“A Comédia Divina”, que recria o conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, encerra a temporada que o Cine TVT dedica a Toni Venturi e a João Moreira Salles. Para incursionar no difícil terreno da comédia, Venturi adaptou a corrosiva narrativa machadiana em parceria com os roteiristas José Roberto Torero, Marcus Aurelius Pimenta e Carolina Fioratti.

O conto de Machado, publicado no livro “Histórias sem Data” (Ed. Garnier, 1884), foi transportado para o mundo contemporâneo. O Diabo (Murilo Rosa) anda em baixa. Preocupado, ele decide abrir sua própria igreja. A seus seguidores, tudo que é proibido por outras denominações religiosas, será permitido. De forma que os fiéis serão estimulados a liberar seus instintos mais primitivos e, assim, realizar suas fantasias, antes tão reprimidas.

No intento de propagar a ação de sua igreja, o Diabo usará a televisão como veículo de propaganda. O moderno e tecnológico Satanás instalará a desordem e o caos.

No elenco, estão Monica Iozzi, Thiago Mendonça, Juliana Alves, Dalton Vigh, Zezé Motta, Débora Duboc, Thogum, Pascoal da Conceição e Marco Luque. Apesar da nobre matriz literária e da qualidade dos créditos artísticos e técnicos, o filme não atingiu sua intencão de resultar em hilária “comédia divina”. Mas Toni Venturi tem conseguido, com grande empenho, equilibrar-se entre o cinema ficcional e o documental.

 

PROGRAMAÇÃO

Dia 16/10 – “Notícias de uma Guerra Particular” (1999, 57′), de João Moreira Salles e Kátia Lund
Dia 23/10 – “Entreatos” (2004, 117′), de João Moreira Salles
Dia 30/10 – “No Intenso Agora” (2017, 137′), de João Moreira Salles
Dia 06/11 – “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes” (1997, 105’), de Toni Venturi
Dia 13/11 – “Cabra-Cega” (2004, 107’), de Toni Venturi
Dia 20/11 – “Dia de Festa (2005, 76’), de Toni Venturi e Pablo Georgieff
Dia 27/11 – “Dentro da Minha Pele” (2020, 86′), de Toni Venturi e Val Gomes
Dia 04/12 – “A Comédia Divina” (2017, 98′), de Toni Venturi

 

FILMOGRAFIAS

João Moreira Salles (Rio de Janeiro, RJ, 27-março-1962)

1999 – “Notícias de uma Guerra Particular”, parceria com Kátia Lund
2003 – “Nelson Freire”
2004 – “Entreatos”
2006 – “Santiago”
2017 – “No Intenso Agora”

Toni Venturi (São Paulo, SP – 21-novembro – 1955)

1997 – “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes”
2001 – “Latitude Zero”
2004 – “Cabra-Cega”
2005 – “Dia de Festa”, parceria com Pablo Georgieff
2007 – “Rita Cadillac: A Lady do Povo”
2010- “Vocacional, uma Aventura Humana”
2011 – “Estamos Juntos”
2017 – “A Comédia Divina”
2020 – “Dentro da Minha Pele”, parceria com Val Gomes

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