Memórias de Festivais
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue, nessa semana, série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais brasileiros (ou internacionais).
A quinta dessas lembranças tem o o Festival de Veneza como cenário. O ano era o de 2000. O mais famoso dos festivais italianos – um dos três mais importantes do mundo, junto com Cannes e Berlim – realizava sua edição de número 57. Em competição, filmes de todos os cantos do planeta. A América Latina se fazia representar por “Plata Quemada”, de Marcelo Piñeyro, baseado em romance homônimo de Ricardo Piglia, com os belos e talentosos Leonardo Sbaraglia e Eduardo Noriega vivendo incendiário amor homoafetivo. O Irã participava com “O Círculo”, de Jafar Panahi, que ganharia o Leão de Ouro.
Mas o filme que mais sensação causou na Bienale veneziana foi “A Ilha”, de Kim Ki-duk. E olhe que havia concorrência de peso: “O Fantasma”, do português João Pedro Rodrigues, drama erótico protagonizado por coletor de lixo que se apaixonava obsessivamente por um motoqueiro, dera o que falar.
Em setembro de 2000, Kim Ki-duk tinha 39 anos e estava iniciando o auge de sua trajetória artística. Nascido em Bonghwa-gun, na Coreia do Sul, em 1960, não era filho nem irmão de artistas. Só que os festivais (e a revista Cahiers du Cinéma) não tiravam os olhos do cinema asiático. Veneza, por influência de Marco Muller, um de seus principais curadores, mostrava-se o evento mais receptivo aos filmes vindos da China, Coreia e países da antiga Indochina.
“A Ilha” era o quinto longa-metragem de Kim Ki-duk. Os quatro anteriores não haviam alcançado grande repercussão no Ocidente. Pouco se sabia sobre o realizador e seu filme. Sua biografia não era muito comum no meio cinematográfico. Estreara tarde no audiovisual (aos 33 anos). Comprara sua primeira câmera com recursos auferidos em seu trabalho como operário em refinaria de petróleo. Era filho de pais muito pobres e não recebera educação especial no campo artístico ou da técnica cinematográfica.
O filme que o colocou no centro da onda asiática era um drama erótico, em clima de suspense, com poucos diálogos, passado num lago isolado, onde homens pescavam em pequenas embarcações. Uma jovem, Ji-Heen (Suh Jung) atua no local vendendo iscas, comida e, ocasionalmente, seu corpo. Um dia ela se apaixona por Hyun-Shik (Kim Yu-seok), um fugitivo da polícia. Desesperado e vulnerável, ele inicia com a moça uma complexa relação sadomasoquista.
E aí voltamos ao dia-a-dia do Festival de Veneza de 2000, a grande vitrine de “A Ilha” e base de lançamento de Kim Ki-duk no disputadíssimo mercado de cinema de arte e ensaio. Quase dois mil jornalistas e críticos lotavam a imensa Sala Pala Galileo, espaço destinado às sessões de imprensa. As projeções aconteciam de manhã e eram seguidas de coletiva de imprensa com diretor e equipe (atores e técnicos). À noite, a sessão de gala, com os convidados vip, vestidos de griffe e portando joias e “tacones lejanos” e os flashes alucinados dos fotógrafos. No luxuoso Palácio do Cinema, claro!
Houve um momento, na sessão de imprensa, em que ouvimos gritos e eles não vinham da tela, nem das sessões de sexo sadomasoquista da vendedora de iscas e de seu amante em fuga da polícia. Elas vinham de jornalistas angustiadas com o que viam na tela. Uma delas desmaiou e teve que ser socorrida. As luzes foram acesas e a sessão interrompida. Depois do socorro médico prestado, as imagens (e a angústia) voltaram à imensa tela.
E o que causou gritos e desmaio na sessão de imprensa?
Para relembrar aquela manhã veneziana, temos que recorrer ao spoiler (não leiam, portanto, as próximas linhas aqueles que planejam assistir ao quinto longa de Kim Ki-duk).
Depois que um dos personagens engolia uma fieira de anzóis (sim, aquela parte metálica que carrega a isca e fisga o peixe), a moça decidia por gesto tão transgressor quanto, mas escolheria, ao invés da boca, a vagina. As jornalistas não aguentaram deparar-se com a brutalidade de tal imagem em parte tão íntima do corpo feminino. A ponto de uma delas desfalecer e necessitar de cuidados médicos.
Dali em diante, não se falou em outra coisa. O filme-escândalo de Veneza 2000 foi “A Ilha”. Outros filmes de Kim Ki-duk chegariam aos festivais e aos cinemas de arte. Alguns seguiriam cultivando a “estética da dor”, que tanto o atraía. Outros tomariam caminhos mais líricos.
O cineasta teve sérios problemas com códigos éticos e morais de seu país – a Coreia do Sul. Da versão exibida em Veneza (a integral), ele foi obrigado a retirar três minutos. Só aí o filme teve distribuição mundial autorizada. Em 2011, portanto uma década depois da experiência veneziana, Kim Ki-duk relembrou, num documentário – “Arorang” – suas aventuras e transgressões cinematográficas.
A carreira do “especialista em condutas de choque” foi breve. Ele morreu em 11 de dezembro de 2020, vítima de Covid-19, em Riga, na Letônia, ex-República Soviética (onde nasceu Sergei Eisenstein). Ia completar, dali a nove dias, 60 anos. Deixou quase 30 filmes, sendo os mais conhecidos – além de “A Ilha” – “Endereço Desconhecido” (2001), o belo “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” (2003), “Samaria” (vencedor do Urso de Prata em Berlim) e “A Casa Vazia” (ambos de 2004), “O Arco” (2005), “Time – O Amor Contra a Passagem do Tempo” (2006), “Fôlego” (2007), “Pietá”, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza 2012, “Moebius” (2013), “Dente por Dente” (2014), “Stop” (2015), “A Rede” (2016) e “Humano, Espaço, Tempo e Humano” (2018). Mas a onda e o poder de chocar se esvaíram e os filmes do cineasta já de há muito haviam sumido do mercado brasileiro. E dos festivais da grandeza de Cannes, Veneza e Berlim.