“Brasileiríssima” registra o impacto da telenovela na vida cotidiana do país

Por Maria do Rosário Caetano

O título é curto, instigante e certeiro: “Brasileiríssima”. Assim, André Bushatsky, de quem pouco sabemos – apenas que dirigiu o longa documental “A História do Homem Henry Sobel” – batizou seu segundo filme, estreia do próximo dia nove de junho, nos cinemas. O subtítulo é bem esclarecedor: “Um Olhar sobre o Impacto Social e Cultural da Telenovela”.

Quem acompanha os folhetins desde que tornaram-se paixão nacional, a partir dos anos 1960, vai interessar-se, e muito, por “Brasileiríssima”. Afinal, poderá recordar-se de sucessos como “ O Direito de Nascer”, “Beto Rockfeller”, “Irmãos Coragem”, “Uma Rosa com Amor”, “O Bem Amado”, “Ossos do Barão”, “Pecado Capital”, “Escalada”, “Pai Herói”, “Gabriela”, “Dancin Days”, “Tieta”, “Roque Santeiro”, “Vale Tudo”, “Pantanal” (mesmo que em citação fugaz!), “O Clone”, “Explode Coração”, “Mulheres Apaixonadas”, “Laços de Família”, “Cheias de Charme”, “Avenida Brasil” etc e etc. Como se vê, 99% produções da Rede Globo de Televisão. Até porque o filme é um documentário chancelado pela Globo Filmes, Globonews e Canal Brasil.

Como realizar um longa-metragem sobre esta verdadeira paixão nacional sem recorrer aos mega-sucessos da “Hollywood brasileira”? A seu cast milionário? A seu arquivo valioso e muito bem guardado?

OK, a Globo venceu no ramo das telenovelas. O que não significa que todo documentarista lhe deva submissão e subserviência. André Bushatsky, que não revela idade, nem local de nascimento, nem sua formação profissional (nada enfim do que costuma figurar em currículos de profissionais do audiovisual), pelo menos tentou sair do lugar comum. Tenham paciência, pois verão alguns parágrafos abaixo como isso se deu. “Brasileiríssima” é um típico “cabeças falantes”. Costura dezenas e dezenas de depoimentos. A maioria com imagens e vozes óbvias – Boni, Lima Duarte, Sílvio de Abreu, Aguinaldo Silva, Regina Duarte, Tony Ramos, Denise Saraceni, Jaime Monjardim, Reynaldo Boury, Glória Perez, Dennis Carvalho, Ricardo Waddington, Mauro Mendonça Filho, José Luiz Villamarim. OK. Todos estes nomes foram artífices dos melhores momentos da telenovela brasileira. Alguns brilham. Caso de Boury, que conta história das mais deliciosas, tendo Lima Duarte como protagonista. Numa novela ao vivo, o futuro Zeca Diabo deveria receber uma carta, ler o que ela continha (um segredo importantíssimo para a trama), abrir uma gaveta, pegar uma caixa de fósforo e queimar a missiva. Só que o contrarregra esqueceu-se de colocar o material incendiário no devido local. Lima, sem alternativa, rasgou a carta. O ator que contracenaria com ele entrou em cena e comentou: “Hum, estou sentindo um cheiro de papel rasgado!!!!!”.

Outra história de grande importância: a primeira versão de “Roque Santeiro”, com Lima Duarte (como Sinhozinho Malta) e Betty Faria (como Viúva Porcina), iria ao ar em 1975. Foi interditada. A desculpa formal prendia-se à proximidade entre um puteiro e uma igreja, o que feria a moral e os bons costumes. Mas a verdade era bem outra: os militares haviam grampeado o telefone de Nelson Werneck Sodré (1911-1999) e ouviram conversa entre ele e o dramaturgo Dias Gomes. Este contava ao militar e historiador marxista, que sua nova telenovela era uma recriação de sua peça teatral “O Berço do Herói”, interditada pela Censura.

Registremos mais uma só história, também muito boa, contada pelo filme (quem achar que é spoiler demais, que salte este parágrafo, mas ele será preservado em memória de um gênio das telenovelas: Bráulio Pedroso). No folhetim “O Cafona” (1971), o personagem de Francisco Cuoco era um zé mané que ficava rico e montava uma rede de supermercados. Mas não tinha, claro, nenhum refinamento. Um dia, num jantar chique, colocaram lavanda à mesa e ele, sem saber para que servia, bebeu o tal líquido. Alguns anos depois, na novela “Pecado Capital” (Janete Clair, 1975), o mesmo Cuoco interpretava Carlão, um motorista de táxi que achava uma grana preta no banco traseiro do carro e melhorava de vida. Num jantar, ao deparar-se com a mesma lavanda, saiu-se com essa: “eu assisti a uma novela e nela um cara bebia isso aqui”.

Voltando às “cabeças falantes” de “Brasileiríssima”. Por que Pedro Bial tem tantas inserções no filme? Que estudos, que contribuições ele deu à telenovela brasileira? Quantos textos escreveu? Quantos dirigiu? Em quantos atuou? Pois sua imagem e voz aparecem mais que estrelas da grandeza de Fernanda Montenegro, Milton Gonçalves, Osmar Prado, Antônio Fagundes, Sônia Braga, Renata Sorrah, Lucélia Santos, Juca de Oliveira, Irene Ravache, Antônio Pitanga, Zezé Motta, Francisco Cuoco, Betty Faria, Fernanda Torres, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Camila Pitanga e Adriana Esteves. Aliás, da nova geração, só Taís Araújo tem espaço notável. Por sorte, para brilhar, pois seu depoimento sobre “Cheias de Charme” é dos mais substantivos do documentário.

Outros nomes dispensáveis na narrativa: Ana Maria Braga, Angélica (sim, ela fez série e novela na Manchete!), Poliana Abrita e Thadeu Schmidt. Houve espaço para estudiosos como Guilherme Vasconcelos e Claudino Mayer. Mas é incompreensível a ausência de pesquisadores como Immacolata Vassallo de Lopes, Anamaria Fadul e Maria Aparecida Baccega e seus discípulos no NPTN-ECA-USP (Núcleo de Pesquisa da Telenovela, da Escola de Comunicação e Artes da USP), que se dedicaram ao estudo de nossos folhetins, incansavelmente, desde 1992. Isto na maior Universidade do país.

Registre-se, também, o desinteresse em ouvir dois pesquisadores com importantes livros sobre o assunto: Joel Zito Araújo, autor de “A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira”, que virou filme premiado no Festival É Tudo Verdade, e Esther Império Hamburger, autora de “O Brasil Antenado, a Sociedade da Novela”.

– Ah, dirão os que temem os jargões cabeçudos do discurso acadêmico, quem aguenta, numa obra audiovisual, aquele falatório complicado das Universidades?

A resposta é simples. Tanto Joel Zito, que é cineasta, quanto Esther, professora da ECA-USP, dominam o discurso coloquial. E saberiam enriquecer o filme de Bushatsky com inteligência e frescor. Para cair na repetição máxima das figuras globais, o diretor de “Brasileiríssima” só faltou escalar Nélson Motta, aquele que o crítico André Miranda, de O Globo, definiu certa feita, como figura carimbada na maioria dos documentários nacionais. A ponto de merecer a inusitada láurea de “melhor ator de documentário”.

Há que se lembrar que André Bushatsky foi original em pelo menos um dos caminhos trilhados pelo filme. Aquele em que buscou cinco histórias de pessoas que amam a telenovela brasileira com fervor ardente. A primeira delas é uma mulher da zona rural, de nome Maria Silva, de infância muito pobre. Ela não tinha TV em casa. Para ver novelas, no tempo de “Pai Herói” (Janete Clair, 1979), fugia com irmãos para casa de quem tinha um pequeno aparelho em preto-e-branco. Ficavam na janela, olhando. O pai, muito bravo, batia nos filhos quando chegavam. Um dia, ele foi atrás das crianças. Antes de tomar qualquer atitude, olhou para aquele aparelho luminoso que desconhecia. Acompanhou a história. Emocionou-se. Voltou nos dias seguintes e chorou. Não bateu nos filhos e contou que também tivera um pai com quem se desentendera, de quem apanhara muito. Passou a acompanhar a novela. E buscou o pai de quem se afastara.

Uma jovem cega lusitana (Sônia) sabe tudo de nossas telenovelas e de nossa música popular, canta hits de trilhas sonoras (conhece a letra inteira de “Romaria”, de Renato Teixeira), é fã de Tony Ramos, “conhece” sucuris e tuiuiús por causa de “Pantanal”. Adorou “O Clone”.

Imenso impacto causa história da alagoana Ivanise Esperidião, que perdeu uma filha de 13 anos. A garota foi cumprimentar uma colega que aniversariava, próximo de sua casa e nunca mais apareceu. Ela nunca se cansou de procurar pela desaparecida. Juntou-se a outras mulheres que procuravam filhos sumidos e nasceu a ONG Mães da Sé. A novela “Explode Coração” (Glória Perez, 1995) tornou-se vitrine da busca de crianças desaparecidas por todo o país.

A filha de Ivanise não apareceu, ainda, mas ela, no trabalho solidário com outras mães, encontra alegria em cada desparecido que é encontrado. E não perde a esperança de um dia encontrar uma de suas duas únicas filhas.

Algo semelhante se deu com Carlos Santiago. Um dia, sua filha adolescente, Gabriela, foi baleada e morta no metrô do Rio. A novela “Mulheres Apaixonadas” (Manoel Carlos, 2003) ajudou-o a enfrentar a dor dilacerante. Junto com amigos, integrou campanha pelo desarmamento da população. Nascia o movimento “Rio, Eu Sou da Paz”, em tudo oposto à realidade que vivemos desde a posse de Jair Bolsonaro, acompanhada de seu culto às armas.

No quinto depoimento, uma jovem moçambicana, homoafetiva, conta que, ao assistir uma telenovela brasileira (“Senhora do Destino”, de Aguinaldo Silva), deparou-se com casal lésbico, uma delas filha do personagem Giovanni Improtta, interpretado por José Wilker. Entendeu que aqui teria mais liberdade para assumir-se que em seu país natal. Combinou com sua parceira que viria na frente, arrumaria emprego e que ela viria depois. “Não que aqui não haja preconceito”, pondera. Mas veio e a companheira veio quando encontrou as condições propícias.

Tudo em “Brasileiríssima” é roçado sem grandes aprofundamentos. Por que as novelas de hoje não têm o poder mobilizador de outrora, quando “Roque Santeiro”, por exemplo, parou o país? A telenovela está morrendo? Por que há tão pouco espaço para personagens negros e homossexuais nas narrativas seriadas?

Mesmo assim, vale a pena assistir ao filme de André Bushatsky, pois ele se dedica a tema de imensa importância em nosso entretenimento de massa. Se há três setores em que o Brasil pode orgulhar-se de ser bom, muito bom, com know-how para dar e vender, eles são futebol, MPB e telenovela.

 

Brasileiríssima
Brasil, 77 minutos, 2022
Direção: André Bushatsky
Roteiro: Mauro Alencar, Marcus Aurelius Pimenta, Gilberto Nunes e André Bushatsky
Pesquisa de imagem: César Barbosa e Aladim Miguel da Silva
Fotografia: Bruno Risas e Andréa Cebukin
Produção: Bushatsky Filmes, em parceria com Globo Filmes, Globonews e Canal Brasil
Distribuição: Bretz Filmes

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