Olhar de Cinema
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
Os três longas-metragens brasileiros selecionados para a principal competição do Olhar de Cinema foram já exibidos e debatidos e são fortes candidatos ao prêmio principal do Festival Internacional de Curitiba. Por suas qualidades, mesmo que os concorrentes internacionais cheguem bem recomendados por importantes festivais, caso da inusitada comédia tcheca “É Preciso uma Aldeia” (Berlim), do documentário indiano “Uma Noite sem Saber Nada” (Cannes), do colombiano “A Ferrugem” e do haitiano “Freda”.
O filme brasileiro que, até agora, maior impacto causou foi “Alan”, longa documental baiano, dirigido pelos irmãos Diego e Daniel Lisboa. Trata-se de projeto realizado ao longo de quase 20 anos. Na adolescência, Diego, jovem branco, de classe média, conheceu Alan, negro da periferia. Fumaram um primeiro baseado juntos. Nasceu uma amizade. Diego encantou-se com a inteligência do jovem, com os raps que improvisava. Ao iniciar-se no audiovisual, gravou o primeiro depoimento de Alan, então com 16 anos. E prosseguiu, na medida do possível. Louco para tornar-se rapper profissional, Alan buscava caminhos. O único que encontrava era invadir shows alheios. Invadia o palco para cantar, quando a apresentação se dava ao ar livre. Arriscava a vida pulando por “telhados” feitos de piaçaba, caindo onde caísse, quando não tinha grana para pagar ingresso. E tentava subir ao palco para mais uma performance de risco.
Alan encontrou raras oportunidades, raríssimas. Cantou no show do compreensivo astro do reggae, Alpha Blondy, que se apresentava em Salvador, conheceu Mano Brown e os Racionais MC’s, subiu ao palco com eles, chegou a registrar cinco composições com o próprio Diego Lisboa, que além de cineasta é (era) roqueiro (no projeto “Irmão Preto, Irmão Branco”, que não foi muito longe). Nos ‘corres’ da vida, encontrou mais espaço no crime que no campo musical. Sua inteligência aguda, seu encontro com antologia poética de Vinícius de Moraes, seu diálogo com versos de Raul Seixas e outros artistas (Alan é um sorvedouro de influências, que reprocessa à sua maneira) nos mostram uma potencialidade que não se completa.
O filme não esconde sua cumplicidade com seu protagonista. Mas não nega espaço a Mano Brown, que faz nervosa ode ao trabalho. Os negros devem manter-se distantes das drogas e do crime. Se antes trabalharam como escravos, para enriquecer seus patrões, agora devem trabalhar para si mesmos. Devem trabalhar, sim, devem trabalhar, trabalhar! A câmara registra o duro “sermão” do Racional paulistano, que tem presença marcante no filme. Mas passagens pela prisão, marcas de bala no corpo, cirurgias e fuga de hospital, a vida de Alan vai ficando muito complicada. Mesmo assim, o baiano de fala aliciante e contundente, continua sonhando com um patrocinador para seu projeto rapper.
Até que o vemos, em performance avassaladora, com dois imensos revólveres nas mãos, cercado de jovens, com rostos cobertos, pronunciando discurso desafiador. Para depois prometer trocar os trabucos pela caneta, que será sua nova arma. Conseguirá desta vez? O filme se constrói de forma lacunar, com materiais diversos (precários ou bem captados), mas sempre impactantes. Sua narrativa econômica, dura, parece derrapar quando recorre, por sugestão do encarcerado Alan, a um apresentador de programas policialescos. Um desses Datenas de TVs regionais. Mas logo retoma o prumo para chegar a final de imenso impacto.
Já “Paterno”, terceiro longa-metragem do pernambucano Marcelo Lordello (“Vigias”, “Eles Voltam”), é em tudo oposto a “Alan”, pois seu registro é a sutileza, o subentendido. O que o primeiro tem de “jogar na cara”, de escancarar as mazelas do Brasil, o segundo tem de tchecoviano, de sugestivo.
No Recife contemporâneo, prédios brancos altíssimos e singelas moradias populares convivem próximos e frente ao mar. Os donos do capital cobiçam os terrenos ocupados pelos pobres que moram nas imediações atlânticas. Ali poderão desenvolver novos projetos imobiliários.
O arquiteto Sérgio (Marco Ricca) cobiça um conjunto de casas na proletária Brasília Teimosa. Quer derrubá-las para no lugar erguer um projeto moderno e ousado. O pai, incorporador, está à morte. O irmão (Nelson Baskerville), também incorporador, à moda antiga, só quer saber de lucros imediatos. Sérgio tem um filho (Gustavo Patriota), que quer criar à sua imagem e semelhança, uma esposa (Fabiana Pirro), a quem dedica pouca atenção. Quer ganhar dinheiro e, ao mesmo tempo, ser um arquiteto respeitado. A incorporadora não dá a mínima para seu novo projeto, ele não entende o filho, nem as ideias progressistas de alguns parentes. Para complicar, descobre que o pai tinha outra família.
Que ninguém espere redenção. “Paterno” estrutura-se sobre roteiro que evoca filmes como “O Invasor”, de Beto Brant (o personagem Cláudio, de Thomas Aquino tem um quê do Anísio de Paulo Miklos), “O Som ao Redor” e “Aquarius”, de Kleber Mendonça”, e até “As Duas Irenes”, de Fábio Meira, que escreveu o roteiro com Marcelo Lordello (colaboração de Letícia Simões). Mas em seus densos (e tensos) 110 minutos, busca mais uma atmosfera dos sentimentos, que solução para questões que se eternizam em nossa estrutura social.
O arquiteto Sérgio poderia romper com as fontes de suas angústias, com as amarras de seus sonhos profissionais, tentar penetrar nos desejos do filho, que não entende. Mas é isso o que ele realmente quer? Ou no fundo deseja continuar sendo o herdeiro do grande incorporador, senhor de confortos a pouquíssimos reservados?
“Paterno”, como diz seu potente e sintético título, deixa tudo em aberto. O público que vá para casa com suas dúvidas e chegue, se conseguir, às suas próprias conclusões.
O Festival Internacional de Cinema de Curitiba não distribuiu prêmios a atores, nem técnicos. Se assim o fizesse, o elenco de “Paterno” teria um protagonista (Marco Ricca), vários coadjuvantes (Rejane Faria, Selma Egrei, Fabiana Pirro, Thomas Aquino, Wilson Rabelo, Nelson Baskerville) e uma revelação (o jovem Gustavo Patriota) no páreo. E uma diretora de fotografia (a uruguaio-brasileira Barbara Alvarez), digna de mais uma láurea. Um trabalho complexo e refinado, numa Recife captada em seus engarrafamentos, torres-paliteiro, espaços emparedados, trânsito louco, ambientes sofisticados ou humildes. Uma beleza integrada à narrativa, sem nenhum exibicionismo.
O terceiro longa brasileiro mostrado na competição do Olhar — “Filme Particular”, da paulistana Janaína Nagata — enquadra-se em recorrência temática para qual um dos curadores do festival, Eduardo Valente, chamou atenção: a presença da África. Ela se dá em filmes internacionais diaspóricos, incluindo os nossos. Mais duas produções brasileiras, além da de Janaína, têm o continente africano como cenário — a carioca “7 Cortes de Cabelo no Congo”, de Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi, na Mostra Outros Olhares, e “Maputo NaKuzandza”, no Olhares Brasil. Janaína “visita” a África do Sul, Luciana Bezerra e colegas, o Congo, e Ariadne Zampaulo, Moçambique.
“Filme Particular” é, abusando do pleonasmo, um filme particularíssimo, que recorre a dispositivo muito em moda: um jovem realizador compra, aleatoriamente, um filme na internet, sem nada saber dele. Foi o que fez Janaína. De posse de material em 16 milímetros, com 19 minutos de duração e boa qualidade, ela deparou-se com família loura, européia, sim, quem sabe alemã, holandesa ou escandinava. Pai, mãe, filha pequena, passeando em parque africano, com muitos bichos exóticos. E negros em “estado tribal”, fantasiados, dançando, servindo de guias ou puxando, com agilidade única, velozes riquixás.
Curiosa, e pela mesma internet, a cineasta promove verdadeira arqueologia das imagens e do contexto social em que foram geradas. Começamos por conhecer o Parque que ambienta aquele tour tão graciosamente documentado. Depois vamos conhecendo o tempo histórico, o do apartheid, Nelson Mandela, sua luta e o futuro museu que abrigará sua memória (tudo en passant, pois essa não é a razão de ser do filme). Como diz seu nome, trata-se de obra “particular”, não de um épico sobre a luta do povo sul-africano por sua emancipação.
Janaína Nagata continuará municiada por sua insaciável curiosidade. Até nos cansará um pouco com sua sôfrega busca pelos caminhos internéticos. Para que tanto detalhamento?
Ao final, duas de suas revelações — uma em preto e outra em branco — nos deixarão em transe. Os 90 minutos dedicados à arqueologia da imagem empreendida pela jovem diretora, que é também artista visual, foram muito compensadores. Por trás do “Filme Particular” está um “Filme Épico”, a história de um povo, que viveu sob o mais odioso dos sistemas de opressão, a segregação racial, fundamentada nos mandamentos do apartheid.
No campo do cinema black, o Olhar de Cinema ofereceu mais duas joias a seu público. Ambas em cópias novíssimas, pois recém-restauradas: “De Certa Maneira”, da cubana Sara Gomez (1974/78), e “Mandabi – A Ordem de Pagamento”(1968), do senegalês Ousmane Sembène. Ambas no segmento Olhares Clássicos.
Sara morreu sem ver seu filme pronto. Tinha 31 anos e o longa foi finalizado por dois mestres do cinema de Cuba, Tomás Gutierrez Alea, o Titión, e García Espinoza. E ela entrou para a história como a primeira mulher, ainda por cima negra, a dirigir um longa-metragem na Ilha.
Ninguém pense, porém, que são estes os principais atributos de seu filme. O que colocou “De Certa Maneira” no cânone cinematográfico do país de Titón foram suas imensas qualidades. Com feliz diálogo entre a ficção e o documentário, em belo preto-e-branco, Sara Gómez (1942-1974) mostra o mundo dos trabalhadores, que têm que ajudar a construir o país, em pleno processo revolucionário. O déficit habitacional é enorme. Há os que dão o sangue nas brigadas de voluntários e há aqueles apegados aos velhos hábitos, à malandragem, à bebida. É preciso mudar.
A jovem diretora, que trabalhara com Titón em “Cumbite” e com Agnes Varda em “Salut les Cubains”, consegue driblar o didatismo e realizar um filme com vibrante pulsão de vida, motivando atores que se misturam aos trabalhadores numa sinfonia de vidas comuns. Que imensa cineasta Sara teria sido se não tivesse partido tão cedo.
Mandabi, em língua wolof, falada na África subsaariana, quer dizer ordem de pagamento. É justo isso que recebe, certo dia, Ibrahima Dieng, devoto muçulmano, que vive com suas duas mulheres e sete filhos, nos arredores poeirentos de Dacar, capital do Senegal. Este é o ponto de partida do segundo e ótimo filme do “pai do moderno cinema africano”, Ousmane Sembene (1923-2007). Escritor e cineasta marxista, formado na União Soviética (Escola Maximo Górki), Sembene lutou com todas as suas forças contra o colonialismo e, como realizador, praticou um cinema baseado no distanciamento crítico brechtiano, mas sem perder suas raízes africanas.
Depois de arrebatadora estreia com o drama “Une Noire…” (A Garota Negra, 1966), restaurado por Scorsese e Cinemateca de Bolonha, Sembene partiu para uma “comédia black”. O filme lembra, em certa medida, “A Alma Boa de Set-Suan”, de Brecht.
O devoto Ibrahima Dieng segue os preceitos muçulmanos ao pé da letra, no riscado do Alcorão. Ao receber uma ordem de pagamento de um sobrinho, que trabalha em Paris, vai aos Correios. Como não tem carteira de identidade, não pode retirar a quantia. Como não tem certidão de nascimento, não pode tirar carteira de identidade. Não sabe nem a data de seu nascimento. Não tem dinheiro para providenciar a documentação. O pouco que arranja, gasta com embusteiros que fazem seu retrato para a identificação. A vizinhança, tão pobre quanto ele, descobre que Ibrahima vai receber dinheiro de Paris. Começa a bajulá-la e a pedir, em nome de Alá, que os ajude.
Como bom marxista, Sembene desenhará duro painel da caridade, da ganância humana e da religiosidade. E o fará com humor sutil e personagens matizados, num filme de imensas qualidades. Uma pena que a obra do senegalês siga desconhecida no Brasil. Nunca houve uma retrospectiva completa de seus filmes em nossos festivais, nem em nossas emissoras de TV. Louve-se pois a Mostra Internacional de São Paulo, que nos apresentou “A Garota Negra” e o “Olhar Clássicos” que nos traz “Mandabi – A Ordem de Pagamento”, em cópias novíssimas. O primeiro graças à Film Foundation/Bologna. O segundo graças à Criterion, selo de DVDs que cava tesouros escondidos nos escaninhos do mundo.