Índia, Haiti, Congo-Brasil e Unila triunfam no Olhar de Cinema
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
O Olhar de Cinema, o Festival Internacional de Curitiba, é generoso na programação de filmes espalhados por diversas mostras, mas avarento na hora da premiação. São raras as categorias laureadas, não há prêmios para diretores, atores, roteiristas, fotógrafos, nem montadores.
Como o “olhar” do festival é fortemente marcado pelas causas identitárias, pela aposta em filmes experimentais e pela produção independente, ninguém espere prêmios para narrativas previsíveis, com grandes atores e orçamentos encorpados. Um ou outro pode até ser selecionado. Mas dificilmente será reconhecido com os troféus oficiais atribuídos a somente quatro filmes. Há alguns prêmios agregados, de instituições colaboradoras, mas poucos. Este ano, não foi diferente.
O grande vencedor da décima-primeira edição do rigoroso festival curitibano, composto por mais de 100 filmes, foi o documentário indiano “Uma Noite sem Saber Nada”, de Payal Kapadia. A jovem realizadora mergulha num universo estudantil em convulsão. O novo governo indiano, de extrema direita, intervém na Universidade e coloca um veterano astro de Bollywood para comandar a área de cinema. Evocando Pudovkin e Eisenstein, mestres da vanguarda soviética, os estudantes entram em greve. E o fazem dispostos a tudo para defender uma universidade livre, criativa e inovadora. Jamais subordinada aos ditames de governo caudatário das leis do mercado. Para narrar seu filme, Kapadia lança mão de voz feminina, identificada por L., que escreve cartas de amor fictícias. E usa imagens de seu país, vindas das mais diversas fontes audiovisuais. O resultado é um ‘filmensaio’, registro pulsante e rebelde de jovens que não querem ser subjugados por ideias retrógradas.
A representação brasileira no Olhar de Cinema foi a mais forte de suas onze edições. Havia bons filmes na competição principal, na Novos Olhares e Outros Olhares. Entre todos eles, um dos júris escolheu o documentário “7 Cortes de Cabelo no Congo”, do trio Luciana Bezerra, Gustavo Melo (integrantes do coletivo Nós do Morro/Vidigal) e Pedro Rossi. Falado em maior parte em francês e línguas africanas, o filme se passa no Brasil, em meio à comunidade congolesa, radicada nas cercanias de Brás de Pina. Seu epicentro é o salão de Fernando “Pablo” Mupapa, articulado e conversador, que troca ideias com seus clientes-conterrâneos, exilados como ele, sobre seu país — o Congo devastado por guerras, pobreza e exploração colonialista. No júri, uma defensora juramentada do cinema black, a presidenta da Spcine, Viviane Ferreira, diretora de “Um Dia com Jerusa”.
Na Mirada Paranaense, dedicada ao cinema produzido no estado que sedia o festival, o grande vencedor foi o curta-metragem “O Hábito de Habitar”, produção que uniu Brasil, Chile e Haiti. O júri, que contou com o crítico argentino Roger Koza, viu nos 15 minutos da narrativa dirigida pelo chileno Nicolás Pérez, estudante da Unila (Universidade Federal da Unidade Latino-Americana, sediada em Foz do Iguaçu), imensas qualidades. A maior delas: “capacidade de refletir sobre a questão da identidade”. A discussão de tema tão complexo se dá pelo diálogo entre dois estudantes bolivianos, vivendo longe de casa e tentando formatar um novo conceito de lar. Para tanto, juntos, eles vão desenterrar memórias que nos permitirão conhecer suas raízes.
No terreno do curta-metragem, mais dois filmes foram premiados: “Mal di Mare”, de João Vieira Torres, jovem que vive entre o Brasil e a França, e dedica-se ao rompimento de fronteiras entre o cinema e a performance, e “Garotos Ingleses”, do descolado baiano Marcus Curvelo.
Um único filme — o longa haitiano “Freda”, de Géssica Géneus — conseguiu verdadeiro milagre ao acumular três prêmios, um do júri oficial (Especial do Júri), outro da Crítica (Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e o do Público. Isto só costuma acontecer em festivais que têm apenas seis concorrentes e, mesmo assim, promovem verdadeira “reforma agrária” de troféus (caso do Festival de Brasília, que em novembro realizará sua edição de número 55, e daqueles que seguem modelos distributivistas).
“Freda” é um filme arrebatador, a ponto de conquistar tamanho destaque em festival com tantas opções (mais de 40 longas-metragens)?
A resposta é não. O filme é bom, mobilizador, tem uma boa história, uma jovem diretora (também atriz e cantora) em quem se deve prestar bastante atenção. Mas a concentração de prêmios foi excessiva (registre-se, claro, um atenuante: ela veio de três júris diferentes). Mas dá ao filme excepcionalidade que ele não tem.
O júri oficial — formado por Alia Ayman, Cássio Kelm e Talize Saueg — parece não ter visto nenhum mérito nos três filmes brasileiros da principal competição, todos de realizadores jovens, dignos de algum estímulo (a paulistana Janaína Nagata, de “Filme Particular”, os irmãos Lisboa, do baiano “Alan”, e o pernambucano Marcelo Lordello, de “Paterno”). Preferiu atribuir um estranho prêmio à lusitana Rita Azevedo Gomes, de 72 anos. A veterana diretora (e programadora da Cinemateca Portuguesa) refilmou uma peça de Eric Rohmer, “O Trio em Mi Bemol”. Por este trabalho — registre-se, não muito inspirado e sem o frescor dos momentos mais iluminados do mestre da Nouvelle Vague —, ela fez jus ao prêmio de “melhor contribuição artística”.
Ao agradecer, da Península Ibérica, a láurea, a lusitana não se fez de rogada. Pediu que explicassem o conceito-base do prêmio que acabara de ganhar. Quem sabe o júri grava uma mensagem para ela e a deposita no site do Olhar de Cinema, pois muitos de nós também não entendemos a “contribuição artística” de “O Trio em Mi Bemol” ao cinema contemporâneo. Em que ele inova? É novo colocar pessoas falando e falando por longo tempo? Mas Rohmer (1920-2010) fez isso, magistralmente, na maioria de seus filmes.
Ou será que o que pesou foi o recurso do filme dentro do filme? Mas isso não é algo recorrente desde que o cinema existe? Um crítico lembrou que Miguel Gomes, conterrâneo de Rita, aborreceu-se, em público, quando ainda estava na casa dos 40 anos, e ganhou prêmio de “Contribuição Artística” num grande festival. Para ele, tratava-se de reconhecimento para jovens que estavam iniciando-se no cinema e realizando seus primeiros experimentos!
Façamos, pois, um exercício imaginário: daqui a vinte anos, já septuagenário, Miguel Gomes aparece com um filme no Festival Internacional de Cinema de Curitiba, e resolve-se laureá-lo com um troféu de “Contribuição Artística”, como se fez com Rita Azevedo Gomes. O que ele dirá?
Quem ganhou uma singela menção honrosa foi o filme “Grace Tomada Única”, da sul-africana Lindiwe Matshikiza. Ela estava ausente, mas sua protagonista, a doméstica e atriz Mothiba Grace Bapela, estava presente para fazer o agradecimento mais festivo e aplaudido da noite. A rechonchuda, generosa e vibrante estrela do país de Mandela nem se incomodou em não receber nada de concreto — nem um diplomazinho (como é que um festival tão milimetricamente organizado como o Olhar de Cinema não cuidou disso??!!!). Ela falou com tamanha euforia, que o argentino Roger Koza, que se dispusera a traduzir seu inglês, preferiu deixá-la transbordar sua alegria, sem interrupções.
No IDFA, o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã, “One Take Grace” ganhou prêmio de … “Contribuição Artística”. Justíssimo, por tratar-se de filme de diretora estreante, que renovou a cinebiografia de uma mulher saída da pobreza extrema, que entrou, pelas bordas, na tumultuada indústria da publicidade e do cinema sul-africanos, e viveu entre a fama efêmera e a faxina em ricas mansões.
Mais dois filmes vindos de “outras geografias”, ambas muito instigantes, receberam prêmios no Olhar: o chinês “Jet Leg”, da diretora homoafetiva Xinyuan Zheng Lu, que fez seu agradecimento ao lado da namorada, e o cazaque “Poeta”, de Darezhan Omirbayev. Com a cineasta, roteirista e escritora Letícia Simões no júri do segmento “Outros Olhares”, este filme vindo do longínquo Cazaquistão não poderia passar incólume. Autora de “O Chalé é uma Ilha Batida de Vento e Chuva” (sobre o escritor Dalcídio Jurandir) e, ela mesma, dedicada à poesia, como não se sensibilizar com o delicado filme sobre um poeta oriundo dos confins da Ásia Central?
Confira os vencedores:
. “Uma Noite Sem Saber Nada”, de Payal Kapadia (Índia) – melhor filme
. “Freda”, de Géssica Généus (Haiti) – Prêmio Especial do Júri Oficial, Prêmio da Crítica (Abraccine), Prêmio do Júri Popular
. “7 Cortes de Cabelo no Congo”, de Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi (Rio de Janeiro) – melhor filme brasileiro (detidas as mostras competitivas)
. “Jet Leg”, de Xinyuan Zheng Lu (China) – melhor filme da Mostra Novos Olhares
. “Grace Tomada Única, de Lindiwe Matshikiza (África do Sul) – Menção honrosa da Mostra Novos Olhares
. “Poeta”, de Darezhan Omirbayev (Cazaquistão) – melhor filme da Mostra Outros Olhares
. “ Trio em Mi Bemol”, de Rita Azevedo Gomes (Portugal) – melhor contribuição artística
. “Mal di Mare”, de João Vieira Torres (Brasil) – melhor curta
. “Garotos Ingleses”, de Marcus Curvelo (Bahia) – melhor curta da Mostra Novos Olhares
. “O Hábito de Habitar”, de Nicolás Pérez (Brasil, Chile, Haiti), representante da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) – Prêmio Avec de melhor filme na Mostra Mirada Paranaense
. “Upa, Neguinho”, de Douglas Carvalho dos Santos – Menção honrosa do Prêmio Avec na Mostra Mirada Paranaense
. “O Quintal de David”, de Vinícius Pessoa (Roteiro inédito, Curitiba Lab)