Filme baiano mostra no Cine Ceará por que Bahia preta e periférica é força hegemônica no boxe brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
Na quinta noite da mostra competitiva do Cine Ceará, o Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza, um curta-metragem — “Contragolpe” (foto), de Victor Uchôa — chegou para somar-se ao melhor visto até agora no telão do Cine São Luiz, junto aos longas “A Filha do Palhaço”, ficção do cearense Pedro Diógenes, e o documentário “Las Cercanas”, da argentina María Álvarez.
O “Contragolpe” chegou da Bahia e foi dos mais potentes. Victor Uchôa, jornalista de 36 anos, de origem afro, já começou, no palco do cinema, causando boa impressão. Com discurso muito articulado — e sintético! —, contou que seu interesse era entender a força de boxeadores e boxeadoras soteropolitanos. Por que metade da seleção brasileira de boxe (e dos medalhados em competições internacionais, incluindo Olimpíadas) tem origem na Salvador preta e periférica? Por que a Bahia é a Cuba do boxe brasileiro?
No dia seguinte, durante o debate dos curtas, o realizador narrou sua trajetória como jornalista e editor, sempre em publicações impressas. Lembrou que a Folha de S. Paulo encomendou a ele reportagem sobre o fenômeno baiano no boxe. Como já andava seduzido pelo cinema, fora estudar Audiovisual na Argentina. Fizera seu primeiro curta (“Tempo”, ficção, 2017) e continuava interessado na potência do pugilismo baiano. Não nos profissionais já detentores de medalhas olímpicas, mas sim nos aspirantes, homens e mulheres que treinavam em favelas e nas cercanias do Dique do Tororó, lago turístico e símbolo sagrado de Salvador.
Partiu então para a realização do documentário “Contragolpe”. O resultado é excelente e deve ser um dos títulos que dividirão com “Big Bang”, de Carlos Segundo (já premiado com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno), os troféus Mucuripe no segmento curta-metragem. Em duas categorias (montagem, de Álvaro Ribeiro, e fotografia, de Matheus Leite, que soma o preto-e-branco e a cor com potências raras), parece imbatível. Mas melhor filme e direção não podem ser descartados.
E quais são os méritos cinematográficos deste documentário? Ou estamos encantados, paternalisticamente, com mais um filme sobre pretos-periféricos?
Nada disso. O filme é puro cinema. Começa com três frases cortantes do romance “Jubiabá”, de Jorge Amado. Daí em diante, com síntese rara, razão de ser do curta-metragem, montagem precisa, retórica zero, Victor Uchôa aposta na potência da imagem. Os depoimentos, muito ricos, são complementares. Tudo o que precisamos ver e saber vem dos corpos dos lutadores e lutadoras, dos treinadores, da geografia das academias pobres, de paredes descascadas, das favelas, espaços públicos e diques que servem de territórios de treino. Academias modestíssimas. As informações visuais resultantes do contraste entre o PB e a cor dão ao filme um imenso dinamismo. Numa mostra de bons curtas-metragens, mas sem títulos arrebatadores, “Contragolpe” funcionou como um direto de Mike Tysson no queixo de seu adversário.
A noite completou-se com mais dois curtas — o terror mineiro “Cemitério de Flores”, de Rafael Toledo, e “Infantaria”, da alagoana Laís Santos Araújo. E com o longa “Green Grass”, de Ignacio Ruiz, coprodução entre Chile e Japão, protagonizada pelo nipônico Masataka Ishizaki.
“Cemitério de Flores” é uma experiência curiosa, pois foge dos cenários tradicionais do filme de horror. Ou seja, de casas e florestas assombradas. De espaços noturnos e sombrios. No palco do Cine Teatro São Luiz, Toledo avisou que “o horror pode estar também em lugares luminosos, pois é um estado de alma”. Os 20 minutos mostrados em Fortaleza sintetizam projeto de longa-metragem, em fase de preparação pelo jovem cineasta. Uma pintora sofre com a rejeição a seus quadros vinda de galeristas. A caminho de sua casa de campo, ao lado da filha pequena, ela colhe flores rubras numa cruz de estrada.
O que acontecerá dali em diante, sem recorrer aos tradicionais clichês do gênero, só vendo. Afinal, o mistério é parte constitutiva do filme de horror. Mas, registre-se, o curta (“um portfólio”, na feliz definição de David França Mendes), realmente, não recorre a ambientes sombrios. E faz jus às flores, muitas e coloridas flores, de seu título.
“Infantaria”, que fez parte da seleção de Gramado e do Olhar de Cinema, é uma ficção feminina, com três mulheres no centro da narrativa. Uma mãe de uns 30 anos, uma adolescente de 16, grávida e interessada em interromper a gestação, e uma menina, Joana, no dia de seu aniversário de dez anos. A mãe tem outro filho, o pré-adolescente Eduardo, apegado ao pai, militar ausente, que espera por ele e implica com a irmã caçula.
No exato momento em que encontra-se assoberbada pelos preparativos da festa de aniversário de Joana, a mãe, que acumula função complementar de aborteira, recebe pedido da adolescente: deseja interromper sua gravidez naquele dia. Em vão, contra-argumenta que a hora é imprópria.
Enquanto uma, a adolescente, vive seu calvário, a mais nova, imersa em seus sonhos, deseja torna-se mocinha, menstruar. O filme soma essas três histórias com um bom elenco (em especial a mãe, Ane Oliva) e uma fotografia muito colorida (de Wilssa Esser).
O longa-metragem chileno-japonês “Green Grass” nasceu do encontro fortuito entre um jovem curta-metragista chileno, Ignácio Ruiz, e um curta-metragista japonês, Masataka Ishizaki, no Mercado de Cannes, 12 anos atrás. Eles mal falavam inglês. Apesar das dificuldades de comunicação verbal e do desconhecimento total do espanhol e do japonês, ficaram amigos e passaram o festival “se entendendo por gestos” e “fazendo planos”. Esboçaram, ali, um apressado argumento para um longa-metragem, uma coprodução entre Chile e Japão. Doze anos depois, o resultado chegou ao Cine Ceará.
Os caminhos, porém, foram tortuosos. “Como éramos muito jovens, tínhamos vinte e pouquinhos anos, achamos por bem procurar roteiristas profissionais para nos ajudar. Foi o que fizemos. Procuramos um roteirista chileno e um japonês. Ele fizeram algo mais pop do que queríamos. Muitos outros roteiristas deram palpites, mas o roteiro final, o que foi filmado, é nosso”.
Como o filme busca “mais sensações, uma atmosfera” — garante o diretor —, “um roteiro não era tão essencial”. Até porque “trabalhamos com pouquíssimos diálogos”.
A trama é, realmente, rarefeita e misteriosa. Kondo, um empresário japonês (Masataka Ishizaki), de 30 anos, acorda em uma praia desconhecida após um grande terremoto. Ao tentar retornar à sua rotina, conhece personagens estranhos que o ajudarão a entender onde está. Enquanto isso, seu pai (um empresário/Tokuma Nishiota), sentindo a solidão do mundo corporativo, buscará novas maneiras de seguir adiante. Apesar da distância que os separa, ambos conseguem reconciliar-se com o passado e encontrar um novo caminho a seguir.
A parte do jovem empresário foi filmada no sul do Chile, onde nasceu o diretor (próximo a Chiloé). E as partes do empresário desiludido com o mundo corporativo, no Japão. Ignácio Ruiz, que é conterrâneo do cineasta Raul Ruiz (Puerto Montt, 1941-Paris, 2011), diz ter grandes afinidades com o cinema do diretor de “As Três Coroas do Marinheiro” (1973), e também com o cinema de outro conterrâneo, José Luis Torres Leiva (“El Sueño de Ana”). E, ainda, com os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul.
O japonês Masataka Ishizaki, que, além de diretor de curtas e ator, é também produtor e roteirista, chegou ao Cine Ceará no começo do festival. Está aprendendo algumas palavras em português, participando com imensa alegria das conversas e assistindo a muitos filmes. E feliz em ter trabalhado em parceria com latino-americanos. “Vocês são menos rigorosos que os japoneses”, assegurou durante o debate de “Green Grass”. “No meu país, trabalhamos dentro de hierarquia muito vertical. Vocês atuam de forma mais horizontal”. Então, “sendo assim, o trabalho se torna mais prazeroso”. Para fazer “Green Grass”, ele conta que assistiu ao filme “Depois da Vida” (1998), de Hirokazu Koreeda. Sem querer, forneceu spoiler sobre a trama do longa que ele protagonizou. Ou seja, Kondo, o jovem empresário que interpreta, pode não estar mais no mundo dos vivos, e sim num limbo.