Mostra SP premia “Aftersun”, Bellocchio, “Elis & Tom”, “Marcha sobre Roma” e “Exu”
Por Maria do Rosário Caetano
O longa britânico “Aftersun” (foto), de Charlotte Wells, foi o grande vencedor da quadragésima-sexta edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encerrada na gelada e chuvosa noite de quarta-feira, dois de novembro, na Cinemateca Brasileira, com exibição de “Até os Ossos”, “road movie canibal” de Luca Guadagnino, protagonizado por Timothée Chalamet e Taylor Russel. Se este filme espantou parte do público, que abandonou a sala, a festa de premiação foi só alegria e festa.
E com toda razão. Havia no ar clima de entusiasmo e crença de que novos tempos estão por vir, que o Ministério brasileiro da Cultura será recriado, como bem lembrou um dos cineastas premiados, o lusitano José Miguel Ribeiro, em mensagem gravada, direto de Portugal. Ele previu que “a cultura voltará à centralidade merecida”. Os aplausos foram efusivos.
A Mostra apresenta, anualmente, mais de 200 filmes, mas é econômica na entrega de prêmios. Por isso, a festa resulta enxuta e eficiente, os apresentadores (Renata de Almeida e Serginho Groisman) informais e sintéticos e os premiados colaboraram com recados curtos e incisivos (exceção de Nuno Godolphin, produtor e representante do homenageado Jorge Bodansky, diretor de “Amazônia, a Nova Minamata?”, que foi muito prolixo!).
Em tempo de penúria financeira, a Mostra não pôde trazer convidados internacionais. Mas graças à sua rede de amizades, formada ao longo de quase 50 anos de história, reuniu sólidos agradecimentos dos premiados, a maioria registrada em vídeo. O mais emocionante de todos veio do mestre italiano Marco Bellocchio, de 82 anos, que teve “Noite Exterior”, cinco horas (que parecem duas!) premiado pela Crítica. Ele agradeceu mais um reconhecimento do festival paulistano, que já o homenageou com o Prêmio Humanidade e com o Troféu Bandeira Paulista. E com retrospectiva, além de encapar o catálogo com uma de suas criações plásticas. Bellocchio, que filmou no Brasil parte de seu “O Traidor”, sobre a máfia e Tomazzo Buschetta, afirmou que, apesar da idade avançada, sonha regressar a São Paulo e à Mostra.
Sobre o prêmio dos críticos à “Noite Exterior”, há que se registrar: trata-se de obra-prima, que vem formar com “Vincere” (2008), sobre a amante desprezada de Mussolini, e “Bom Dia, Noite” (2003), sobre as Brigadas Vermelhas, uma Trilogia Italiana de tirar o fôlego. Três dos maiores momentos do cinema contemporâneo. Que ninguém pense tratar-se, este novíssimo trabalho, de uma minissérie de TV. É cinema puro. Suas quase cinco horas passam sem que sintamos o tempo, tamanha a intensidade dos fatos narrados e a espessura dos personagens. Quem pensou que Bellocchio já tinha dito tudo sobre a Itália das Brigadas Vermelhas e do assassinato de Aldo Moro, não sabe o quanto ele ainda tinha por dizer. E dessa vez o faz regendo polifonia protagonizada pelos jovens das Brigate Rosse, pela famigerada Democracia Cristã e sua aliança com o PCI (Partido Comunista Italiano), sem esquecer o Papa Paulo VI (e sua poderosíssima Igreja Católica vaticanista), a sociedade italiana (e sua fração que seguiu e segue fiel a Mussolini), a família de Moro e seu omisso herdeiro político, o escorregadio Francesco Cossiga. Sem jamais esquecer “il divo” Giulio Andreotti. E, como sempre, Bellocchio segue somando política, psicanálise, sonhos, violência e arte (que sacada a encenação brechtiana do próprio sequestro de Moro que persegue os dias de uma Madre Superiora de belo Convento!).
O depoimento digital mais divertido da noite de entrega dos troféus Bandeira Paulista veio do irreverente escocês-irlandês Mark Cousins, diretor de “Marcha sobre Roma”. Primeiro, ele agradeceu ao “bom gosto do público” por ter escolhido seu filme, realmente formidável. Uma recriação (cinéfila até a medula) da marcha que levou a extrema-direita italiana de Nápoles a Roma, em 1922, e instalou Mussolini (e o fascismo) no poder. Depois da brincadeira, o prolífico Cousins, que chega a fazer três longas por ano, lembrou que “o fascismo, essa perigosa fera, vem rondado e atormentando o mundo – o Brasil inclusive (e a Itália, onde realizou seu filme). Agradeceu a seu produtor italiano, Andrea Romeo, e convocou a todos a defenderem valores ligados à democracia e à liberdade.
Quem também encantou o público foi a diretora francesa Emmanuelle Nicot, que fechou-se no banheiro de sua residência para agradecer ao prêmio atribuído à atriz-adolescente Zelda Samsom, protagonista de seu filme “Dalva”. E justificou seu reduzidíssimo cenário. “Foi o único local silencioso que encontrei neste instante”.
A brasileira Jasmin Tenucci subiu ao palco da cerimônia para receber o Troféu Bandeira Paulista, criação de Tomie Othake, atribuído pelo júri oficial ao ator Ali Junejo. O jovem é o protagonista de “Joyland”, que o Paquistão indicou para representá-lo na busca por vaga ao Oscar de melhor produção internacional. A paulistana Jasmin, que é montadora, contou que vem trabalhando com o cineasta Saim Sadiq, primeiro em seu curtas, e agora em seu longa de estreia, já laureado com o Prêmio do Júri na mostra Um Certain Régard, em Cannes.
“Joyland” se passa no seio de família patriarcal paquistanesa, de classe média baixa, que anseia pelo nascimento de neto capaz de dar sequência à sua linhagem. O filho, porém, começa a trabalhar, secretamente, com dança erótica e apaixona-se por ambiciosa estrela transsexual.
Entre os filmes brasileiros premiados, o que mais chamou atenção foi “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, dirigido por Roberto Oliveira (codireção de Jom Tob Azulay). Quem imaginou ver apenas o making of da histórica gravação do elepê que uniu a cantora gaúcha ao maestro soberano, em Los Angeles/1974, enganou-se. O filme vai além das belíssimas imagens registradas por Fernando Duarte na Califórnia. Bem mais além. Mostra a tensão que cercou a gravação (principalmente entre o consagrado maestro Jobim e o cabeludo, de 27 anos, Cesar Camargo Mariano, marido da cantora), as instabilidades emocionais de Elis, as razões e ‘desrazões’ dela não ter se tornado uma das cinco ou dez maiores cantoras do mundo… E deixa no ar insinuação nitroglicerina pura (de André Midani: “Elis Regina teria se suicidado em janeiro de 1982”). Este documentário ainda vai render muita polêmica.
Confira os premiados:
Troféu Bandeira Paulista (Júri Oficial)
. “Aftersun”, de Charlotte Wells (Grã-Bretanha) – melhor filme
. “Salgueiros Cegos, Mulher Dormindo”, de Pierre Földes (França) – Prêmio Especial do Júri
. “Dalva”, de Emmanuelle Nicot (França-Bélgica) – Prêmio especial para a atriz Zelda Samsom
. “Joyland”, de Saim Saqid (Paquistão) – Prêmio especial para o ator Ali Junejo
Troféu Bandeira Paulista (Júri Popular)
. “Marcha sobre Roma”, de Mark Cousin (Itália) – melhor documentário internacional
. “Nayola”, de José Miguel Ribeiro (Portugal) – melhor ficção (animação) estrangeira
. “Exu e o Universo”, de Thiago Zanato – melhor documentário brasileiro
. “O Mestre da Fumaça”, de André Sigwalt e Augusto Soares – melhor ficção brasileira
Prêmios da Crítica
. “Noite Exterior”, de Marco Bellocchio (Itália) – melhor filme internacional
. “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, de Roberto Oliveira e Jom Tob Azulay – melhor filme brasileiro
. “À Margem do Ouro”, de Sandro Kakabadze – Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) para filme de Novos Diretores/Brasil
Troféu Paradiso
. “Walala”, de Perseu Azul
Obrigada pelas informações
Ótima cobertura, Rosário, estou de olho nos filmes indicados, em especial o Belocchio e Elis e Tom. Valeu!!!!