Teledramaturgia brasileira troca o sofrimento do personagem pela sociologia

Foto: “Medida Provisória”, de Lázaro Ramos

Análise do artigo de Daniel César, no UOL, em que mostra que a dramaturgia brasileira não impacta o espectador, porque troca o drama dos personagens pela sociologia

Por Hermes Leal

O artigo de Daniel César, no UOL, “Por que nada na Netflix Brasil repercute? – Séries não fazem barulho nem comparada a internacionais”, em que crítico revela que nossa dramaturgia troca o drama pela sociologia, não fez o efeito que deveria ter feito. Essa inquietação, de por que não somos bons em desenvolver personagens como na dramaturgia internacional, elemento fundamental para engajar o espectador em uma obra de ficção, me levou a iniciar uma pesquisa que demorou mais de três décadas para obter uma resposta satisfatória.

Demorou esse tempo, porque fui obrigado a acompanhar o nascimento e o desenvolvimento de uma nova ciência para o século 21, a Semiótica do Sentido e das Paixões, nascida na França, que possibilitou uma nova teoria da narrativa baseada nos personagens, no que eles sentem, e não somente em suas ações, e isso vem ser o elemento que nos falta.

https://natelinha.uol.com.br/colunas/tvxtv/2023/01/28/por-que-nada-na-netflix-brasil-repercute-193248.php 

A primeira questão colocada pelo artigo é: “Mas como uma plataforma (Netflix) capaz de criar fenômenos de audiência no mundo todo, como ‘La Casa de Papel’, ‘Stranger Things’ e até ‘Better Call Saul’, não funciona no Brasil?”. Uma das respostas, a mais profunda possível, de ordem estrutural no ser do brasileiro, é o reconhecimento do que sente os personagens. Uma falta de cognição cultural profunda (um tipo de cognição cultural explorada por A.J. Greimas, em “Do Sentido II”), que nos colocou como um dos países mais sem noção do planeta, perdendo apenas para a África do Sul.

Essa descoberta levou tempo, e nasceu em razão dessa questão antiga, de que o cinema brasileiro não tem roteiro. O problema na nossa dramaturgia não é do roteiro, mas de nossa cultura estrutural, que a gente nega, não assume.

A pesquisa para responder essa questão no final dos anos 80 me levou, enquanto trabalhava na televisão e escrevendo livros (são sete publicados, incluindo dois romances), a fazer um mestrado na ECA/USP em roteiro e um doutorado em Linguística, na teoria Semiótica Narrativa e das Paixões na FFLCH/USP. O resultado desse trabalho saiu pela editora Perspectiva, na famosa Coleção Estudos, onde foram lançados no Brasil os maiores e melhores pensadores do mundo, exatamente porque eu tinha conseguido, após mais de três décadas, chegar a uma boa conclusão sobre o que nos impede de fazer algo tão impactante quanto os bons filmes internacionais.

Dramaturgia da sociologia

A outra questão no artigo de Daniel é por que trocamos o drama dos personagens pelo “tema”, pela sociologia, ao contrário do que faz as produções internacionais de qualidade. “Se a Netflix tem uma visão de sucesso global, como aconteceu com ‘Round 6’, no Brasil a visão da direção é artificial. A empresa acumula aprovações de séries que não são dramaturgia, mas teses de doutorado em sociologia. Autores incapazes de criar conflito, porém prontos para apontar e defender causas se acumulam. Para o sucesso falta o básico: dramaturgia de qualidade”. Essa dramaturgia de qualidade cobrada de nossas produções passa exatamente pela questão dos personagens.

Já falei e demonstrei em inúmeros artigos por que somos o melhor cinema temático do mundo, e um dos piores em drama, em razão do negacionismo das emoções dos personagens, que nunca estão “dentro” dos personagens, com seus próprios sofrimentos, não somente como sofrimento da causa, do tema, como no filme “Medida Provisória”, de Lázaro Ramos, com personagens ativos pela luta temática, mas ocos em suas próprias emoções, sentindo algo que nos tocasse. Temos dificuldade em desenvolver o sofrimento individual do personagem sem que isso tenha a ver com o outro. Criamos um mundo para nós mesmos em que o que sentimos é culpa do outro. Até as paixões são socializadas.

Nossos personagens “gritam” como se fossem loucos, ao invés de sentir algo próprio, que é emanado das afecções de suas paixões, muitas delas de nascença, como os efeitos nefastos da melancolia, da soberba e do medo, e outras adquiridas, como a afecção, que queremos nos livrar, do ódio, da raiva, da culpa, do ressentimento, e ainda a da fé, da vingança, entre outros. Para a dramaturgia brasileira, o personagem, quando é afetado pela paixão, fica “louco”. Todas as nossas novelas não trabalham as paixões nos personagens, tudo leva à loucura. Uma loucura inventada por nós. E que ainda defendemos se for criticada (explico, neste artigo, como essa paixão age em personagens em telenovelas).

Na Semiótica Narrativa e das Paixões, a boa narrativa, a que impacta o espectador, leva em conta que o bom personagem é “imperfeito”, que as paixões o afetam em forma de imperfeição, jogando-o em uma busca pela perfeição, por potência e liquidação desse sofrimento. E que existe uma verdade no final da sua jornada, sobre do que realmente sofre, e não uma mágica que esconde aquilo que o cinema e arte servem para revelar; a verdade do sofrimento que sempre escondemos na vida real. Sem assumir que a verdade do sofrimento é mais intensa e mais densa que o tema social explorado, e sem personagens sensíveis nossa dramaturgia fica oca e sem esse “impacto” que o crítico sente falta em nossas obras.

Se a dramaturgia brasileira quiser alcançar algum patamar criativo a nível internacional – a nível de Argentina já estaria bom –, será preciso vencer essa mentalidade de que toda narrativa tem que ter um personagem em busca de uma “cura”. E de que a arte é feita para curar, porque tudo no Brasil funciona como uma igreja evangélica. Tudo mesmo.

Pesquisas recentes do Data Folha mostram que o brasileiro acredita mais na religião para subir na vida no que na ciência e no estudo. Esse somos nós, com os valores que faz o autor brasileiro trocar a dura verdade do sofrimento pela mágica da “cura”, a força do saber e do poder pelo crer, e isso ninguém fora do país engole. Colocando nossa dramaturgia e nossos personagens em uma igreja, como estamos fazendo, ou somente nos temas que rendem likes em redes sociais, nunca conseguiremos a “repercussão” desejada que as produções internacionais têm, como cita o artigo de Daniel César, cuja questão aqui levantada foi jogada para debaixo do tapete mais uma vez.

https://super.abril.com.br/ideias/brasil-e-o-terceiro-pais-mais-ignorante-do-mundo/ 

 

Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. É mestre em Cinema, com especialização em roteiro, pela ECA/USP, e doutor em Linguística e Semiótica, pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na Coleção Estudos da Editora Perspectiva. É criador da plataforma de ensino Screenwriter Online.

3 thoughts on “Teledramaturgia brasileira troca o sofrimento do personagem pela sociologia

  • 31 de janeiro de 2023 em 21:56
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    O autor fala como se o audiovisual brasileiro fosse uma coisa só, generaliza suas conclusões, põe tudo no mesmo balaio e não reconhece a contribuição estética do cinema novo e diretores autorais. Que eu saiba, o cinema argentino, apesar de suas grandes qualidades, nunca produziu uma obra tão influente no mundo cinematográfico quanto Cidade de Deus ou Pixote.

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  • 5 de março de 2023 em 19:11
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    Gostei muito da análise. Inegável que esse “vício” se aplica a grande parte da dramaturgia brasileira.

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  • 3 de maio de 2023 em 23:41
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    O artigo do UOL critica nossos audiovisuais porque “não são dramaturgia, mas teses de doutorado”. Daí, o autor deste artigo (Hermes Leal) afirma ter encontrado a solução para nossa dramaturgia em sua… tese de doutorado! Sem lógica para mim.

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