Ana Torrent, a menina de olhos profundos de “Cria Cuervos”, participou do Festival de Gramado com um “snuff movie”
Foto: Ana Torrent em cena de “Tesis” (“Morte ao Vivo”)
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).
A décima-nona dessas lembranças tem o 29º Festival de Cinema de Gramado como cenário. Em agosto de 1996, desembarcou na Serra Gaúcha uma moça de rosto comum, muito magra e tímida, para representar o filme “Morte ao Vivo” (“Tesis”, no original espanhol), dirigido pelo jovem Alejandro Amenábar, então com 23 anos. Ela se chamava Ana Torrent e tinha 30 anos. O filme, um thriller, chegaria aos cinemas com distribuição da Pandora, de André Sturm. Ele foi à Serra Gaúcha com a atriz, que se fazia acompanhar do marido espanhol.
Naquele tempo, década de 1990, a produção brasileira andava tão combalida (o processo da Retomada começava a engrenar), que o comando de Gramado era obrigado a selecionar apenas um ou dois títulos nacionais. Que concorriam com a produção latina, ibero-americana em especial.
Sob influência de Walter Hugo Khouri, o festival gaúcho apostava em estrelas internacionais (Michelangelo Antonioni, Gina Lollobrigida, Faye Dunaway, Marisa Paredes, Elliot Gould, Marco Leonardi e o pequeno Salvatore Cascio, ambos de “Cinema Paradiso”, e a starlet Eva Grimaldi, que fizera ponta de luxo em filme de Fellini, “Entrevista”). Nada mais natural que Ana Torrent subisse a Serra gaúcha para acompanhar a sessão de “Morte ao Vivo”.
Todos os cinéfilos brasileiros conheciam a atriz madrilenha por causa de dois filmes memoráveis: “O Espírito da Colmeia”, de Victor Erice, que ela protagonizara aos seis anos (1973), e “Cria Cuervos” (1976), de Saura, também como protagonista, aos oito.
Como esquecer aqueles olhos amendoados, pretos e profundos?
Como esquecer a menininha Ana, que queria conhecer o monstro Frankenstein no belíssimo e enigmático filme de Erice?
Como esquecer Ana, a garotinha, “filha” de Geraldine Chaplin, em “Cria Cuervos”?
A personagem do mais famoso filme de Carlos Saura – lembraria a atriz nas entrevistas que concedeu aos jornais brasileiros numa fria Gramado – “queria matar o pai (militar) que traía a mãe. Matar, também a Tia Paulina”. Esta ficara com a tutela das três irmãs órfãs (a mais velha, Irene, ela, Ana, a do meio, e a pequena Maite), já que a avó permanecia muda numa cadeira de rodas, perdida em suas lembranças (evocadas por imenso painel de fotos, do qual Ana destacava a imagem desejada pela anciã).
Não se pode negar que daquela “Ana” de outrora, a atriz só preservara a força do olhar. E – confessemos – ver crianças-prodígio (como ela, o garoto de Chaplin, o Enzo Staiola de De Sica e mesmo o Totò de Tornatore) adultos nunca foi fácil. Guardamos com convicção e de tal forma a imagem destes infantes, que, egoísta e secretamente, desejamos que eles não cresçam. Mas, como exige o ciclo da vida, eles crescem. E Ana Torrent cresceu longe de nossos olhos cinéfilos.
Não que a atriz espanhola tenha parado de trabalhar. Nunca parou. Fez muitos filmes, estudou arte dramática em Madri e Nova York, fez minisséries e telefilmes (12 no total) e várias peças de teatro. Mas seus filmes não cruzaram o Atlântico, sumiram dos nossos cinemas. Ela ainda participaria de “Elisa Vida Minha” (Saura, 1977), mas sua participação não foi marcante. Aos 13 anos, atuou em “O Ninho”, de Jaime Armiñán, que lhe rendeu prêmio de melhor atriz da Crítica de Nova York. No Brasil, o filme nem foi lançado.
O hiato de Ana Torrent em nossos cinemas durou duas décadas. Só fomos reencontrá-la aos 30 anos, ao vivo, no hotel gramadense, e na tela do Palácio dos Festivais. Pessoalmente, ela era discreta. No écran, marcava presença na pele de Angela, jovem universitária que produzia tese sobre snuff movies. Ou seja, aqueles filmes que, supostamente, registravam mortes reais (não-encenadas).
“Tesis” (“Morte ao Vivo”) causou impacto, mas Ana Torrent não fez nenhuma declaração bombástica aos curiosos jornalistas, todos fãs de “O Espírito da Colmeia” e “Cria Cuervos”. Não se tornara uma drogadita, nem uma adulta problemática. Parecia mesmo uma pessoa comum. E contava que fazia, menininha, o que Victor Erice e Saura pediam que fizesse — olhar para um lado, para outro, ficar quietinha, cantar ou brincar com suas “irmãs”. Só entenderia os filmes realizados na infância bem mais tarde.
Depois de “Tesis”, quem causaria furor no cinema espanhol seria o jovem Amenábar, chileno radicado em Madri desde 1973. Seis anos mais jovem que sua atriz, o diretor ganharia até o Oscar com “Mar Adentro”, protagonizado por Javier Bardem, dirigiria Penélope Cruz em “Preso na Escuridão”, Nicole Kidman em “Os Outros” e um épico sobre a Espanha franquista (“Enquanto a Guerra Durar”). E, sete anos atrás, casaria com seu namorado, David Blanco, em festa madrilenha, coberta com estardalhaço por toda a imprensa espanhola.
A trajetória de Ana, cujo nome civil é Ana Torrent Beltrán de Lis, teve bons momentos e soma 56 títulos entre filmes, telefilmes e séries de TV. Atuou em “Sangre y Arena” (1989), “Vacas” (1996), “Olhos do Mal” (2009), numa minissérie sobre o autor de “O Velho e o Mar” (“Hemingway, Fiesta y Muerte”), deu vida a uma ex-guerrilheira do ETA em “Yoyes” (2000), foi Catarina de Aragão em “A Outra” (“Las Hermanas Bolena”, 2017) e, neste mesmo ano, atuou em “A Possessão de Verônica”. Os projetos feitos para a TV não repercutiram no Brasil, nem estes filmes.
Os olhos profundos da pequena Ana, porém, continuavam magnetizando o público para seus dois papeis marcantes e inesquecíveis – a curiosa e inocente Ana de “O Espírito da Colmeia” e a mórbida Ana de “Cria Cuervos”.
Erice e Saura, aliás, decidiram manter o nome da menina – contou a atriz em Gramado –, pois ela estranhava que as pessoas tivessem um nome fora do set e outro na hora de filmar. Para não complicar mais, já que o papel — tanto no filme de Erice, quanto no de Saura — era muito intenso para uma criança, Ana seria Ana. Nome civil e ficcional se confundiram, pois.
Os dois filmes continham (contêm) elementos de horror (em especial o de Erice). No “O Espírito da Colmeia”, ela assiste, com a irmã, a uma projeção ambulante de filme de Frankenstein num povoado perdido na Espanha profunda, em plena era de triunfo franquista (1940) e passa a viver atmosfera impregnada pela figura do “monstro”. Deseja encontrá-lo.
No filme de Saura, mais uma vez protagonista, Ana vive com as irmãs num amplo casarão. A mãe (Geraldine Chaplin, que interpreta também Ana adulta) é uma mulher de saúde frágil, casada com militar autoritário e adúltero. Ela, amada pelas filhas e, em especial, por Ana, morre jovem. Sob a tutela da bela Tia Paulina, as meninas vivem na companhia da avó imobilizada numa cadeira de rodas.
Nas ausências da tia, elas ficam aos cuidados da empregada, bem mais simpática. Ouvem música (“Porque te Vas”, da cantora anglo-hispânica Jeanette, em quatro momentos do filme, um deles de antologia) e imitam, em representação teatral, o mundo dos adultos. Às vezes, se divertem. Ana, na maioria das vezes, ensimesmada e triste, “planeja” a morte do pai e da tia, com leite “envenenado” por bicarbonato (não se trata de spoiler, pois o filme deixa isso bem claro).
Outros diretores convocaram Ana Torrent para filmes de terror (e também dramas históricos, pois ela fez questão de diversificar seus papéis). Mas a atriz não voltou a trabalhar com o aragonês Saura, que morreu aos 91 anos, no início de fevereiro, nem com o basco Victor Erice, de 82 anos.
A carreira do diretor de “Cria Cuervos” tomou rumos muito diferentes das alegorias políticas dos anos 1970. Principalmente quando abraçou o filmusical flamenco, tanguero ou fadista de forma apaixonada (e com imensa repercussão).
Já o caso de Erice é bem diferente. Cineasta bissexto, ele só realizaria mais dois longas-metragens, “Sur”, em 1983, e “El Sol del Membrillo” (1992). Só agora, octogenário, prepara seu quarto longa, “Cerrar os Olhos”. Mas faz questão de cercar-se de mistério. Não dá nem para saber se terá reservado um papel, por menor que seja, para sua estrela de outrora. Torçamos pelo reencontro.
Ana Torrent, a jovem que visitou Gramado, 26 anos atrás, tem garantida sua permanência, para o todo e o sempre, na história do cinema. Suas duas Ana, a ericiana e a sauriana, são realmente inesquecíveis. E guarda na estante, seu Kikito de melhor atriz, conquistado na fria Gramado por sua Angela de “Morte ao Vivo”.