O dia em que Linduarte Noronha entregou um troféu Aruanda a Cacá Diegues e saboreou bacalhoada na madrugada de Jampa

Foto: Linduarte Noronha e Carlos Diegues

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais e mostras brasileiros (ou internacionais).

A vigésima-segunda dessas lembranças tem o Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro e João Pessoa, capital paraibana, como cenário. E um documentarista como protagonista – Linduarte Noronha.

Em 2010, o Aruanda realizava sua sexta edição. Linduarte emprestara o nome de seu filme mais conhecido – o seminal curta “Aruanda” (1960) – ao troféu e imagem-símbolo do festival ocupava o centro das atenções.

Quatro anos antes (em 2006, na segunda edição do festival paraibano), Jean-Claude Bernardet – que assistira, em 1960, à famosa e reveladora première de “Aruanda” na Bienal de São Paulo – causara furor com suas reflexões sobre o curta linduartiano, durante seminário realizado na Universidade Federal da Paraíba. Elas foram sintetizadas em texto seminal, publicado no Estadão, em fevereiro de 2007 (dois meses depois do debate universitário). Título do artigo: “‘Aruanda Como Objeto Mental – O documentário, que causou impacto em seu lançamento, não é o mesmo que vemos hoje”.

A sexta edição do Festival Aruanda, a de 2010, contou com o discreto Linduarte, em pessoa, no centro de mesa de debates, para reviver a aventura da criação de “Aruanda”. Em 1961, Glauber Rocha definira o curta de estreia do paraibano como obra fertilizadora do Cinema Novo (junto com “Arraial do Cabo”, de Saraceni e Carneiro). O fizera, primeiro, em artigo no Suplemento Cultural do Jornal do Brasil, e depois em seu livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Civilização Brasileira, 1964).

No encontro paraibano de 2010, Linduarte contou histórias deliciosas. Lembrou seus anos como crítico de cinema, em especial no jornal A União, e o impacto que seus textos causavam. Principalmente nos distribuidores e exibidores atuantes no circuito cinematográfico paraibano, que, irritados, passaram a chamá-lo de “Bilisduarte” Noronha.

Sobre “Aruanda”, que realizou em condições adversas – dentro do que Glauber chamaria, em Manifesto apresentado na Itália, de “Estética da Fome” (1965) – Linduarte recordou: “como era repórter resolvi, junto com Dulcídio Moreira, correspondente do Estadão, ir até o quilombo de Serra Talhada. Lá vivia população majoritariamente negra e dedicada à fabricação artesanal de objetos de cerâmica”.

Os dois jornalistas subiram a Serra do Talhado montados a cavalo. Lá, entrevistaram os quilombolas e os viram na prática cotidiana de seu ofício principal – fabricação de cerâmica rudimentar, vendida na feira do povoado mais próximo. Com os parcos proventos, compravam o necessário para a subsistência. De volta a João Pessoa, Dulcídio escreveu sua reportagem (“Talhado não é mais que uma longínqua favela”). O texto ganhou edição nobre e chamada de capa no jornal da família Mesquita.

O material jornalístico produzido por Linduarte foi publicado em A União. Delcídio seguiu sua vida de jornalista. Já Linduarte, além de repórter e crítico de cinema, consumia parte de seu tempo estudando os rudimentos do ofício audiovisual no livro “Tratado de Realização Cinematográfica”, do soviético Lev Kulechov.

Uma ideia não lhe sairia mais da cabeça: tinha que fazer um filme sobre a gente do Talhado, ocupada em atividade econômica tão primitiva. Afinal, isso se processava em pleno século XX. Mas como ele faria o filme? Com que equipamentos?

Depois de escrever o roteiro (sozinho ou em parceria com Vladimir Carvalho e João Ramiro Mello – tema de muita controvérsia), o paraibano, nascido em 24 de agosto de 1930, na pernambucana Ferreiros, resolver ir ao Rio de Janeiro pedir ajuda a Humberto Mauro. O
mineiro era, então, presidente do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo).

Ao deparar-se com inusitado pedido – um “cineasta” que nunca fizera um filme, pedia a Mauro, um funcionário público, que lhe emprestasse uma câmera. O equipamento seria levado até o sertão profundo da Paraíba, à Serra do Talhado.

O diretor de “Lábios sem Beijos” e “Ganga Bruta”, brincalhão como ele só, disse aos colegas do INCE: “esse rapaz quer que sejamos presos, imagina se essa câmara quebra ou desaparece!”. Mas Mauro emprestou a câmara (uma Bell & Howell) a Linduarte, que regressou a João
Pessoa e, mais uma vez, subiu a Serra do Talhado.

Passou semanas filmando, ao lado de seu fotógrafo Rucker Vieira, as pequenas vidas dos quilombolas. Quando o filme estreou na Bienal de São Paulo de 1960, causou forte impacto em Paulo Emílio SallesGomes, Bernardet e nos cinemanovistas em formação, que haviam feito seus primeiros curtas e planejavam estreias no longa-metragem.

Os textos escritos no calor da hora e que formariam a fortuna crítica de “Aruanda” – eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos dez melhores curtas de nossa história cinematográfica – tomaram a obra como um documentário. Todos viram nele um registro da realidade brasileira, nordestina em especial, um retrato da vida precária de operosas oleiras, que colhiam argila e fabricavam potes para vender na feira.

O tempo passou e o conceito de documentário e de “realidade” mudaram profundamente. Em conversa com Bernardet, no festival paraibano, comentei que vira “Aruanda” infinitas vezes (como matéria de estudo nas aulas de Vladimir Carvalho, na UnB) e ninguém – entre os alunos (eu inclusive) – notara que “Aruanda” era aberto por sequência ficcional e ambientada no século XIX, sendo que a parte documental se passava no século XX, final dos anos 1950.

As reflexões de Bernardet, desenvolvidas com seu brilho habitual, estão, como já lembrado, no Estadão de 18 de fevereiro de 2007. Mas voltemos ao Festival Aruanda de 2010, sexta edição. Caberia a Linduarte Noronha – além de narrar sua história aruandeira no encontro mais concorrido do evento (no auditório do Hotel Tambaú) – entregar, na noite que viria, ao cineasta Cacá Diegues, o Troféu Aruanda – Homenagem pela Trajetória.

O documentarista que cometera uma única (e complicadíssima) incursão pelo universo ficcional (“Salário da Morte”, de 1971) estava muito feliz em reencontrar o realizador cinemanovista, diretor de “A Grande Cidade”, “Xica da Silva” e “Chuvas de Verão”. A entrega do troféu
deixou “entregador” e homenageado radiantes.

A sessão, que acontecia no Cinema do Hotel Tambaú, prolongou-se até depois da meia-noite. Quando a projeção dos filmes e as homenagens chegaram a termo, estavam todos famintos. Onde encontrar restaurante aberto em Jampa (a Sampa paraibana dos publicitários), cidade de pouco mais de 800 mil habitantes e uma das mais aprazíveis do Nordeste?

Um parêntese para lembrar que Jampa segue hospitaleira, porque preservou suas praias dos edifícios gigantescos que fazem sombra no Atlântico recifense, por exemplo. E não cresceu tanto quanto Salvador, Fortaleza e Recife. Pois bem, não havia um restaurante que fosse aberto naquele fim de noite. E, apesar do adiantado da hora, Linduarte Noronha, de 80 anos e enxergando muito pouco, fazia questão de jantar com o homenageado Cacá Diegues e com o grupo que cercava a dupla. Éramos mais de dez pessoas.

Foi naquele momento que a arquiteta Cristina Evelise Vieira Alexandre, presidente do IAB-Paraíba, então companheira do escritor e roteirista Bráulio Tavares, teve a ideia de usar sua valiosa caderneta de endereços e apelar, por telefone, ao responsável por belo (e moderno) hotel situado no bairro do Tambaú.

A representante paraibana do Instituto dos Arquitetos do Brasil explicou sua inusitada situação: era anfitriã de grupo de pouco mais de dez pessoas, faminto, que não tinha onde jantar. Se ele não poderia mobilizar sua cozinha para atender aos inesperados retardatários. A resposta foi positiva, mas veio acompanhada de um aviso: “só podemos preparar um mesmo prato para todos, pois nossos cozinheiros já foram desmobilizados”. E que prato seria aquele? “Uma bacalhoada”. Todos concordaram, inclusive Linduarte, que caminhava, feliz, mas aos tropeços, pois era mesmo grave seu problema de visão.

Quem o viu naquela noite em que comemos a melhor bacalhoada de nossas vidas (“o melhor tempero do mundo é a fome”, diria minha mãe) não imaginaria que o diretor de “Aruanda” estava vivendo o derradeiro ano de sua existência. A felicidade do encontro o revigorou, deixando-o cheio de energia e muito falante. E ele apreciou, como todos, o bacalhau.

O diretor de “Cajueiro Nordestino”, seu segundo curta (1962), era um homem já muito doente. Menos de treze meses depois, no dia 30 de janeiro de 2012, Linduarte morreria em sua amada Jampa, aos 81 anos. Deixava para a posteridade, além de seus próprios filmes, outros documentários, estes realizados por seus ex-alunos na UFPB. Caso de “Lição de Fogo”, de Larissa Claro (2007), sobre os convulsivos
bastidores de “Salário da Morte”. E de “Kohback – A Maldição da Câmara Vermelha” (2009) e “Confissões Documentais” (diálogo com João Batista de Andrade, 2023), os dois de Lúcio Vilar, que cuida, agora, da pré-produção de “Linduarte Noronha – Um Homem por Trás do Cinema Novo”.

O primeiro filme que Lúcio Vilar, diretor do Festival Aruanda e professor da UFPB, dedicou a Linduarte Noronha revela um dos momentos mais difíceis de seu mestre. Ele sofreu processo político dos mais desgastantes. Foi acusado de ter levado para a UFPB uma “câmara comunista”, já que oriunda da União Soviética. Decerto o aparelho reproduziria, segundo avaliação discricionária da era militar, conceitos ideológicos.

Nada impossível naquele tempo. Um prontuário produzido pelos arapongas do SNI, em 1982 – sim, nos estertores da era militar – definia a biografia do documentarista paraibano: “Linduarte Noronha de Oliveira, jornalista e cineasta, trabalhando à serviço do Partido Comunista, em um concurso de reportagens fotográficas, em 1956, instituído pela Embaixada Polonesa e realizado em Recife/PE, obteve o
primeiro lugar, tendo como prêmio uma viagem a Varsóvia. O nominado retratou os bairros mais humildes da cidade, com as mais precárias condições de vida. Nas suas fotografias procurou destacar o quadro de miséria em que vivia uma boa parte da população brasileira. O objetivo do seu trabalho era atender aos interesses do Partido Comunista”.

Os militares da era Castelo-Figueiredo passaram. Voltaram com Bolsonaro. Deram uma trégua com o terceiro governo Lula. Mas Linduarte e seu “Aruanda” permanecem na memória cinematográfica brasileira.

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