Memórias de Festivais

Festival de Sochi, pão preto com caviar, astros europeus e bomba chechena

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças ambientadas em festivais ou mostras cinematográficas (brasileiros ou internacionais).

A décima destas lembranças tem o Festival Internacional de Cinema de Sochi, na Rússia, cidade-balneário situada às margens do Mar Negro, como cenário. Construída como colônia de férias para operários e camponeses soviéticos gozarem férias nos tempos do socialismo, Sochi, mesmo com a queda do sonho bolchevique, não se assemelhava a uma cidade capitalista. Muito arborizada, com prédios construídos à moda, digamos, do Realismo Socialista (hotéis imensos e genéricos), com cerca de 300 mil habitantes, a maior diversão eram os banhos no Mar Negro.

Corria o ano de 1996. O cinema estava em alta. No ano anterior, o mundo havia comemorado o centenário da arte criada, apesar de todas as controvérsias, pelos Irmãos Lumière. Ninguém imaginaria que, pouco mais de vinte anos depois, uma pandemia e o streaming o colocariam em transe. A Rússia havia cedido grandes filmes de seu acervo para mostras realizadas nas mais importantes cinematecas planetárias.

O Festival de Sochi realizou uma de suas mais vistosas edições. O ator francês Gerard Depardieu era o homenageado especial. O polonês Jerzy Kawalerowicz, do clássico “Madre Joana dos Anjos”, que se vivo fosse estaria comemorando seu centenário, mostrava novo filme, “Para quê?”, em sessões especiais. Oleg Kovalov homenageava Eisenstein com um belo documentário que revia a carreira do mais conhecido dos cineastas russos, autor do filme que, dizia Eric Hobsbawm, gerara os “oito minutos mais influentes da história do cinema” (aqueles do massacre da Escadaria de Odessa, em “O Encouraçado Potenkin”, 1925).

Para o júri foram convocados nomes de grande importância no cinema europeu, a começar pela húngara Márta Mészáros, hoje com 90 anos (e seleção de filmes premiados em festivais internacionais na MuBi), e o sueco Bo Widerberg, contemporâneo de Ingmar Bergman, que, ao contrário do cineasta da alma, trilhou os caminhos do realismo.

Com a glasnost e a perestroika promovidas por Mikhail Gorbatchov entre 1985 e 1991, o cinema soviético vivera momento de significativa liberdade. O mundo encantara-se com as inovações artísticas e técnicas de “Vá e Veja” (Elem Klimov, 85), um dos maiores épicos de guerra do mundo, com o ousado “Taxi Blues” (Pavel Longuine, 90) e “O Sol Enganador” (Nikita Mikhalkov, 94, Oscar de melhor filme estrangeiro). E um roteirista inspirado, Sergei Bodrov, competia no Festival de Sochi com o belo “O Prisioneiro da Montanha”, baseado em conto de Liev Tolstoi, e protagonizado por seu filho Sergei Bodrov Jr. A Rússia estava, mais uma vez, orgulhosa de seu cinema.

Era fácil entrevistar os artistas. Herança da era soviética, tínhamos um tradutor que nos acompanhava, facilitava contatos, principalmente com artistas russos e do Leste Europeu. Foi possível entrevistar Kawalerowicz, Longuine, Bodrov, as húngaras Márta Mészáros e Ibolya Fedeke (diretora de “Bolshe Vita”), e Bo Widerberg, então com 66 anos, acompanhado de sua jovem companheira, a bela atriz dinamarquesa Camila Soeberg. Ele estava calmo e falava com serenidade. Ela o cercava de carinho e cuidados. Não sabíamos de nada. Mas ela deveria saber. No dia primeiro de maio de 1997, menos de um ano depois, ele morreria (de câncer) em Angelholm, em sua Suécia natal. Deixaria filmes importantes como “Elvira Madigan” e “Joe Hill”. E se despediria do cinema com o sensível “Todas as Coisas São Belas”, de 1995, sua derradeira realização, finalista ao Oscar estrangeiro.

Ibolya Fedeke, de “Bolshe Vita” © Maria do Rosário Caetano

Dizia-se nos bastidores do Festival de Sochi, que a Máfia Russa estava por traz do evento. Aliás, cinco anos depois da queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com tudo sendo privatizado e o país mergulhando no capitalismo versão ultra-selvagem, a palavra máfia constituía vocábulo corriqueiro. Uma economia estatal sendo privatizada (petróleo, gás, minas, siderúrgicas) gerava euforia e ganância de proporções stroheinianas. Boris Ieltsin concorria à reeleição tendo o comunista Guennadi Ziuganov como opositor.

Se a Máfia realmente comandava o Festival de Sochi, ela era amadora em termos cinematográficos e tinha muito a aprender com “O Poderoso Chefão” de Coppola. As refeições dos participantes da maratona cinematográfica davam-se em estilo bandejão num imenso refeitório popular, não havia festas especiais, nem passeios. Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema do Estadão, que integrou o júri com Márta Mészáros e Bo Widerberg participou de alguns jantares de trabalho dos mais frugais e fez um único e curioso passeio a uma dacha (casa de campo) frequentada por Joseph Stálin, nos tempos em que comandava, com pulso de ferro (de aço, para combinar com o nome de guerra do georgiano) a URSS. Mordomia zero.

Os jornalistas que não podiam seguir os rígidos horários de almoço, pois estavam trabalhando (enfrentando!) computadores nos quais se atrapalhavam (às vezes o alfabeto cirílico se intrometia no alfabeto latino) acabavam procurando alimentos onde fosse possível encontrá-los. Comemoravam quando encontravam as grossas fatias de pão preto com caviar vermelho (ou, o mais nobre, preto!). Se não encontravam, comiam sanduíches improvisados e enormes barras de chocolate, estas vendidas por todo lado.

Feitos estes registros, todos positivos (entrevistar Kawalerowicz, Márta Mészáros, Pavel Longuine e Bo Widerberg é motivo de prazer para qualquer jornalista cultural), comer caviar em pão preto, banhar-se nas águas do Mar Negro, ver os russos tietando Gerard Depardieu, assistir a um documentário sobre Eisenstein feito para homenageá-lo no Centenário do Cinema, ver cópia de “Inverno”, uma luxuosa super-produção infanto-juvenil soviética, etc, etc. Tudo isto depois de conhecer a Praça Vermelha em Moscou, a Catedral de São Basílio, hospedar-se no famosíssimo Hotel Kempinsky, pertinho da praça cantada por Charles Aznavour, onde permanece (apesar de todas as ameaças) o Mausoléu de Lênin.

Na primeira etapa da viagem, o avião da Ibéria nos deixara em Moscou. Dez horas “da noite” e ainda era dia e passeávamos pela Praça Vermelha e fazíamos planos: quando regressássemos do Festival de Sochi, iríamos conhecer o Museu Eisenstein, glória moscovita, que tanto fascinara Glauber Rocha (ver seu testemunho sobre o assunto em “Cartas ao Mundo”, de Ivana Bentes, Cia das Letras, 1997).

Bem, é chegada a hora de falar dos contratempos da ida ao Festival de Sochi. Depois de escala inesquecível em Moscou, fomos para o aeroporto. Lá nos encontramos com companheiros de viagem, oriundos de diversos países. Um deles era Márta Mészáros. Enfrentamos pesada burocracia e, finalmente, embarcamos num velho Tupolev, que nos levaria a Sochi, situada a 1362 km de Moscou. Parecia um avião de carga. Garrafas de refrigerante, destas de dois litros, rolavam pelo chão. O tempo passava e a aeronave não levantava vôo. E não havia explicações. 90 minutos de agonizante espera. Uma comissária de bordo pediu silêncio e uma voz avisou que descêssemos do avião. Apavorado, Luiz Zanin perguntou a Mészáros, que morara e estudara na URSS, o que estava acontecendo. Por falar russo e conhecer a alma do país soviético, ela nos explicou. Havia ameaça de bomba na aeronave. Afinal, a Rússia estava em guerra com a Chechênia.

Descemos. Ficamos (de pé) no pátio do aeroporto (não na sala de embarque, pois já fôramos embarcados) por mais uns 40 minutos, esperando que forças de segurança fizessem a devida varredura e liberassem o voo. Quando houve a liberação, fomos reembarcados e duas horas depois descíamos na arborizada Sochi. E víamos o Mar Negro.

Guerra na Chechênia. Eleições presidenciais. Ieltsin x Ziuganov, este o representante comunista. O candidato capitalista (com apenas 2% de aprovação popular, fama de alcóolatra e culpado por ter entregue a economia a oligargas corruptos) daria a volta por cima e derrotaria seu contendor por 53 a 40% dos votos, no segundo turno.

O resultado das eleições, porém, aconteceria depois de nosso regresso ao Brasil. O filme “Jenipapo”, de Monique Gardenberg, com Henry Czerny e Patrick Bauchau à frente do elenco e falado em inglês, representou o Brasil na competição de Sochi. Integrantes do júri perguntaram ao jurado brasileiro, Luiz Zanin, as razões da escolha. Por que não um filme falado em português? O grande vencedor foi “Bolshe Vita”, representante da Hungria, que ganhou também o Fipresci (Prêmio da Crítica). “O Prisioneiro da Montanha”, de Sergei Bodrov, venceu a competição dedicada aos filmes russos. Os longas futuros do realizador comprovariam que nascia, ali, um cineasta de talento. Se não um autor, um artífice de fino trato. Já a cineasta premiada e seu encantador “Bolshe Vita” não conseguiram chegar aos cinemas ocidentais. A filmes de mulheres, e ainda por cima húngaras, o mercado capitalista reservava mínimas brechas. Minúsculas.

De regresso a Moscou, só pensávamos na longa escala que lá faríamos. Teríamos tempo suficiente para passar muitas horas na Casa de Serguei Eisenstein (1898-1948). Que nada. A Guerra da Chechênia continuava perturbando até o destino daqueles dois brasileiros interessados na memória do diretor do “Ivan, o Terrível”.

Neste exato momento, julho de 2022, a Rússia continua em guerra com a Ucrânia, esta apoiada pela OTAN. O cinema russo (e soviético) mostra o quanto a questão bélica é tema recorrente na história do povo eslavo. Tomemos alguns exemplos: em “Alexandre Nevsky” (Eisenstein, 1938), o príncipe russo enfrenta os teutônicos. Em “Guerra e Paz” (Sergei Bondarchuk, 1967), os russos derrotam as tropas napoleônicas. Em centenas de ficções e documentários, grandes nomes do cinema soviético registraram a luta do país contra o nazismo (o maior de todos é “Vá e Veja”). Os russos lutaram com os japoneses (na época crepuscular do czarismo e perderam), lutaram na Primeira Guerra Mundial, na sangrenta Guerra Civil pós-Revolução Bolchevique, no Afeganistão, na Chechênia. Como os EUA, a Federação Russa tem DNA imperial.

Voltando ao Festival de Sochi e a Moscou, em 1996. Não pudemos sair do aeroporto, nem conhecer o Museu Eisenstein. Por causa da Guerra da Chechênia, o espaço aéreo foi fechado. Consumimos horas infinitas passeando por lojinhas, comprando potinhos de caviar e lindas matrioskas (aquelas bonequinhas recheadas de bonequinhas), lendo (o pouco que tínhamos na bagagem) e sonhando com os desenhos e croquis do letão-russo Sergei Mikhailovitch Eisenstein.

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