Cinema espelho

O cineasta Allan Ribeiro, meses após lançar seu premiado curta-metragem “O Clube” (2014), estreou o longa documental “Mais do que Eu Possa me Reconhecer” (2015), na Mostra de Tiradentes, de onde saiu com o prêmio de melhor filme da Mostra Aurora pelo júri da crítica, prêmio máximo do festival. O filme, seu segundo longa, após o bem recebido “Esse Amor que nos Consome” (2012), acompanha o artista plástico Darel Valença Lins, em sua casa de oitocentos metros quadrados, onde vive sozinho, e seu espelhamento nos vídeos que faz.

“O que mais me interessava era esse homem sozinho fazendo filmes – que é uma coisa que tenho buscado, filmes com equipes pequenas. Para ele, estar ali fazendo aquilo sozinho é muito importante, e ele diz que não faz cinema, porque cinema, para ele, são aquelas equipes enormes, filmando em 35mm. Diz que prefere o vídeo, porque é o olhar dele direto, sem um fotógrafo, sem um técnico de som, sem um produtor interferindo nessa imagem dele”, comenta o cineasta.

Allan Ribeiro conheceu Darel no início de 2009, quando foi gravar um depoimento com ele para a exposição sobre Oswaldo Goeldi. “Ele pediu para copiarmos as imagens que estávamos fazendo para o equipamento dele, insistiu um pouco, subi para fazer isso, e aí vi que era muito cinéfilo e começou a amizade. Comecei a frequentar a casa dele, para conversar, falar de arte. Surgiu a ideia de registrá-lo pintando, dentro daquela casa enorme. Filmei em 2009 mesmo. Pensei que poderia virar um curta. Tudo isso parou, até que retomamos há pouco. Estava entre um filme e outro e sempre quis terminar esse projeto. Quando pensei no Darel num longa, tudo pareceu mais fácil de resolver. É um filme em que a montagem é muito importante, que junta as minhas imagens às dele”, afirma Ribeiro, que fez o longa com orçamento zero.

Com a exceção de uma das quatro diárias, em que contou com o parceiro criativo Douglas Soares no som direto, Allan Ribeiro filmou Darel sozinho. “Era uma filmagem muito íntima, só eu e ele. Por isso que não sabia que iria fazer parte desse filme, eu nem sabia se ia ser um filme. Mas é uma coisa meio óbvia que, nós já tendo uma relação de amizade, e ele sozinho naquela casa, iria interagir com a câmera, que iria me colocar em cena, sem perceber que eu fazia parte na filmagem, nossa relação era parte do filme”, explica.

A imagem de si mesmo

Só durante a montagem é que Ribeiro percebeu que “Mais do que Eu Possa me Reconhecer” não era só um filme sobre Darel em seu espaço de habitação, como também um filme sobre o encontro deles, Allan e Darel. Talvez, por isso, para além de uma evidente solidão que transparece nas imagens de Allan e nas imagens que o próprio Darel produz, um conceito que fica bastante forte no filme é a ideia de espelho. “Quando ele diz que se filma para se olhar, porque o espelho já não basta para ele, isso foi algo que era muito importante de ser explorado no filme. Há essa metalinguagem muito forte, de ele se filmando, se olhando no espelho, os quadros dele. Quase tudo foi trazido por ele. E tem essa coisa do meu reconhecimento com ele e como ele se reconhece em mim. Perguntam muito da solidão dele, mas a partir do momento em que saio de casa, estabeleço um diálogo com aquela pessoa, é um pretexto para me livrar de minha solidão”, aponta.

Filme-personagem 

Filmado em fita, numa câmera HDV, o cineasta coletou mais de sete horas de gravação, ao longo de quatro dias, e contou com mais de 20 horas de gravações de Darel. Os filmes de Darel são feitos de maneira bastante artesanal. Para editar, Darel coloca a imagem que gravou na câmera diretamente no gravador de mesa de DVD, e o áudio ele liga do aparelho de som, onde põe o CD de um artista de música clássica que ele gosta. Dá um play nos dois, grava o DVD e vira filme.

Darel Valença Lins, que filma a si mesmo, é o personagem de “Mais do que Eu Possa me Reconhecer”

“Foi um trabalho duro, porque ele tem muitos filmes e várias imagens se repetem – ele usa a mesma imagem em diferentes filmes. Uma coisa bacana da montagem é que com o tempo fomos tendo mais liberdade de mexer nessa estrutura dele, música e imagem em planos longos. Quando mostrei o primeiro corte para Darel, ele disse que gostou muito, mas que tinha imagens que ele fez que estavam muito longas, que podíamos cortar. Às vezes, ficava com esse respeito grande às imagens dele, um plano sequência que ele pensou dessa forma – às vezes, ele entrava em cena e não tinha como cortar. Isso nos ajudou a repensar o filme. Usamos músicas dele nas nossas imagens, nossa imagens nos filmes dele, o corte mais acelerado, a fusão de imagens minhas com as deles, música oposta ao que ele usa, mais por provocação. Esse filme sempre foi uma forma de nosso diálogo continuar. Eu ouvindo ele falar algumas coisas da filmagem me ajudou a encontrar esse filme”, explica.

Ribeiro conta que à época da filmagem começava a experimentar com formas híbridas de encenação, entre o documentário e a ficção. “Logo depois que filmei os quatro dias com o Darel, achei que faltava algo, que não estava bom, e propus a ele uma performance. Ele nem dava brecha para esse tipo diálogo, porque ele não se via como personagem ator. Me chateei e talvez por isso tenha demorado mais a voltar ao filme”, pontua. “Acho que conseguimos esse híbrido na edição. Tem aquelas cenas em que ele coloca a própria câmera em algum lugar e entra no quadro, para depois ficar parado em frente a câmera, se olhando, se reconhecendo, como ele diz, arrumando coisa para fazer, andando de um lado para o outro. Isso tudo tem a ver com o que faço: pego a rotina das pessoas ou crio uma situação. Na montagem, tentamos criar essas situações”, complementa Ribeiro, que dividiu o filme em capítulos por conta disso.

“Mais do que Eu Possa me Reconhecer” conta novamente com coprodução da Cavídeo, de Cavi Borges, mesma do longa anterior, e tem distribuição da Livres, com previsão de estreia para o começo de 2016, após fazer o circuito de festivais. Enquanto isso, Allan Ribeiro monta a série “Noturnas”, um desdobramento de “O Clube”, com o objetivo de captar em entrevistas a memória de 46 artistas da noite gay carioca.

 

Por Gabriel Carneiro

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