Novo filme de Albert Serra traz de volta o fantasma dos testes nucleares para a Polinésia francesa

Por Maria do Rosário Caetano

“Pacifiction” chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 20 de abril. A estreia se dá em salas de São Paulo, Rio, Brasília, Salvador, BH e Porto Alegre.

Se você é cinéfilo e ama os filmes do catalão Albert Serra, saiba que não encontrará narrativa semelhante aos transgressores “A Morte de Luís XIV” ou “Liberté”. E se abomina, em especial este último, o da fornicação de nobres, não se afaste de “Pacifiction” (soma de Pacífico, o tenebroso oceano, com ficção). O filme do realizador catalão, uma produção da França com parceiros, falado em francês (com trechinho em português lusitano), dessa vez, pode ser considerado bem acessível. Até “narrativo”.

O oitavo longa-metragem de Serra levou a crítica francesa ao êxtase. Além de participar da principal competição de Cannes (a Palma de Ouro) e ser um dos finalistas ao César, “Pacifiction” ganhou cinco estrelas (cotação máxima) dos principais veículos parisienses. Ou pelo menos dos mais modernos e badalados: Cahiers du Cinéma, Libération, Les Inrock, Bande à Part, Le Monde, Transfuge. Até L’Humanité, jornal do Partido Comunista, se dobrou a esta produção que discute, com pegada contemporânea, sons e imagens arrebatadoras, a questão do colonialismo e do uso de paraísos turísticos do Terceiro Mundo (expressão fora de moda?) para testes nucleares. No caso, a Polinésia francesa (o mítico Taiti, abrigo do universo visual-afetivo do pintor Paul Gauguin – 1848-1889).

A linha de frente da crítica francesa só não fechou, em peso, com “Pacifiction”, porque a poderosa revista “Positif”, rival histórica da Cahiers du Cinéma, lhe atribuiu apenas duas estrelas (como o conservador Le Figaro).

E por que agiu assim a politizada publicação que teve (tem) Michel Ciment entre seus próceres?

O argumento de Positif (defendido por Louise Dumas) é respeitável:

“’Pacifiction’ poderia ser um grande filme sobre a legilibidade (transparência) do mundo contemporâneo (…). Mas preguiçosamente (e rapidamente), Albert Serra desiste de desenvolver uma intriga real ou de adotar sólida perspectiva sobre os temas que abordará superficialmente”.

O que incomodou a “Positif”, não incomodaria a muitos (a maioria) dos críticos franceses. E Serra assistiria, como jamais assistira, à consagração de um de seus filmes. Nenhum dos sete anteriores alcançara tamanha repercussão.

Tudo começa, em “Pacifiction”, na tropical, calorosa e sensual ilha Polinésia francesa, onde o descolado De Roller (Benoît Magimel), alto funcionário do governo francês, borboleteia de lá prá cá, em casas noturnas lotadas, onde todos bebem, fazem negócios, assistem a shows exóticos e procuram companhia.

De Roller, sempre trajando ternos claros e camisas estampadas, é um homem calculista, de educação esmerada e muito traquejo. Sua missão como representante do Governo francês lhe exige habilidade social. Ele deve transitar tanto pelos círculos mais abastados, quanto por locais obscuros. Terá que misturar-se também à população mais pobre. Conviver com militar de alta patente, um Almirante (Marc Susini), com altivo líder nativo, Matahi (Matahi Pambrum), com a transexual Shannaj (Pahoa Mahagafanau), com diplomata português (Alexandre Melo), com o diretor da casa noturna, o espanhol Morton (Sergí Lopez), entre tantos outros.

Enquanto De Roller se diverte e cumpre seu papel entre dois mundos, o da França colonial e o do Taiti colonizado, um boato começa a circular: um submarino foi visto nas águas do Pacífico. Esta presença fantasmagórica prenuncia o pavor dos nativos naquele distante paraíso polinésio – que estejam prestes a voltar os testes nucleares franceses.

O roteiro de “Pacifiction”, que na França se fez acompanhar do subtítulo “Tormento nas Ilhas”, não trará maiores informações sobre testes reais que a França realizou na região (de 1966 a 1974, foram 193 exercícios nucleares na região, isto depois do abandono de testes no Deserto do Saara). Claro que as memórias traumáticas dos anos 1960/70 deixaram marcas profundas em gerações de polinésios.

Albert Serra e seu co-roteirista Baptiste Pinteaux trabalham com sensações. Ancorado na deslumbrante fotografia de Artur Tort (furor do novo cinema europeu e também montador) e em elenco que parece improvisar o tempo todo, o catalão constrói narrativa em permanente diálogo com o documentário. Benôit Magimel é, hoje, um astro do cinema francês. Todos sabem que ele é um ator. Mas cai bem vê-lo ali, no Taiti, com seus cabelos louros, roupas de turista e óculos descolados, em meio aos nativos de pele morena. Ele representa muito bem o europeu que “leva a civilização” e os negócios ao “Tiers Monde”. Já Sergi Lopez, cada vez mais rechonchudo, se dissolve em meio àquela fauna internacional, que povoa paraísos invadidos por homens de negócios (muitos deles escusos), em busca também de picantes aventuras amorosas ou substâncias alucinógenas.

Numa das mais impressionantes sequências do filme, os turistas se divertem em barcos e jets-skis, em ondas altíssimas e perigosíssimas. A música (de Marc Verdaguer) e a trilha sonora (Jordi Ribas), vertiginosas, nos convencem de que estamos, realmente, diante de um filme muito singular, especial.

 

Pacifiction
França, Espanha, Alemanha, 2002, 2h42′
Direção: Albert Serra
Elenco: Benoît Magimel, Sergi López, Pahoa Mahagafanau, Cécile Guilbert, Matahi Pambrun
Roteiro: Albert Serra, Baptiste Pinteaux
Fotografia: Artur Tort
Montagem: Ariadna Ribas, Artur Tort, Albert Serra
Música: Marc Verdaguer
Desenho de som: Jordi Ribas
Design de produção: Sebastian Vogler
Produção: Idéale Group, Rosa, Tamtam, Andergraun, Archipel, Canal Arte e Br Arte
Distribuição: Fênix Filmes

 

FILMOGRAFIA
Albert Serra (Banyoles, Espanha, 9 de outubro de 1975)
Formação: Literatura Hispânica, Literatura Comparada e História da Arte, pela Universidade de Barcelona

2002 – “Crespià”
2006 – “Honor de Cavalleria”
2008 – “O Canto dos Pássaros”
2013 – “A História da minha Morte” (Leopardo de Ouro em Locarno)
2016 – “A Morte de Luís XIV”
2018 – “Rei Sol” (documentário)
2019 – “Liberté” (Prêmio Especial do Júri – Um Certo Olhar de Cannes)
2022 – “Pacifiction”

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