“Zé”, filme de Rafael Conde, mostra os estertores da militância clandestina, com tortura no extra-campo

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

“Zé”, terceiro longa-metragem de Rafael Conde, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, encerrou a competição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. E o fez abordando temas espinhosos para a cinematografia brasileira – a tortura e o assassinato de jovens que se dedicaram à guerrilha urbana (ou rural) para enfrentar a ditadura.

A escolha de Conde para dar vida a “Zé” se deu há vinte anos, quando ele começou a pesquisar a trajetória de José Carlos Novais da Matta Machado, filho de Edgard da Mata Machado, respeitável professor da UFMG, cassado do exercício do magistério, em 1968. Ao optar pela luta clandestina com seu grupo político, a AP (Ação Popular), braço católico da esquerda, o jovem (interpretado pelo ator Caio Horowicz) abandonou o curso de Direito e uniu seu destino ao de Bete (Eduarda Fernandes), militante política e mãe de seus dois filhos, Eduardo e Dorival.

Dezessete anos atrás, outro cineasta mineiro, Helvécio Ratton, realizara filme – “Batismo de Sangue” – sobre a guerrilha urbana e sua importante rede de sustentação vinda de frades dominicanos. Entre eles, Frei Tito Alencar (1945-1974), que passara por intenso processo de tortura. Exilado na França, o frade recorreria ao suicídio, aos 28 anos. Por mostrar cenas gráficas de tortura, Ratton sofreu as consequências. Foi criticado por defensores de ideias contidas em histórico texto de Jacques Rivette (“Da Abjeção”, Cahiers de Cinéma, 1961), escrito a propósito do filme “Kapò” (Gillo Pontecorvo, 1961). Para o crítico e cineasta do núcleo duro (e católico) da Nouvelle Vague, a imagem das mãos da personagem de Delphine Seyrig, uma prisioneira de campo de concentração nazista, suicidando-se em cerca de arame eletrificada era abjeta.

Os que comungam das ideias de Rivette vêem em cenas gráficas de tortura, além de abjeção, “voyeurismo e pornografia”. Ao contrário de seu conterrâneo Ratton, Rafael Conde não recorreu a cenas de tortura gráfica. Mesmo que seus personagens principais – Zé e Bete – vivam o momento de desmantelamento brutal e sangrento da guerrilha (queda, de um a um, nas mãos do aparelho repressivo da ditadura). O triunfo do governo Médici sobre a esquerda armada seria inevitável. Ainda mais com suas forças de segurança apoiadas em sólida rede de delatores infiltrados nas células clandestinas. Os agentes do DOI-CODI prendem, torturam e, em casos como o do jovem Matta Machado, assassinam.

Em dois momentos do filme, a tortura marca presença, mas sem imagens explícitas. Na frente do filho pequeno, Bete é interrogada. O corpo do interrogador-torturador cobre o cigarro com o qual ele queima a coxa da jovem. E no cárcere, Zé Carlos, brechtniamente, olha para a câmara, com o rosto coberto de sangue, para proferir seu discurso final, reafirmando crença na revolução e orgulhando-se de não ter delatado nenhum companheiro.

O único filme brasileiro a abordar a ditadura implantada em 1964 (e a prática da tortura em delegacias e porões carcerários) bem-recebido pelos vários segmentos da crítica brasileira foi “Nunca Fomos Tão Felizes” (Murilo Salles, 1984). O cineasta carioca, diretor de fotografia por longos anos, construiu sua narrativa a partir da relação de um pai, guerrilheiro (Claudio Marzo) e seu filho jovem e solitário (Roberto Bataglin), que aguarda visita paterna dentro de apartamento vazio. O foco do filme se materializa nas relações afetivas, sem descuidar-se do pano de fundo político, como se dera no romance de João Gilberto Noll, sua fonte originária.

“Zé” tem pontos de contato com “Nunca Fomos Tão Felizes”. Registra os afetos, as relações familiares, a vida cotidiana dos guerrilheiros, mais que cenas de ação (assalto a bancos etc., até porque a luta armada vive seus estertores). Num momento surpreendente, na primeira parte dessa narrativa de 124 minutos, assistimos ao casamento (com vestido branco, véu e padre-oficiante) de Zé e Bete. Só mesmo militantes da esquerda católica para consumir tempo com cerimônias religiosas em fase tão crispada de suas vidas.

Se no filme de Murilo Salles se discutia a paternidade ausente, nesse “Zé” o foco recai sobre a maternidade. Mãe de Dudu, Bete engravida e faz questão de manter a gestação. Nascerá Dorival. Com retaguarda incerta das fontes de provisão financeira da luta clandestina, o casal de militantes da AP passara pelas maiores privações. Com tarefas a cumprir ora no Sudeste, ora no Nordeste, eles viverão em casebre sem energia elétrica (à base de lamparina), submetidos a dieta de arroz, feijão, ovo, sopa e farinha. Um dos filhos terá meningite.

A família Mata Machado, em sua confortável residência em Belo Horizonte, recebe cartas do filho (que Caio Horowicz lê para o espectador, quebrando a quarta parede). Ele relata as agruras habitacionais-alimentares-financeiras vividas com a mulher e os meninos Dudu e o pequenino Dorí. Um advogado, Hélio Navarro, ajudará no que puder, compondo retaguarda valiosa, mas os integrantes da AP vão caindo nas garras da polícia política. Entre eles, Gildo e Gui (Honestino Guimarães). Um infiltrado facilitará o desmonte promovido pela forças repressivas. O que, aliás, não era difícil de acontecer, pois tornava-se cada dia mais evidente que um pequeno exército de Brancaleone era combatido por Estado fortemente armado e com apoio total dos EUA. E da maioria absoluta da população.

O próprio Zé, em momento de lucidez, lembra a desigualdade absurda entre os contendores. Utopicamente, ele sonha com dois exércitos (o da guerrilha de esquerda) e o do Estado, se enfrentando em condições de igualdade, ou seja, ambos com tanques, helicópteros e armamento diversificado. Ao mesmo tempo, quando uma das irmãs, em raro encontro, pondera que a guerrilha está isolada, que não consegue dialogar com a classe média, Zé rebate. Não quer nada com a classe média, acredita no povo, nos operários e camponeses, receptivos ao ideário que alimenta a guerrilha. A irmã diz que a propaganda do governo militar os reduz a “bandidos, terroristas”. O militante não se dá por vencido.

Os que defendem um cinema sensorial e fincado na imagem reclamarão que “Zé” tem um roteiro literário (sua principal fonte é o livro “José Carlos Novais da Mata Machado, uma Reportagem”, do pernambucano Samarone Lima (Editora Mazza, 1998) e peca por certo didatismo. Em favor de Rafael Conde e sua corroteirista, a também professora da UFMG Anna Flávia Dias, há sólido atenuante. A militância política se fundamenta em discurso lógico recorrente. O guerrilheiro está empenhado em convencer o outro, em seduzi-lo para sua causa. E tem na retórica seu instrumento de trabalho. No caso de “Zé”, com a guerrilha nos extertores, o militante já não pode participar de ações armadas, pois não consegue encontrar nem os “pontos” encarregados de repassar as ordens dos líderes.

Com trilha sonora discreta e algumas canções que enriquecem a narrativa (caso de “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e eloquente inserção documental (o presidente Médici em visita a espaço da Aeronáutica onde são montados os modernos aviões Mirage, recém-importados da França) o filme se constrói com elenco muito jovem (José Carlos foi assassinado aos 27 anos) e rostos pouco conhecidos do público brasileiro. Caio Horowicz, que protagonizou o discreto “Califórnia”, de Mariana Person, Eduarda Fernandes e a afro-brasileira Samantha Jones, que vive a militante nordestina Maria do Socorro (codinome Grauninha) trazem frescor ao elenco. Yara de Novaes, vinda do teatro e preparadora do coletivo, dá vida com garra e segurança à mãe de Zé, Dona Yedda. E quem mais brilha é Gustavo Werneck, a quem cabe o papel do intelectual Edgard da Mata Machado, o pai compreensivo, mas apreensivo com os perigos que rondam o filho.

Os protagonistas do filme “Zé”: Eduarda Fernandes, Caio Horowicz e Samantha Jones

A exibição, seguida de debate, do novo longa-metragem de Rafael Conde, no Cine Novo Batel, uniu o realizador a seu elenco jovem, incluindo o intérprete de Gilberto, irmão da personagem Bete, à produtora Samantha Capdeville, ao escritor Samarone Lima, e, discretamente, ao filho mais novo de Zé, Dorival Mata Machado, que preferiu ficar anônimo na plateia.

Durante o debate com o público, Rafael Conde, de 60 anos, comentou sobre a ausência de cenas gráficas de tortura. O irreverente diretor de “Samba Canção” e de “Fronteira” (este baseado em Cornélio Penna) deixou claro que, em vinte anos de elaboração (desde a ideia eia inicial) e realização do filme, nunca lhe passara pela cabeça recorrer à violência explícita. “A tortura psicológica e física aparece na narrativa, mas no extra-campo”, ponderou. “O que nos interessava” – acrescentou – “era captar o medo de forma calada, nos silêncios, em tom baixo, nunca pensamos em usar a tortura de forma redundante e ilustrativa”.

Cinema colombiano — O último dia das mostras competitivas do Olhar de Cinema contou com dois ótimos filmes colombianos. No segmento Novos Olhares, foi exibido o surpreendente “Mudos Testigos” (“Mudos Testemunhos”), de Jerónimo Atehortua e Luís Ospina (1949-2019). Na Mostra principal, o lisérgico “Anhell69” (“Anjo69”), de Theo Montoya.

O seminal Luis Ospina, diretor do testemunhal-geracional “Tudo Começou pelo Fim” (com quase quatro horas de duração), nome da linha de frente do Grupo de Cali (ou Caliwood, a Hollywood de Cali), morreu antes de concluir o projeto “Mudos Testemunhos”. Um de seus discípulos, Jerónimo Tehortua, levou o projeto adiante, com garra e resultado apaixonantes.

Tudo começa quando são descobertos trechos de um filme (“Mudos Testigos”) da era muda colombiana, um melodrama de amor entre Efraim e Alícia, bela e jovem comprometida com um rico mandatário da grande cidade, mais velho que ela.

A partir desse entrecho sentimental, Ospina escreveu engenhoso roteiro, que preencheria com trechos de 19 filmes (12 de ficção e os outos documentais) para compor fascinante painel da vida amorosa, política e econômica da Colômbia da primeira metade do século XX. E motivar os espectadores a um reencontro cinematográfico, capaz de ressignificar imagens de outrora.

Efraim tenta tirar sua amada Alícia dos braços do marido, um patriarca possessivo. Enquanto não consegue seu intento, ele vai ao cinema e, num “Noticero” (cinejornal), vê registros de guerras que agitam o país, abalado pela perda do Canal do Panamá, a luta dos trabalhadores e a morte, em acidente de avião, de Carlos Gardel em solo colombiano. Quando Alícia pede separação legal do marido, ele a leva à força para terras longínquas. Qual um aventureiro, movido pela paixão, Efraim sai em busca da mulher amada. Mais imagens documentais e ficcionais oriundas de fontes diversas serão utilizadas para completar a saga do sofrido rapaz. Um diário, de alta densidade literária (sim, matrizes literárias também ajudam a narrar o filme), nos arremessa nas conturbadas andanças de Efraim por terras inóspitas e perigosas.

Curioso notar que o queer “Anhell69” (grafia digital que identifica um dos personagens do inquieto e quase niilista filme de Montoya) também tenha no cinema colombiano uma de suas matrizes. Só que, ao contrário de “Mudos Testigos”, cuja matéria constitutiva vem da era muda, “Anjo69” se alimenta do cinema contemporâneo produzido na Colômbia. E também recorre a referências internacionais, caso de “Maladie Tropical”, de Apichatpong Weerasethakul.

“Anhell69” é um filme metalinguístico. Tudo começa com seu diretor, como um defunto-autor machadiano, evocando as dificuldades que encontrou para realizar um filme sobre um anjo homoafetivo – o feminino Anhell (grafia descolada) que ele encontrou em testes de elenco para os quais convidara jovens queer, nascidos na violenta Medellin, território outrora dominado por Pepe Escobar e pelo narcotráfico.

Os testes de elenco revelam rostos e histórias homoafetivas de filhos do abandono e da descrença. Rapazes que sonham com a transição (“gostaria de colocar peitos”), com a fama (“ser conhecido inclusive em Hollywood”), com “uma bela e ampla casa sem paredes” e com dinheiro farto. Sem respeitar fronteiras, Montoya soma em seu filme de estreia influências fantasmagóricas, ficção, documentário e noitadas tecno-lisérgicas. E dá voz a uma geração que mantém afinidades mínimas com a violenta cidade onde cada um deles nasceu, que sabem que a morte ceifará a muitos, ainda bem jovens. Nos créditos finais veremos que muitos (mais de seis) dos entrevistados no processo de casting estão enterrados em algum cemitério de Medellin.

Com sua voz de veludo, Theo Montoya fará sua homenagem explícita ao cinema colombiano, aquele que fez sua cabeça e o motivou a tornar-se cineasta: “A Vendedora de Rosas”, de Victor Gavíria (1998) Além de evocar as crianças marginalizadas que vendem flores nas ruas colombianas, o cineasta estreante escalou Gavíria para desempenhar o papel de chofer do carro funerário, aquele que o conduz ao mesmo destino de muitos de seus personagens. Ao cemitério.

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